Migalhas de Vulnerabilidade

Ensaio clínico: do consentimento livre e esclarecido ao contrato de pesquisa

Ensaio clínico: do consentimento livre e esclarecido ao contrato de pesquisa.

3/3/2022

A atividade de pesquisa clínica1 em seres humanos ganha cada vez mais destaque no cenário geopolítico global com a covid-19. Principalmente nesse momento, quando as diversas mutações2 resultam em variantes do coronavírus que são uma verdadeira incógnita quanto ao seu potencial patogênico, o que acabam por promover a busca incessante de combate, seja por meio da prevenção ou, até mesmo, o tratamento da covid-19. Com isso, acelerar o processo de desenvolvimento é necessário, pois o fator tempo é determinante para a obtenção de um medicamento que possa ser seguro e eficaz para controle ou cura da doença, ainda mais nesse momento pandêmico.

Atualmente há cerca de 7.551 estudos científicos no mundo todo voltados para a covid-19, sendo que, destes, foram concluídos e terminados somente 2.346 estudos,3 que contemplam diversas linhas de pesquisa, inclusive o desenvolvimento de novos biomedicamentos (vacinas),4 medicamentos, dispositivos médicos e outros produtos que possam ser utilizados no combate ao coronavírus e, consequentemente, à covid-19. Há também um total de 4.249 estudos intervencionais, ou seja, aqueles de investigação clínica em seres humanos, porém, apenas 184 foram terminados, conforme a U.S National Library of Medicine.5 Se considerarmos que os estudos clínicos que envolvem as três fases somam, no mínimo 15006 pessoas por estudo, temos, então, um total de 7.807.500 pessoas espalhadas no mundo, que estão envolvidas em estudos somente no que se refere àqueles relacionados à covid-19.

Esses estudos clínicos visam atestar a eficácia e a segurança dos futuros medicamentos, por meio de diversos testes que envolvem cada uma de suas fases, tais como os testes definidos pela farmacologia clínica, na fase I; os testes que relacionam dose-resposta para a fase II e os estudos pivotais da fase III, nos quais está o maior número de participantes.

A pesquisa clínica é essencial para o progresso científico, e produz reflexos diretos e indiretos na saúde pública. No entanto, pouco se conhece acerca de seu processo, suas fases,7 sua forma de aprovação,8 regulação,9 agentes envolvidos e os instrumentos jurídicos utilizados para dar viabilidade e conferir licitude ao estudo.

Não restam dúvidas de que o contexto pandêmico que se vivencia desperta o interesse nos ensaios clínicos. Isso se dá não só pela busca de uma solução para a pandemia e o controle de seu potencial devastador, mas também pela importância de proteger os participantes de pesquisa, que tanto contribuem para a coletividade. No Brasil, hoje, há, em média, 198.286 participantes dos estudos experimentais/intervencionais relacionados apenas ao coronavírus e/ou à covid-19 aprovados pela Conep - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, conforme Boletim Ética em Pesquisa, Relatório Semanal 88/22,10 o que demonstra o aumento substancial dos estudos, impulsionado somente pela covid-19.

Apesar de todo o avanço na seara da tutela dos participantes de pesquisa, ainda hoje, em pleno século XXI, são noticiados escândalos que giram em torno das pesquisas e tratamentos médicos, sem respeito e à autodeterminação quanto aos cuidados de saúde. Diversas notícias no Brasil têm relatado “estudos” em pesquisa clínica, que, além de não atender ao rigor científico quanto aos testes realizados, também não observa a necessidade de solicitar o devido consentimento dos participantes quanto à realização de todos os testes aos quais serão submetidos, inclusive utilizando medicamentos já comprovadamente sem eficácia para o tratamento da covid-19.11 12

É importante ressaltar que somente os estudos com aprovação prévia dos órgãos competentes e a observância das normas éticas e jurídicas em pesquisa possuem respaldo na comunidade científica, pois, do contrário, afrontaria de forma brutal a autonomia existencial do participante da pesquisa, principalmente porque eles se submetem a diversos riscos, evidenciando, assim, a fragilidade desse sistema e vulnerabilidade do participante, o que requer uma necessidade de uma regulação e fiscalização mais eficaz do setor.

