As reiteradas notícias de práticas adversas às vivências da população LGBTQIAP+ vem se proliferando nos últimos anos, notadamente após o advento da pandemia provocada pela Covid-19. O último “viral” ocorreu por conta do lançamento de publicidade comemorativa ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+, comemorado no dia 28 de junho, denominada “Como explicar?”, que mostra crianças filhas de genitores com sexualidade heterodiscordante relatando o próprio olhar infantil a respeito da sua experiência. Todas indicam, de conformidade com a linguagem que lhes é peculiar, a naturalização sobre a orientação dos genitores e como, de fato, se desenvolvem em um ambiente de respeito à diversidade. A divulgação da campanha foi suficiente para que a hashtag #burguerkinglixo alcançasse os trendings topics no twitter.
A exteriorização da seletividade pode ser identificada pelas mais variadas maneiras1, entretanto, além do último episódio, irrompem exemplos da discussão sobre as questões envolvendo as vivências da população LGBTQIAP+, como nos exemplos mais recentes: a tramitação do PL 504/20, na Assembleia Legislativa no Estado de São Paulo, que visava proibir “a publicidade, através de qualquer veículo de comunicação e mídia de material que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionados a crianças no Estado”2; divulgação de notícia de cortes das cenas de sexo gay no programa “De férias com o Ex – Brasil”, transmitido pela emissora MTV, com exclusão das cenas de sexo e outras carícias havidas entre os participantes Rafael Vieira e Jarlles Góis e que resultou na representação de ativistas para tomada de providências junto ao Ministério Público do Estado de São Paulo3, considerando o tratamento discrepante conferido pela atração veiculada pelo canal ao casal com orientação homoafetiva, que teve as cenas com maior intimidade cortadas do episódio sem que o correspectivo tratamento tenha sido empregado nas exibições heterossexuais; indícios de conteúdo homofóbico na fala da apresentadora Patrícia Abravanel, ao afirmar que “LGDBTYH (sic) têm de ser compreensivos” com pessoas que não tenham alguma “compreensão” com a orientação sexual desse grupo; para finalizar, invoca-se a (última) manifestação do Presidente da República, Jair Bolsonaro (já condenado judicialmente ao pagamento de danos extrapatrimonais coletivos em virtude de declarações homofóbicas proferidas em ambiente televisivo4), que, ao comentar o desenrolar da CPI da Covid, fez referências ao Senador Randolfe Rodrigues como “saltitante”, em sentido inequivocamente depreciativo.
Todas as condutas exemplificativamente relatadas revelam múltiplas violações ao ordenamento jurídico, especialmente após a posição tomada pelo Supremo Tribunal Federal em vários julgamentos, em especial o realizado no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 26, de Relatoria do Ministro Celso de Mello, julgada em conjunto com o Mandando de Injunção (MI) 4733, de Relatoria do Ministro Edson Fachin, que enquadrou a homofobia e a transfobia como crimes de racismo, estabelecendo a existência do tipo penal com fundamento no reconhecimento de uma forma contemporânea de racismo social.
A visibilidade das minorias como corolário da representatividade e a exclusão de personagens homossexuais e transexuais das publicidades e produções audiovisuais, de um modo geral, é tema cujo enfrentamento deve ser feito em conjunto com a própria dinâmica do desenvolvimento da sociedade, em que a abertura para a pluralidade vai avançando na medida em que a busca pela igualdade se revela crescente nos espaços públicos e privados. A seletividade na restrição da veiculação das vivências da comunidade LGBTQIAP+ mostra-se em descompasso com a legalidade constitucional, em especial os valores existenciais prevalentes, passível de gerar danos extrapatrimoniais coletivos.
Interessante, pois, a investigação de quais interesses merecedores de tutela se revelam prioritários e, nessa medida, qual o papel a ser desempenhado pelo direito dos danos na concretização da proteção da cláusula geral de tutela da pessoa humana, que ocupa o topo do projeto constitucional e não admite a ponderação da própria dignidade. A dignidade é o fiel da balança, o todo imponderável e deverá prevalecer no final do processo de ponderação de valores. Nessa esteira, não se admite ponderação sobre o direito “fundamental” de ser si mesmo.
