Migalhas de Vulnerabilidade

A reprodução humana assistida e a atuação do Conselho Federal de Medicina: as repercussões da nova resolução 2.294/21

16/7/2021

Em 15 de junho de 2021, foi publicada a nova Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 2.294, de 27 de maio de 2021, que dispõe sobre normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida no Brasil. No entanto, aguarda-se por lei específica sobre o assunto há mais de três décadas, já que o Congresso Nacional por questões diversas não delibera sobre a matéria. Normas pontuais e esparsas, atualmente, tangenciam o complexo e delicado tema, a exemplo dos incisos que tratam da presunção de paternidade nos casos de utilização das técnicas reprodução assistida no Código Civil (art. 1.597, inciso III, IV e V), do uso de embriões humanos crioconservados excedentários obtidos a partir da fertilização in vitro para fins de pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias na Lei de Biossegurança (art. 5º, da Lei 11.105/05) e do provimento 63/17 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que trata entre outros temas sobre o “registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida.”

O silêncio legislativo, além de provocar insegurança jurídica em terreno sensível que envolve o direito ao planejamento familiar, a autonomia reprodutiva, o uso de material genético e a crioconservação de embrião humano, permitiu a hipertrofia do Conselho Federal de Medicina na regulamentação da temática. Desde 1992, convive-se com normas deontológicas editadas pelo referido Conselho e que, embora sem força de lei em sentido estrito, participam da tópica interpretativa e são utilizadas em diversas decisões judiciais à mingua de lei específica sobre o tema. Após a Resolução 1.358/1992, pioneira e que permaneceu em vigência por quase duas décadas, desde 2010 assiste-se a edição de sucessivas resoluções sobre o assunto,1 o que demonstra a urgência e a velocidade com que tais técnicas necessitam de constante atualização diante da evolução não somente dos procedimentos em si, mas igualmente e com aumento do interesse da própria sociedade e da ampliação dos arranjos familiares e da fundamentalidade do direito à parentalidade. A edição de mais uma resolução – a quinta em 11 anos – descortina a precariedade de somente normas deontológicas regularem tal assunto, bem como revela a necessidade de discutir, uma vez mais, os limites da atuação do Conselho Federal de Medicina (CFM) e a constitucionalidade das normas de natureza ética como indispensável imperativo dos direitos fundamentais em jogo. Se, por um lado, é louvável o esforço do Conselho profissional de constantemente atualizar suas prescrições sobre o tema, visando balizar as atuações dos médicos de forma segura e dentro de parâmetros eticamente aceitáveis, em outro giro, ressente-se de um debate amplo deliberativo sobre a disciplina da matéria em seus mais diferentes efeitos, o que afastaria o atual déficit democrático e resguardaria os múltiplos interesses existentes.

Mas em que exatamente essa norma interfere na atuação dos profissionais de saúde envolvidos na área da reprodução humana – médicos, geneticistas, biólogos, biomédicos, embriologistas – , na atividade desenvolvida nas clínicas e laboratórios especializados e para os operadores do direito? A resposta a essa indagação perpassa pela análise dialógica multidisciplinar entre diversos ramos do saber, entre eles, a Medicina, a Biomedicina, a Biologia, a Sociologia. Além disso, faz-se necessário definir a natureza jurídica da norma e suas implicações. Isto porque a temática além de depender dos avanços biotecnológicos para o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida, interfere nos direitos humanos fundamentais, no livre desenvolvimento da personalidade, no direito à liberdade reprodutiva e ao planejamento familiar, que pode encontrar limites de ordem técnica face as vicissitudes do corpo humano, mas também ético-legais que são impostos à intervenção na vida humana, desde o que se considera início da vida, seu desenvolvimento, até seu fim.

A atividade reprodutiva, a despeito da sua contribuição para efetivar o planejamento familiar diante dos problemas advindos por razões de saúde, como a infertilidade, ou outras, como pelo planejamento parental tardio, ou em decorrência de determinadas formas de constituição de entidades familiares que impedem a procriação natural (casais homoafetivos, transgêneros, famílias monoparentais), interfere de forma exponencial na vida humana, desde sua inicial potencialidade com a manipulação dos gametas, formação do embrião, a possibilidade de diagnósticos que viabilizam ajustes genéticos, seleção de sexo e caraterísticas fenotípicas, até sua implantação no útero materno ou materno substitutivo – gestação por substituição - ou, quiçá um dia em útero artificial, e que poderá resultar no nascimento de uma criança. Todos essas situações não fogem à incidência da norma jurídica que evidencia a aplicação de toda a regulação referente aos direitos envolvidos, e a identificação dos bens jurídicos merecedores de tutela, com reflexo também no campo da filiação e do direito sucessório.

