O papel da mulher no ambiente familiar tem sido objeto de reflexão que se verticalizou na pandemia. As desigualdades receberam um foco substancial, embora o tema não seja novo. Esse texto visa a fazer algumas reflexões sobre o tema, a partir de alguns recortes para se analisar a desigualdade de gênero.
As marcas da violência psíquica e patrimonial contra a mulher no contexto da vida familiar
A violência psicológica alcança um número alarmante de mulheres constituído, entretanto, uma das formas que mais permanece encoberta em espesso véu de invisibilidade1.
Muitas são as razões existentes para o descompasso entre o alto índice de ocorrência dessa prática, nos lares brasileiros, e o baixo número de denúncias feitas às autoridades competentes.
Uma das razões desse silêncio velado pode ser facilmente identificada a partir do próprio conceito de violência psicológica descrito no artigo 7º, inciso II da Lei 11.380 de 2006, como “qualquer conduta, que lhe cause dano emocional e diminuição da auto estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”2;
Logo, se constata que a pessoa vítima de violência psicológica vai perdendo, gradativamente sua capacidade de autodeterminação facilitando, desse modo, sua subjugação ao agressor, contribuindo para o aludido silêncio. A violência psicológica não deixa marcas visíveis, como hematomas ou equimoses, que podem ser facilmente vistas e detectadas, porém seus efeitos são mais nefastos, pois traduzem-se, não raras vezes, na fragmentação da própria subjetividade da vítima, levando-a ao adoecimento psicológico3.
Todas essas questões contribuem para a demora das vítimas na busca de auxílio4, fazendo com que muitas delas somente o façam após sofrerem a violência física, ocasião em que passam a temer pela própria vida.
Outra forma de violência que também vem chamando a atenção, não apenas em demandas que tramitam nos juizados da violência contra as mulheres, mas também nas varas de família, é a violência patrimonial.
Fruto de cultura familiar pautada num longínquo patriarcado cujas bases alicerçam muitas famílias brasileiras, atingindo especialmente àquelas famílias estigmatizadas pela exclusão socioeconômica e déficit educacional, dificultando sua condução às conquistas já alcançadas nas questões de gênero.
Por essa razão, em muitos casos, a violência patrimonial não é enxergada como violência, nem mesmo pela própria vítima, em razão dos resquícios insistentes de um patriarcado remoto, que permanece arraigado no inconsciente coletivo de algumas regiões fazendo com que, costumeiramente, a administração do patrimônio do casal permaneça sob a condução exclusivamente masculina.
A violência patrimonial está prevista no inciso IV do art. 7ª da Lei Maria da Penha, traduzindo-se em todo ato que prive a mulher da gestão não apenas de seus bens particulares, como também, do patrimônio conjugal. Nota-se uma tendência ao recrudescimento dessa prática no momento das rupturas da conjugalidade, o que provocou no legislador pátrio de algumas medidas para acautelar a vítima dessas práticas.
Um dos exemplos dessa política legislativa é a medida protetiva descrita no inciso II do artigo 24 da Lei 11.380, de 2006, que possibilita a proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade comum, salvo por expressa autorização judicial.
Esse tipo de violência não ocorre, contudo, apenas sobre bens materiais, mas também no caso, por exemplo, de omissão de prestar alimentos5, tema que será abordado em tópico adiante.
É importante chamar a atenção para necessidade de políticas públicas educacionais para que essas mulheres tenham uma maior compreensão de seus direitos fundamentais para que possam os exercer com mais consciência. A igualdade de gênero ainda permanece como mito na realidade de muitas famílias brasileiras e pode ser vista em várias perspectivas como na cultura da guarda materna e na questão alimentar, temas que serão abordados nos tópicos seguintes.
A cultura da guarda materna e os desafios para a efetivação da igualdade parental
Vem crescendo sobremaneira o número de divórcios com filhos menores de idade. Dados informam que a pandemia aumentou ainda esses números, em razão do confinamento que aguçou as diferenças existentes.