A prática de condutas que resultem em “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, tipificadas como crime de racismo, nos termos previstos na lei 7.716/89, provocou intenso debate voltado à tutela dos direitos humanos fundamentais da comunidade LGBTQIAP+ com a interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento, com produção de efeitos vinculantes, da ADO 26 e do MI n. 4733. Em relação à ADO 26, deflagrada pelo Partido Popular Socialista (PPS), cujo móvel consistiu em “obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) as ofensas (individuais e coletivas), os homicídios, as agressões, ameaças e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima” e o reconhecimento da homofobia e transfobia como integrantes do conceito ontológico-constitucional de racismo gerou repercussão na sociedade e na comunidade jurídica e questionamentos, também, no âmbito do direito penal, essencialmente em torno do princípio constitucional da reserva legal.
De realce, cabe investigar as consequências no âmbito do direito privado da referida decisão, mormente em razão da observância obrigatória do entendimento firmado no julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal por todas as demais Cortes do país, pela Administração Pública e, ainda, pelos particulares (o que inclui, à toda evidência, todos os veículos de comunicação e integrantes da sociedade em geral), por força da já (velha) conhecida eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas.
A causa de pedir delineada na ADO 26 apresentou a violação dos direitos fundamentais das minorias LGBTQIAP+ em virtude da omissão ou inércia do Congresso Nacional, que historicamente não permite o avanço dos projetos de lei que criminalizam as condutas que caracterizam ofensas e discriminações, das mais variadas ordens, com fundamento na orientação sexual e/ou identidade de gênero da vítima (ou vítimas), tanto no âmbito na seara individual como no coletivo.
O dispositivo reconheceu o estado de mora constitucional do Congresso Nacional “na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBT”, conferindo interpretação conforme à Constituição para enquadrar a homofobia e a transfobia, independentemente da forma de manifestação, nos tipos penais previstos na lei 7.716/89, até que seja produzida legislação autônoma sobre o tema, considerando que tais condutas discriminatórias caracterizam espécie do gênero racismo.
Com o advento da Constituição de 1988, que inaugura uma nova ordem constitucional e insere a pessoa humana no topo da tábua axiológica eleita pelo legislador constituinte, razões de ordem sociológica e religiosa incrustadas na sociedade e refletidas na normalização das violações devem merecer coibição densa e eficaz, como fruto do compromisso do Brasil com a promoção de direitos humanos fundamentais. Entre a realidade e a norma sempre houve intenso abismo, no que fora identificado pela Corte Suprema, que destacou o exercício da atividade contramajoritária do Poder Judiciário na concretização dos direitos humanos fundamentais5, como, aliás, restou consignado como uma das premissas tomadas no julgamento conjunto deliberado pelo Superior Tribunal de Justiça da ADPF n. 132-RJ e da ADIN n. 4277-DF a respeito da união estável entre pessoas do mesmo sexo, que conferiu interpretação conforme à Constituição do art. 1.723 do Código Civil vigente.6
O reconhecimento do racismo a partir de uma leitura contemporânea em razão do conceito político-social é tese que já havia sido encampada pela própria Suprema Corte por ocasião da resolução do caso Ellwager (Habeas Corpus n. 82424/RJ), em que se discutia a prática de racismo envolvendo antissemitismo. Além do enfrentamento a partir dos dispositivos constitucionais diretamente atingidos (em especial a cláusula geral prevista no artigo 1º, III e os artigos 5º, XLI e XLII da CRFB/88), o Supremo Tribunal Federal asseverou, de forma direta e inequívoca, que a prática de condutas homotransfóbicas também vulneram o compromisso assumido pelo Brasil em pactos internacionais de Direitos Humanos de que é signatário, desrespeitando a normativa supralegal, seguindo a majoritária jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
O tratamento protetivo conferido pelo legislador constituinte originário aos integrantes da comunidade LGBTQIAP+, segundo o julgamento vinculante produzido no âmbito do Supremo Tribunal Federal, parte do imperativo de tutela de pessoas que são sistematicamente vitimadas em virtude de serem exatamente quem são, no livre exercício da orientação sexual e da identidade de gênero que é integrante do núcleo intangível de promoção da pessoa humana. Dessa forma, o tratamento discriminatório com fundamento na orientação sexual e/ou identidade de gênero devem receber resposta proporcionalmente adequada do ordenamento, visando a completa eliminação e coibição de condutas discriminatórias atentatórias de direitos e liberdades fundamentais.