É louvável e necessário que o CFM, autarquia federal a quem a Constituição Federal (art. 5º, XIII) e a legislação infraconstitucional (Lei 3.268/57, regulada pelo decreto 44.045/58 e lei 12.842/13) atribuem o poder regulamentar, estabeleça normas para orientar a atividade médica e os profissionais a ele vinculados na seara reprodutiva, com diretrizes e preceitos de cunho deontológico, cuja inobservância acarretará em sanção ético-disciplinar, observado o devido processo legal (Decreto 44.045/58 e Resolução 2145/16 do CFM). No entanto, apesar da força normativa das resoluções do CFM, com ampla aplicação até mesmo pelos Tribunais inferiores e Superiores, essas não excluem a aplicação das normas jurídicas com toda sua coercibilidade impositiva, e que pode, inclusive, afastar a resolução em razão de sua inconstitucionalidade. Tal tarefa de compatibilização das prescrições deontológicas à luz da legalidade constitucional já vem sendo realizada pelos tribunais, haja vista as decisões que afastaram a aplicação da norma contida nas resoluções anteriores para permitir o exercício do planejamento familiar tardio com a participação de mulheres em técnicas de reprodução assistida acima dos cinquenta anos.2 As resoluções do CFM não escapam da filtragem constitucional e não estão à margem dos valores democraticamente eleitos pelo constituinte, sobretudo em razão do déficit democrático já acima apontado.

O vácuo normativo no Brasil pela falta de lei específica sobre a reprodução humana não pode implicar na aplicação exclusiva das resoluções do CFM pelos operadores do direito, ao revés, estas apenas servem como mais um elemento no processo hermenêutico construtivo das novas situações jurídicas de cunho existencial que se desenvolvem no âmbito da reprodução e que pode se definir como fatos biojurídicos. O ponto nodal é verificar em toda a normativa deontológica acerca da reprodução assistida até onde ela viola os direitos humanos fundamentais, à liberdade reprodutiva e protege a vida humana em todas as suas fases até mesmo para resguardar as gerações futuras, o que se faz não apenas nas partes alteradas pela nova Resolução 2.294/21, mas também naquilo que ela manteve das resoluções anteriores, que buscam o aperfeiçoamento desde sua primeira edição em 1992.

A Resolução 2294/21 trouxe como principais mudanças, entre outras pontuais: (i) alteração do limite da idade e número de embriões a serem implantados na mulher e em casos de embriões euploides ao diagnóstico genético (item I.7);  (ii) retirada da expressão “em que não exista infertilidade” na gestação compartilhada em uniões homoafetivas femininas (item II.3); (iii)  possibilidade de doação de gametas para parentes até 4º grau, desde que não incorra em consanguinidade (item IV.2);3 (iv) aumento da idade limite para mulher doar gameta (37 anos) e diminuição para o homem (45 anos) (item IV.3); (v) responsabilidade pela seleção dos doadores passa a ser exclusiva dos usuários quando da utilização de bancos de gametas ou embriões (item IV.10); (vi) na eventualidade de embriões formados de doadores distintos, a transferência embrionária deverá ser realizada com embriões de uma única origem para a segurança da prole e rastreabilidade (item IV. 11); (vii) o número de embriões gerados em laboratório não poderá exceder o número de 8 (oito) (item V.2); (viii) supressão da obrigatoriedade de prever a destinação de embriões em caso de doenças graves (item V.3); (ix) o descarte de embriões após três anos ou mais dependerá de autorização judicial (itens V. 4 e 5); (x) no caso de diagnóstico genético embrionário, no laudo da avaliação genética, só é permitido informar se o embrião é masculino ou feminino em casos de doenças ligadas ao sexo ou de aneuploidias de cromossomos sexuais (item VII.1)4; (xi) no caso de gestação de substituição a cedente temporária do útero deve ter ao menos um filho vivo (item VII.1); e, (xii) a vedação da intermediação da clínica de reprodução na escolha da cedente na gestação de substituição (item VII.2).