A história nos mostrou a luta e o preço pago para garantir a autonomia do participante de pesquisa em razão das diversas atrocidades já cometidas em estudos clínicos.13 Cita-se, a título de exemplo, o conhecido caso ocorrido em Tuskegee, nos Estados Unidos e bem retratado no filme da produtora Home Box Office, dirigido por Joseph Sargent, lançado em fevereiro de 1997 e intitulado “Cobaias”. A pesquisa foi feita na época da epidemia da sífilis e no período de 1932 a 1971, em cerca de 600 homens negros, a maioria pobre e com pouca instrução, sendo cerca de 400 deles portadores de sífilis e 200 sem a doença. Os participantes não foram informados de que faziam parte de um projeto de pesquisa, assim como não lhes foi revelado que eram portadores da sífilis. Apesar de a penicilina, descoberta em 1928, já se encontrar disponível para a população civil desde a década de 1940, os 400 doentes não foram medicados. Em contrapartida, os participantes recebiam, gratuitamente, transporte para o hospital, almoços e cuidados médicos para qualquer doença (exceto a sífilis), além da promessa de pagamento de funeral após autópsia. Foi apenas em 1972 que vieram a público as irregularidades cometidas na pesquisa, cujos estudos foram encerrados em 1973,14 com a publicação do resultado.

Essa barbárie, entre outras, resultou na edição de normas internacionais, guias de boas práticas15 e foram cunhados princípios bioéticos, todos voltados para a proteção do participante de pesquisa, com destaque para o relatório de Belmont, em 1978, que teve como principais idealizadores Tom L. Beauchaump e James Childress, consagrando o surgimento da bioética principialista, com os princípios da autonomia, da beneficência, da justiça e, posteriormente, da não maleficência.

Para além dos aspectos técnico-científicos da pesquisa, dos avanços biotecnológicos e da importância da ciência médica para o processo investigacional, existe todo um aparato bioético principialista e de outras linhas da Bioética16 para legitimar o ato, mas que, por si só, não são suficientes. Impõe-se a incidência de normas jurídicas que darão os contornos da legalidade constitucional, além de uma eficiente vigilância dos órgãos responsáveis pela aprovação dos estudos. Isso tanto na situação existencial, em respeito à dignidade do participante de pesquisa, o livre desenvolvimento de sua personalidade, quanto na patrimonial, com os vínculos obrigacionais e responsabilidade dos agentes envolvidos na pesquisa clínica, tais como os patrocinadores, nacionais ou estrangeiros, que financiam o estudo, ou as Organizações Representativas de Pesquisa Clínica, contratadas pelo patrocinador para exercer suas funções; os pesquisadores, médicos; e as instituições de pesquisas, hospitais, clínicas públicas ou privadas.

Cabe ao operador do direito atentar para essa atividade de pesquisa, sempre em busca  da proteção dos direitos humanos fundamentais dos participantes de pesquisa, sem se afastar da análise estrutural das relações jurídicas que se desenvolvem durante a pesquisa e que invocam a aplicação dos institutos de direito civil na esfera contratual, securitária, de propriedade intelectual, responsabilidade civil e segurança do participante, e que, em muitos casos, atraem a aplicação de ferramentas do Direito Internacional Privado17 em razão das pesquisas multinacionais e multicêntricas, com forte atuação de patrocinadores estrangeiros, em geral, grandes indústrias farmacêuticas.

Ganha relevo dois principais instrumentos utilizados na atividade de pesquisa: o termo de consentimento livre e esclarecido e o contrato de pesquisa, embora existam outros documentos presentes no protocolo de pesquisa que também são importantes, tais como o termo de sigilo e confidencialidade e o contrato de seguro.

O termo de consentimento livre e esclarecido, assinado pelo participante de pesquisa, é definido pela Resolução 466/12 do CNS18 e deve conter informações sobre os riscos e benefícios da pesquisa bem definidos para os participantes, além de esclarecê-los sobre seus direitos, como o direito à assistência à saúde, o ressarcimento de despesas, a indenização pelos danos sofridos em razão da pesquisa e o direito de recusar-se a participar do estudo ou de retirar-se em qualquer fase sem penalização alguma.