Na vida de relação, tais discriminações ofendem extenso catálogo de direitos fundamentais de índole existenciais, como, por exemplo: o direito à autodeterminação sexual, que é inerente à condição humana, na medida em que a sexualidade é dimensão fundamental da experiência existencial da pessoa humana; os direitos à identidade pessoal, à igualdade e à pluralidade, além do inalienável direito de ser livre e exercitar as experiências e vivências heterodiscordantes sem qualquer ingerência ou ataque por parte de maioria que se oriente de forma contrária. A dimensão formal e material da democracia assegura a liberdade de ser e orientar-se segundo a autonomia privada, de caráter inalienável e personalíssimo de cada ser humano e insindicável de todas as outras pessoas no mundo, sejam de ordem pública ou privada.
Na semana em que se comemora o Dia Internacional do Orgulho Gay, também conhecido como acima dito Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+, relembra-se que o referido julgamento na Corte Suprema do país identificou, através da necessária neutralidade axiológica do Estado, o reconhecimento de mecanismos legais que, de fato, assegurem o efetivo exercício de todos os direitos fundamentais titularizado pelas pessoas integrantes dessa comunidade para além da retórica. A alteridade e o respeito às diferenças integram o pluralismo, que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e que contempla a noção de respeito à diversidade dos distintos grupos sociais. No caso de pessoas com orientação homossexual e/ou identidade de gênero heterodiscordante todos os direitos fundamentais entrelaçam-se, de forma indivisível, de modo a compor a própria dignidade de cada pessoa humana.
As recorrentes (e graves) violações praticadas contra pessoas em razão da orientação sexual e/ou identidade de gênero, depois do julgamento ocorrido na Suprema Corte, ainda perduram, proliferam e contam com especial componente em função dos efeitos naturalmente negativos decorrentes do isolamento imposto pela pandemia Covid-19. Perquirir o alcance dos danos injustos é atividade necessária para o fortalecimento da rede de proteção tecida no texto constitucional, na medida em que a proteção das minorias confere legitimação material ao Estado Democrático de Direito.
A sociedade brasileira, mesmo após a criminalização da homofobia pela mais alta Corte do país, que enviou inequívoca mensagem de combate à intolerância através de potente mecanismo de consecução de direitos fundamentais através do reconhecimento do enquadramento penal das condutas de homofobia e transfobia como espécies de racismo social ainda caminha a passos lentos na jornada pela naturalização das vivências erótico-afetivas da população LGBTQIAP+. A fixação de danos morais coletivos nos processos objetivos de constitucionalidade e nas demandas individuais e coletivas desnuda seu papel político, mas é preciso ir mais além. O direito humano fundamental de ser quem é, de ver e ser visto importa no rechaço de todo comportamento, seja oriundo de ente público ou privado, que caracterize qualquer tipo de exclusão e tais condutas são capazes de induzir a resposta penal do Estado e, também, remédios no campo da responsabilidade civil no âmbito individual e, sobretudo, coletivo.
Existir (rectius: resistir) como homossexual ultrapassa as experiências sexuais e não se revela exclusivamente na atração afetivo-erótica por pessoas do mesmo sexo. É uma vivência marcada pela corporalidade e identidade oprimida e estigmatizada que molda as percepções de mundo e a personalidade de cada indivíduo heterodiscordante. É a opressão do silêncio, da diferença e da violência de não se permitir existir enquanto homossexual em razão do preconceito arraigado e presente em diversas formas escamoteadas ou veladas, que cotidianamente impede que gays e lésbicas famosos, políticos ou em altos cargos em empresas assumam sua orientação sexual sob pena de represálias, maledicências ou mesmo segregação.