As referidas alterações, no que diz respeito à análise do ponto de vista jurídico, fruto de uma interpretação à luz dos princípios e valores constitucionais suscitam questões nebulosas e que geram intrincadas e polêmicas situações. Entre elas, destacam-se a exigência de um filho vivo para as cedentes temporárias de útero, a limitação de embriões humanos gerados em laboratório e a necessidade de autorização judicial para fins de descarte de embriões humanos. Em primeiro lugar, desde a primeira resolução impôs-se a gratuidade da gestação de substituição, de maneira a evitar a mercantilização do corpo da mulher, e a limitação aos parentes até o quarto grau colateral das mulheres e, posteriormente, igualmente dos homens, salvo casos excepcionais que são submetidos às comissões éticas dos conselhos regionais, o que é compatível com a solidariedade familiar e a proteção das mulheres que doam temporariamente seu úteros, além de evitar conflitos positivos de maternidade. Por isso, causa desconforto a nova exigência no sentido de considerar que mulheres sem filhos não podem ceder útero, pois estas teriam maior chance de não entregarem a futura criança após o nascimento, criando conflitos positivos de projetos parentais. Não pode ser outra a justificativa e sentido atribuído à tal imposição. De índole moral e com forte carga de preconceito, tal prescrição atenta contra a autonomia corporal de mulheres capazes e discrimina aquelas que não desejam ter filhos. Qual a razão para somente permitir que mulheres com filhos vivos possam ceder temporariamente seu útero para outras mulheres, geralmente da mesma família? Além de discriminatória, tal regra não encontra guarida no texto constitucional. Pelo contrário, viola direitos fundamentais e desconsidera a autonomia das mulheres, que podem optar pela gestação de substituição, em ato altruístico e solidário, mas que definitivamente não desejam, ao menos, por enquanto, exercer a maternidade. Confundir maternidade com autonomia corporal e liberdade para gestar no lugar de outra pessoa é um equívoco injustificável.

Cabe frisar que a limitação de oito de embriões a ser gerado em laboratório é outra alteração que acaba por interferir no direito fundamental à procriação e ao planejamento familiar, limitando a chance de sucesso no tratamento, além de aumentar seu custo. Se, por um lado, compreende-se a preocupação com a “superpopulação” de embriões humanos crioconservados, por outro, limita, sem justificativa razoável, a autonomia reprodutiva dos participantes da reprodução assistida.

Outro ponto que chama a atenção na atual resolução é a necessidade de autorização judicial para o descarte de embriões humanos crioconservados5. A rigor, nos termos do art. 5º da Lei de Biossegurança e do próprio teor da decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510, de relatoria do então Ministro Carlos Ayres Brito, o mero descarte não seria possível à luz do nosso ordenamento, sendo apenas cabível como destinação aos embriões supranumerários a doação a outros casais ou pessoas e o uso para fins de pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias. A Resolução anterior já tinha surpreendido ao prever a possibilidade de descarte do que se denominou embriões abandonados após três anos. De fato, a questão não é de fácil solução. Por um lado, impor o ônus às clínicas e hospitais de manutenção ad infinitum desses embriões em crioconservação é demasiado e oneroso; por outro lado, o descarte de embriões envolve dilemas éticos sobre a sua própria natureza, além do direito dos titulares do material genético reivindicarem no futuro o embrião crioconservado, o que ganharia tons dramáticos se fosse a única possibilidade de concretizar o projeto parental com material genético biologicamente vinculado. O CFM percebeu que tal regra poderia gerar infindáveis discussões judiciais com a responsabilização da clínica ou hospital que descartou, ainda que previsto na Resolução ou no contrato entabulado entre as partes e termo de consentimento outorgado. A solução encontrada, no entanto, ainda não é a ideal. A obrigatoriedade de autorização judicial descortina várias dúvidas, a saber qual seria o juízo competente, a necessidade de atuação do Ministério Público, bem como quais seriam os parâmetros legais para a análise do juiz. Como se vê, muitos são os problemas levantados por tal norma e a judicialização nem sempre é o melhor caminho. Talvez uma comissão ética independente formada por profissionais de diferentes áreas e com competência para fiscalizar o descarte fosse melhor do que o recurso ao Poder Judiciário.

Logo, os intérpretes do direito têm uma importante tarefa de frear a autorregulação dos conselhos profissionais no que ultrapassa sua competência, já que cabe ao legislador regular (art. 22, I da CF), e enquanto isso não ocorre de forma específica e direta, aplica-se de forma sistemática dentro da unicidade e completude do ordenamento jurídico, os princípios constitucionais e as fontes normativas vigentes, como o Código Civil, a Lei de Biossegurança, entre outras, que disciplinam pontualmente a matéria. Os profissionais da saúde e as clínicas de reprodução deverão observar as normas éticas, adaptar seus instrumentos, como o termo de consentimento livre e esclarecido, e esclarecer os pacientes acerca dos novos limites e restrições, o que não afasta solicitar esclarecimentos aos conselhos em caso de dúvidas.

A trajetória de forte atuação do CFM na regulamentação das técnicas de reprodução assistida é peculiar de um país carente de intervenção legislativa e de um amplo e democrático debate sobre os usos e os limites de tal recurso já consolidado no cotidiano e que é a única via para o acesso ao projeto parental biologicamente vinculado, sobretudo, no caso de casais heterodiscordantes e pessoas solteiras. A par disso, novas relações familiares e, por conseguinte, as repercussões no âmbito sucessório são descortinadas e clamam por uma regulamentação que, além dos aspectos éticos voltados à atuação do médicos, envolva e pondere todos os interesses, de modo a promover os valores constitucionais. Sob tal ótica, com a edição de mais uma resolução é renovado o papel dos intérpretes na árdua tarefa de harmonizar as prescrições deontológicas a partir da legalidade constitucional, em especial a dignidade das pessoas envolvidas e das futuras crianças a nascerem. Uma atividade imprescindível, mas que revela no quadrante atual insegurança jurídica e déficit democrático desarrazoados.

___________

1 As alterações das resoluções que disciplinam as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida vêm ocorrendo desde 1992, na seguinte ordem: Resolução CFM nºs 1.358/1992; 1.957/2010; 2013/2013; 2.121/2015; 2.168/2017; 2.283/2020 e 2.294/2021.

2 “A flexibilização da rigidez objetiva e genérica da Resolução CFM 2.103/13 tem por escopo possibilitar ao casal agravado a realização de acompanhamento médico especializado e a submissão a técnica de fertilização in vitro mediante ovo-doação, conforme sugestão médica. Tal medida não esvazia a competência fiscalizatória que compete, por força de lei, aos agravantes e ao CFM. Embora se deva afastar, in casu, a restrição etária para a reprodução assistida, a fiscalização das conclusões médicas decorrentes da avaliação clínica, da utilização da técnica e dos efeitos daí decorrentes - em relação à gestante e ao feto, se efetivamente concebido - permanecem na seara de atuação dos agravantes”. (TRF 1ª Região, Agravo de Instrumento N. 0055717-41.2014.4.01.0000/MG, Rel. Des. Maria do Carmo, Cardoso, julg. 09 dez. 2014). V., ainda, o verbete do enunciado nº 41 aprovado na I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça, realizada em 15 de maio de 2014: “O estabelecimento da idade máxima de 50 anos, para que mulheres possam submeter-se ao tratamento e à gestação por reprodução assistida, afronta o direito constitucional à liberdade de planejamento familiar.”

3 A exposição de motivos da Resolução 2.294/21 do CFM atribui a alteração à existência de decisões judiciais no sentido de liberação de doação de gametas para parentes até 4º grau, valendo citar o seguinte julgado: “CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO - DOAÇÃO DE ÓVULOS ENTRE IRMÃS - RESOLUÇÃO/CFM Nº 2.121/2.015 - REGRA DO ANONIMATO - INAPLICABILIDADE. 1.  A garantia de sigilo, prevista na Resolução 2.121/2.015, do Conselho Federal de Medicina, objetiva proteger o doador e evitar-lhe futuras consequências pessoais, familiares ou jurídicas. 2. Não há vedação legal ao levantamento da regra do anonimato na doação de óvulos e, no presente feito, ambas as autoras, na qualidade de doadora e receptora, concordam com o afastamento de tal proteção.

3. Deve prevalecer, portanto, a solução que melhor dê cumprimento ao princípio da liberdade de planejamento familiar (artigo 226 da Constituição Federal). Precedentes deste Egrégio Tribunal. 4. É de rigor a manutenção da r. sentença que deferiu a fertilização e afastou a aplicação de punição aos médicos envolvidos no procedimento.

5. Apelações desprovidas”. TRF – 3ª Região, Apelação Cível nº 5000378-07.2018.4.03.6114, 6ª Turma, Rel. Des. Fábio Prieto, Rel. Juiz Federal Convocado Leila Paiva Morrison, julg. 21 fev. 2020, publ. 02 mar. 2020.

4 O fundamento do CFM para essa restrição é evitar sexagem social.

5 Questão relevante já enfrentada pelo Judiciário foi a implantação de embrião post mortem: STJ, REsp nº 1918421/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Marcos Buzzi, julg. 08 jun. 2021.

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Coordenação

Thamis Dalsenter é coordenadora acadêmica do Instituto de Direito da PUC-Rio. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio. Professora de Direito Civil do Departamento de Direito da PUC-Rio.