Do ponto de vista do seu enquadramento jurídico, a despeito de quem defenda tratar-se de um contrato, a melhor interpretação é a de que o consentimento é uma autorização concedida pelo participante da pesquisa para que o pesquisador realize estudos científicos com a administração de drogas em seu corpo, um negócio jurídico unilateral, fruto de uma declaração de vontade sem vícios, que dispensa outra manifestação.

O consentimento reflete a confiança do participante no processo de investigação, um verdadeiro elo entre o ele e o pesquisador, ainda que o participante não celebre contrato direto com o patrocinador e com a instituição em que ocorre a pesquisa. Cabe ressaltar que esse fato não afasta a relação jurídica entre as partes envolvidas, pois os agentes atraem sua responsabilidade civil, caso os participantes sofram danos patrimoniais e/ou extrapatrimoniais em decorrência do estudo clínico.19

Além do termo de consentimento, destaca-se o contrato celebrado entre patrocinador, pesquisador e instituição de pesquisa, que se qualifica como contrato civil atípico (art. 425 do CC/02), multifacetado, com pluralidade de objeto e diversidade de obrigações que deve observar os princípios contratuais, a função social, a boa-fé (arts. 421 e 422 do CC/02) e o equilíbrio contratual. Aplicam-se, portanto, as normas gerais do negócio jurídico e dos contratos do Código Civil.

O contrato de pesquisa prevê cláusulas que versarão sobre o cumprimento do protocolo de pesquisa que é aprovado pelo CEP/CONEP, juntamente com o termo de consentimento livre e esclarecido, que muitas vezes traduz um contrato de adesão.

As cláusulas comuns em contrato de pesquisa são as que versam sobre: os serviços que serão prestados pelos pesquisadores e instituições de pesquisa; a forma de condução do ensaio clínico; a observância da fórmula em estudo e suprimentos do estudo; a conformidade regulatória da pesquisa; o respeito aos participantes do experimento; a obtenção do consentimento livre e esclarecido; a elaboração de fichas clínicas; o registro dos dados do estudo, de eventos adversos e desvio do protocolo; a remuneração dos contratados e o dever de confidencialidade, sigilo, proteção dos dados de pesquisa e dos dados pessoais e sensíveis aos quais as partes terão acesso,20 transferência e privacidade de dados; propriedade intelectual; publicação e publicidade; indenização em caso de danos causados; notificação de eventos adversos; contratação de seguro; inspeções, auditorias, monitoramento e manutenção de registros; prazo de vigência; rescisão, suspensão; combate ao suborno e corrupção; cláusula penal; disposição geral; legislação pertinente, forma de resolução de conflitos etc.

Deve-se atentar para as cláusulas de responsabilidade e seguro por envolver diretamente os interesses dos participantes de pesquisa, ainda que não participem diretamente da relação contratual.

É importante um olhar atento em razão de suas particularidades e complexidades, que podem restringir direitos das partes mais fracas da relação, principalmente, quando o patrocinador é estrangeiro, afetando os interesses dos pesquisadores e centros de pesquisas, para os quais a interpretação deve ser mais favorável pela incidência do disposto no art. 424 do CC/02.

Todos esses instrumentos devem se pautar, em primeiro lugar, em uma pesquisa clínica lícita, que se legitima observando os princípios bioéticos e jurídicos, sem violar os direitos humanos fundamentais dos participantes, com destaque para a salvaguarda da sua dignidade, da integridade psicofísica e a reparação integral do dano.

Para aqueles que atuam no Biodireito constantemente se evidenciam novos caminhos a trilhar e enigmas a desvendar quanto às fases da pesquisa clínica e os instrumentos jurídicos eficazes que podem ser utilizados diante da regulação vigente para trazer mais segurança e proteção aos agentes envolvidos. Urge, portanto, uma análise sistemática por meio de um processo hermenêutico calcado em um estudo interdisciplinar e um aprofundamento em outras temáticas ainda obscuras, complexas e técnicas para a doutrina civilística.

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As pesquisas clínicas também são chamadas de ensaios clínicos, estudos clínicos ou pesquisas biomédicas, termos que serão utilizados indistintamente.

2 Disponível aqui. 

3 Disponível aqui

4 RDC 55/10 (Dispõe sobre o registro de produtos biológicos novos e produtos biológicos e dá outras providências.) Art. 2º XXIV – vacinas: são medicamentos imunobiológicos que contêm uma ou mais substâncias antigênicas que, quando inoculadas, são capazes de induzir imunidade específica ativa, a fim de proteger contra, reduzir a severidade ou combater a(s) doença(s) causada(s) pelo agente que originou o(s) antígeno(s);

5 Disponível aqui

6 FILHO MASSUD, João. Medicina Farmacêutica: conceitos e aplicações. Porto Alegre: Artmed, 2016.

7 Nos termos do art. 6º, XXII, da Resolução RDC 9/15 da ANVISA: “Ensaio clínico - pesquisa conduzida em seres humanos com o objetivo de descobrir ou confirmar os efeitos clínicos e/ou farmacológicos e/ou qualquer outro efeito farmacodinâmico do medicamento experimental e/ou identificar qualquer reação adversa ao medicamento experimental e/ou estudar a absorção, distribuição, metabolismo e excreção do medicamento experimental para verificar sua segurança e/ou eficácia.” A Resolução 252/97 do CNS dispõe sobre as quatro fases da pesquisa no item II.2.

8 Desde 1996, com a Resolução 196 do CNS, foi instituído no Brasil o sistema CEP/CONEP, pelo que antes de se iniciar a pesquisa clínica em seres humanos é necessária a aprovação do CEP - Comitê de Ética em Pesquisa, geralmente instalado nas instituições em que ocorrem as pesquisas. Em alguns casos, também deverá haver o aval da CONEP - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e da ANVISA, que emite parecer de ordem técnica.

9 Está em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto 7.082/17, que “Dispõe sobre a pesquisa clínica com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos”.

10 Disponível aqui

11 Conhecido como caso Prevent Senior diversas denúncias foram feitas contra a operadora de saúde e entre elas a que envolve testes com hidroxicloroquina e azitromicina em pacientes com Covid-19 sem o devido consentimento. O caso está sendo apurado pela CPI da Covid no Senado, pelo MP/SP e na Câmara Municipal de São Paulo, CPI Prevent Senior. A respeito do assunto as reportagens: Disponíveis aqui: 1 2 3 4.

12 Em Manaus, no Instituto da Mulher e Maternidade Dona Lindu, foi noticiado tratamento realizado com cloroquina nebulizada em pacientes internados com Covid-19, como um experimento clandestino e sem autorização legal. Disponível aqui. 

13 Destaca-se a elaboração do Código de Nuremberg, em 1947, a Declaração de Helsinque, cuja primeira versão foi em 1964, e a última em 2013.

14 Cf. JONSEN, Albert R. The birth of Bioethics. 1. ed. Nova Iorque: Oxford University Press, 1998.

15 Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos, do Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS/OMS) e Guia de Boa Prática Clínica – Manual Tripartido Harmonizado pela Conferência Internacional de Harmonização (ICH), da Conferência Internacional sobre Harmonização dos Requisitos Técnicos para Registro de Fármacos para uso humano – CIART, Boas Práticas Clínicas, Documentos da Américas, da Organização Pan-Americana da Saúde, 2005.

16 A título de exemplo, a bioética do cuidado, a bioética feminista, a bioética da teologia, etc.

17 DALLARI, Analluza Bolivar. Contrato de pesquisa clínica: aspectos práticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

18 Resolução 466/12 do CNS: “II.5 - consentimento livre e esclarecido - anuência do participante da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação, após esclarecimento completo e pormenorizado sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar”.

19 A responsabilidade civil dos agentes envolvidos no ensaio clínico: patrocinador, pesquisador, instituição de pesquisa é objetiva e solidária, com aplicação dos arts. 927, parágrafo único, e 942, ambos do CC/02. A respeito do tema: PEREIRA, Paula Moura Francesconi Lemos. A responsabilidade civil nos ensaios clínicos. 1. ed. São Paulo: Foco, 2019.

20 Cabe destacar a importância de observar a Lei Geral de Proteção de Dados, lei 13.709/18, em sede de pesquisa clínica.

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Coordenação

Thamis Dalsenter é coordenadora acadêmica do Instituto de Direito da PUC-Rio. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio. Professora de Direito Civil do Departamento de Direito da PUC-Rio.