Em 2018, o IBGE informou em suas estatísticas que, no caso de divórcios, embora haja um crescimento dos casos de guarda compartilhada, a mulher continua sendo a responsável prevalente pelos cuidados cotidianos com as crianças. Pesquisa realizada no site do Superior Tribunal de Justiça com o verbete “guarda compartilhada” até o ano de 2019 encontrou 42 acórdãos; depois da lei 13.058/2014 foram 25 decisões, sendo que 17 trataram diretamente sobre o tema da guarda.6 Desses, 11 negaram a guarda compartilhada, ou seja, apenas 6 acórdãos conferiu a guarda compartilhada aos pais.
Embora essa pesquisa tenha o enfoque em questões eminentemente jurídicas, ela confirma os dados do IBGE: o compartilhamento da guarda ainda não é uma realidade em nosso país. Os cuidados diretos das crianças e com o ambiente doméstico de forma geral ainda estão sob a responsabilidade da mãe, o que acaba desvelando um desequilíbrio no exercício da autoridade parental. Esse cenário gera três realidades: a mãe mais onerada, o pai descomprometido com a criação dos filhos e, não se pode deixar de apontar, um ambiente mais propício para o surgimento de alienação parental.
A tradicional divisão sexual do trabalho e funções familiares já foi, há muito superada, quando foi necessário e desejoso (para sua realização pessoal) que a mulher compartilhasse com o homem o sustento do lar; no entanto, não foi com a mesma intensidade que a mulher saiu de casa para o mundo que o homem entrou ativamente para o ambiente doméstico, compartilhando funções. Em alguns casos, o trabalho feminino acabou aumentando, com a jornada dentro e fora de casa. Embora o ordenamento tenha instrumentos para buscar uma maior participação dos pais na vida dos filhos, acabam sendo questionados os meios disponíveis para se convocar que o pai assuma a parte que lhe cabe na criação dos filhos, tais como a fixação de multa, a condenação ao pagamento de indenização por abandono moral, etc. O que se faz realmente necessário é uma mudança na cultura doméstica que abranja toda a realidade social, de modo que ambos possam efetivamente compartilhar os deveres e os afetos dos filhos de maneira equilibrada, eliminando possibilidades de práticas alienadoras.
No âmbito jurídico, também se faz necessária a transformação da cultura que supere a insegurança materna no momento do divórcio e a irresponsabilidade paterna, de modo que as tarefas possam ser divididas de forma mais equilibrada entre os pais e que as crianças tenham oportunidade de conviver com ambos, segundo o seu melhor interesse. Para tanto, é essencial que se construa um plano personalizado de guarda, no qual os pais tenham clareza quanto ao papel de cada um, em que se supere a visão da autoridade parental como direito, para que ela seja assumida como dever e compromisso parental.
Um problema que se soma à ausência de divisão equitativa das responsabilidades com a parentalidade, dada a cultura da guarda unilateral materna, que ainda ocorre na esfera fática, embora o direito tenha materializado a guarda compartilhada como modelo padrão, é a visão do judiciário no que tange aos alimentos.
Além da sobrecarga do trabalho doméstico, atividade esta não reconhecida como laborativa, a mulher ainda precisa enfrentar as dificuldades estruturais no mercado de trabalho. O Fórum Econômico mundial prevê que a tão esperada igualdade entre homens e mulheres só será alcançada em 2095. As mulheres têm menos oportunidades e menor remuneração, para além da jornada doméstica que ainda lhe é imposta. Esta cultura patriarcal ainda gera para a mulher a decisão de se afastar do mercado de trabalho ou investir menos em sua carreira profissional, para ter maior dedicação à casa e aos filhos, decisão esta que se torna um grande problema quando da ruptura conjugal.
Alimentos
As decisões judiciais que tratam de alimentos estabelecem critérios de fixação de percentuais que não correspondem à realidade de vida do brasileiro e essa é uma conta simples: a população brasileira vive, em sua maioria, com poucos recursos e atualmente 25% da população brasileira vive abaixo da linha da pobreza (com renda de até R$ 420,00), o que significa dizer que a grande maioria das pessoas reverte cem por cento de suas rendas para a manutenção doméstica.
Quando ocorre uma ruptura conjugal, a discussão que permeia a ação de alimentos é de percentuais que levam em consideração o número de pessoas alimentandas para definição de critérios de fixação. Os percentuais mais comuns chegam até 30% da renda do alimentante o que implica, por óbvio numa brusca mudança de padrão para todas as partes envolvidas. Mas se imaginarmos que com a mencionada ruptura, um homem arcará com o percentual de 30% de seus rendimentos para a esposa e filhos (situação típica levada ao judiciário), aquela renda, que antes era de 100% para os componentes de uma casa, se transforma em uma divisão extremamente desigual e cruel.
Além disso, a mulher ainda precisa lidar com a pressão de retomada de suas atividades profissionais para poder fazer frente às suas despesas e de eventual prole. A jurisprudência firmou entendimento de que a mulher jovem e saudável não faz jus a alimentos com o divórcio ou dissolução da união estável, recomendando que esta pensão fixada seja, no máximo transitória. O posicionamento é coerente, no entanto, para uma sociedade que oferece condições para a inserção desta mulher no mercado de trabalho.
Contudo, esta retomada da atividade profissional enfrentará, além das dificuldades já conhecidas para as mulheres no mercado de trabalho, a realidade feminina que assume também as tarefas domésticas quase que exclusivamente, diante de uma ruptura. As decisões chegam a ser discriminatórias, jogando as mulheres no lugar comum da pessoa que “não quis” desenvolver-se profissionalmente, quando em verdade, muitas vezes, esta foi uma imposição ao longo da conjugalidade. Estabelecer para a mulher um pensionamento transitório de acordo com o real padrão de vida familiar é mais do que um direito, é um dever para lhe oportunizar o alcance mais rápido e digno de sua autonomia e sustento.
Considerações finais
Conforme analisado, a paternidade responsável, pautada no afeto e na solidariedade parental, ainda é um desafio para a efetivação da igualdade substancial nas relações familiares. A figura do homem provedor e chefe de família, sem a responsabilidade primeira sobre as tarefas domésticas e os cuidados com a prole – destinados, prioritariamente, à mulher – resiste nos costumes e pensamentos da sociedade atual, apesar da consagração da igualdade parental no plano normativo.
A cultura da guarda materna, ainda não superada apesar da consagração formal da guarda compartilhada como regra no Brasil, está longe de ser um “privilégio” concedido às mulheres. E mesmo nos reduzidos casos de compartilhamento de guarda estabelecidos pelo Judiciário brasileiro, a fixação do lar de referência materno, com a imputação à mulher quanto aos cuidados diretos da prole, reforçam a sobrecarga feminina de trabalho informal e potencializam os desafios para a autonomia feminina.7
O cenário se torna ainda mais preocupante em face dos números alarmantes de violência doméstica e familiar contra mulheres por parte de companheiros ou ex-companheiros, que, segundo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, representou 88,8% dos casos de feminicídio registrados no país, apesar dos instrumentos de proteção já consagrados.8
As mais variadas formas de violência de gênero ocorridas nas relações familiares, encobertas pela naturalização dos papéis de autoridade e domínio dos homens, também constituem obstáculos para o respeito e proteção da dignidade humana das mulheres na família, além de potencializar a vulnerabilidade de crianças e adolescentes, alvos ainda mais propícios de violações nesse contexto.
A discussão aqui proposta está, portanto, indissociável dos papéis desiguais de gênero que, frutos de um sistema jurídico patriarcal que vigorou por séculos no Brasil, vêm sendo perpetuados ao longo de gerações, subjugando não apenas mulheres, mas também crianças e adolescentes. E apesar dos inegáveis avanços legislativos para o respeito e proteção das pessoas vulneráveis, notadamente com o reconhecimento formal da igualdade e a superação normativa do modelo único de família patriarcal, o debate jurídico carece descer à concretude das relações familiares, observando a realidade fática para, assim, alcançar os meios adequados para a efetivação da igualdade substancial.
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1 DataSenado. Disponível em: clique aqui. Acesso em 24 de junho de 2020.
2 Lei 11.380/2006; Disponível em clique aqui. Acesso em 30 de setembro de 2020.
3 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 37.
4 MELLO, Adriana Ramos de. PAIVA, Lívia de Meira Lima. Lei Maria da Penha na prática. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p.86.
5 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 5. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 100.
6 Duas delas abordaram mais questões processuais.
7 Segundo o IBGE, em 2019, enquanto as mulheres despendem 18,5 horas por semana com tarefas domésticas, os homens dedicam apenas 10,3 horas. Disponível em: clique aqui. Acesso em 22 de outubro de 2020.
8 Disponível em: clique aqui. Acesso em 22 de outubro de 2020.