Por isso, visibilidade e representatividade são essenciais para o livre e pleno desenvolvimento da personalidade das pessoas homossexuais, eis que visualizam no exemplo do outro que seu agir não é errado, que viver de acordo com sua orientação sexual não é pecado e nem um ato de transgressão. São pessoas igualmente dotadas de dignidade e cujas competências e vozes merecem ser igualmente ouvidas no debate público sem medos ou preconceitos. O silêncio e a ocultação da homossexualidade aprofundam a opressão e perpetuam as violências em suas mais variadas formas, que, no Brasil, sempre se encontram em níveis alarmantes. O discurso velado de aceitação, mas que não permite a visibilidade da corporalidade e da identidade homossexual gera o apagamento da existência. As célebres expressões “os gays não podem beijar em público”, “não pode ter beijo gay na televisão”, “eu não tenho nada contra, mas também não precisa ser tão gay”, “não quero que meus filhos vejam carícias entre gays”, “eu aceito os gays, mas não é normal beijos e afetos entre dois homens ou duas mulheres”, entre tantas outras frases, reproduzem uma violência estrutural que oprime e, aos poucos, torna incolor e sem vida as identidades heterodiscordantes. Viver sem representatividade é resistir num mundo onde não se tem espelho e nem exemplo. É navegar sozinho e sob a mácula do estigma e da exclusão. Tais marcas são, muitas vezes, indeléveis e cada pessoa homossexual carrega consigo em escala diferente os efeitos da estrutura de opressão e indiferença.
Por isso, sob as lentes da vulnerabilidade e da interseccionalidade, os mecanismos de combate à discriminação devem ser efetivos por força de mandamento constitucional e os instrumentos hoje disponíveis no ordenamento devem ser massivamente utilizados de modo a atenuar tal situação de invisibilidade, que oprime e reforça as chagas da violência em nosso país. A responsabilidade civil em âmbito coletivo pode não ser o remédio mais adequado para tutelar de forma ampla a antidiscriminação à grupos historicamente vulneráveis e estigmatizados, mas definitivamente os danos morais coletivos se apresentam como importante instrumento de reparação às violações recorrentes que visam a apagar suas identidades e negar-lhes sua digna condição humana.
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1 Sobre o retrato teledramatúrgico da homossexualidade e a crescente inserção de personagens, v. PERET, Luiz Eduardo Neves. De “O Rebu” a “América”: 31 anos de homossexualidade em telenovelas da Rede Globo (1974-2005). In: Revista Contemporânea, ed. 5, v. 3, n. 2, jul./dez., 2005. Disponível em: https://www.contemporanea.uerj.br/pdf/ed_05/contemporanea_n05_04_eduardo.pdf. Acesso em 28 out. 2020.
2 Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000331594. Acesso em 25 mai. 2021.
3 Disponível em: https://www.uol.com.br/splash/colunas/fefito/2020/07/20/ministerio-publico-recebe-denuncia-contra-corte-de-sexo-gay-na-mtv.htm?cmpid=copiaecola. Acesso 28 out. 2020.
4 Justiça mantém condenação de Bolsonaro por declarações homofóbicas. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-mai-09/justica-mantem-condenacao-bolsonaro-declaracoes-homofobicas. Acesso em 10 mai. 2021.
5 Destaca-se trecho do Recurso Especial 1.183.378 – RS, de Relatoria de Luis Felipe Salomão, a respeito do papel contramajoritário das Cortes na proteção dos vulneráveis: “[...] Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo ‘democraticamente’ decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias”.
6 Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp. 1.183.378-SP, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, eis que não há vedação expressa a que se habilitem. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por sua vez, editou a Resolução n. 175, de 14 de maio de 2013, que dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo.