Texto de autoria de Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida
"A morte é um problema dos vivos", afirma Norbert Elias1. Um problema ainda mais tormentoso e desafiador em razão da pandemia do coronavírus, novo agente descoberto em 31 de dezembro de 2019, após casos registrados na província de Wuhan, na China, e que rapidamente se espalhou pelo mundo. O momento atual apresenta um aspecto incomum da morte, em sua atuação cotidiana: o surgimento abrupto de um número assustador de óbitos, em curto prazo, em razão da pandemia provocada pelo denominado novo coronavírus, causador da Covid-19, doença que assola a humanidade desde fins de 2019. Mas, para além da quantidade, a morte decorrente dessa doença se reveste de um aspecto novo, quando se considera a família e amigos dos que falecem: a invisibilidade do morto.
Em razão da fácil contaminação por um vírus novo e desconhecido, para o qual não há, ainda, medicação específica ou vacina, a pessoa contaminada deve entrar em quarentena e, em caso de agravamento, ser hospitalizada em regime de isolamento e não raro, encaminhada para o CTI (Centro de Terapia Intensiva), do qual nem todos retornam. Desse modo, o doente ao ser hospitalizado se afasta dos familiares, que não mais podem vê-lo ou tocá-lo2. Como se constata, a interrupção do contato com o doente que vem a falecer, embora indispensável para preservação da saúde de todos, sejam familiares, responsáveis, profissionais da saúde e da sociedade em geral, impede não só o acompanhamento, mais próximo, do processo de morte, como também a realização de cerimônias fúnebres culturalmente adotadas até o sepultamento ou cremação do falecido. Não há, em síntese, a despedida daquele que parte, do modo usual no Brasil. A morte torna-se, portanto, invisível.
A morte, em geral, é um tabu em tempo de normalidade civilizatória, um tema evitado, se não rejeitado pela maioria das pessoas. Há quem acredite que a simples menção ao assunto já a atrai. Cada comunidade tem seus rituais, que observam uma série de ritos para permitir que a transição entre o viver e o morrer ocorra da forma correta, de acordo com as tradições e costumes de cada região. Além disso, os ritos funerários amenizam a dor e o sofrimento dos familiares, a partir de um processo de luto individual indispensável para a percepção da trajetória da vida do falecido e de novos rumos a serem tomados por aqueles que perdem seus entes queridos. À morte atribui-se uma eficácia ritual que revela seu poder temível e negativo. José Carlos Rodrigues observa que "o morto, como as coisas insólitas, anormais ou ambíguas, constitui um ser impuro cujo contato representa perigo para o mundo das normas"3. Em tempos de pandemia, como a vivenciada em razão do novo coronavírus, a morte apresenta uma face desconhecida, talvez mais temível, que é o distanciamento daquele que vai "partir", uma lacuna entre o vivo e o morto, que jamais será preenchida. A ausência dos rituais que marcam o início do luto impossibilita a externalização da dor e do sofrimento, segundo os ritos e crenças individuais e coletivos. Os rituais da morte são modificados ou suspensos, alterando, quando não suprimindo, a resposta das pessoas e da sociedade à morte.
Apesar da certeza da finitude como um destino comum da humanidade, a experiência da morte é específica e variável de acordo com cada comunidade. Norbert Elias observa que o problema não é a morte, mas o seu conhecimento que atinge os seres humanos4. O medo da morte é amenizado, para muitos, pela "fantasia coletiva de uma vida eterna em outro lugar"5. Medo e dor permeiam a transitoriedade da vida. O medo não é uma novidade para a humanidade, que o conheceu desde o seu princípio. "É por isso que ser humano significa também experimentar o medo"6. A maior das ameaças é o fim, abrupto e terminal, e a morte constitui o arquétipo desse fim. O medo nos lembra diariamente da transitoriedade humana e que estamos, ao mesmo tempo, "atrelados ao tempo e limitados pelo tempo"7.
A morte é rechaçada silenciosamente na vida cotidiana, embora esteja "presente em todos os momentos, nas mitologias, no ritual, no inconsciente". A tentativa de dar invisibilidade à morte é derrotada pelo fascínio que ela exerce sobre as pessoas e, por isso, torna-se "ambicionada mercadoria jornalística". Nos veículos de comunicação de massa, como os jornais, e no cinema a morte é incansavelmente reverberada, "vendendo para cada um de nós um sentimento que está reprimido na profundidade de cada alma"8. Em tempos de pandemia, a temível morte é desnudada, torna-se mais próxima. A ameaça do fim torna-se concreta, real e palpável. O poder negativo da morte é potencializado pelo medo das pessoas e pelas notícias sobre o número de óbitos provocados pela Covid-19, atualizado diariamente em todos os veículos de comunicação. Fato é que a exaltação da morte, em tempos de pandemia, é reforçada, enquanto sua "silenciosa dissimulação na vida cotidiana" se dissipa com o aumento do número de mortes provocados pela nova doença. A morte já não é mais tão banida das conversas, obscurecida por metáforas e "escondida das crianças"9.
É preciso compreender que a "pessoa' não termina com a morte que atinge seu corpo biológico, quer para efeitos jurídicos, quer para efeitos culturais. A memória da trajetória de vida permanece e repercute na construção da subjetividade dos membros da comunidade. De fato, a "morte não pode ser esquecida com facilidade"10. A pandemia assusta à medida em que os processos de morte e de luto são transformados. Cenários hipotéticos e excepcionais tornam-se comuns e diários. A possibilidade de sepultamento sem o registro do óbito, a cremação para fins de interesse da saúde pública, as restrições aos velórios e enterros, são questões importantes, que se somam à solidão dos pacientes terminais da Covid-19 e à impossibilidade da despedida antes do fim da vida, situação das mais delicadas nessa pandemia.
Embora muitas vezes invisível e repugnante, a morte é uma vicissitude inerente à vida e seu processo integra a própria condição humana. Em "As intermitências da Morte", José Saramago demonstra que a imortalidade pode se tornar um problema e o que ambíguo sentimento de repulsa e fascínio diante da morte é inerente ao ser humano. Na situação ficcional criada pelo genial autor, a "falta de falecimentos logo se revela um problema, e não só para as agências funerárias. Os hospitais ficam lotados de pacientes agonizantes impedidos de 'passar desta para melhor'. E os idosos avançam na decrepitude sem esperança de descanso (nem para eles, nem para as suas famílias)"11. A morte em tempos pandêmicos, surgidos de forma abrupta, é inesperada e, acima de tudo, gera o medo profundo de se morrer solitariamente entubado, na frieza de um CTI. O drama da finitude da vida se torna repentinamente exposto, atingindo todos a um só tempo, fato que põe em xeque os modos de viver e agrava os dilemas da existência.
A solidão da morte não é, contudo, uma exclusividade dos períodos de pandemia. Como se sabe, na contemporaneidade, o processo da morte foi altamente medicalizado. No passado, era comum as pessoas morrerem em casa rodeadas por seus familiares. Um discurso mais racional e higiênico da morte impõe que os pacientes internados tenham pouco, como regra nenhum, contato com os familiares. Nesse sentido, já se observou que "nunca antes as pessoas morreram tão silenciosas e higienicamente como hoje nessas sociedades, e nunca em condições tão propícias à solidão"12. O que a Covid-19 descortina é mais do que uma situação criada pela racionalidade médica. Trata-se em verdade de um dilema, visto que, no caso, o isolamento forçado de pacientes graves e em risco de vida serve para salvar outras pessoas, ainda que a um custo altíssimo para os moribundos e os familiares.
Na verdade, a pandemia torna importante, mais do que nunca, se debater a "desmitologização" da morte, o que requer uma "consciência muito mais clara de que a espécie humana é uma comunidade de mortais e de que as pessoas necessitadas só podem esperar ajuda de outras pessoas"13. Este é o momento de abrir um franco diálogo sobre as mortes, suas condições e consequências, em lugar de tornar o tema silencioso e esquecido. A morte pandêmica deixa de ser uma questão particular, familiar, e se torna coletiva, isto é, um problema social. Todavia, como alerta Norbert Elias, o "problema social da morte é especialmente difícil de resolver porque os vivos acham difícil identificar-se com os moribundos"14. A pandemia da Covid-19 atinge todos, vulnerados ou não, o que exige uma postura solidária e de alteridade. Contudo, na verdade, cada sociedade apresenta uma resposta à morte a partir das contingências históricas, o que descortina os valores centrais de sua estrutura social.
Cabe lembrar, por outro lado, que a morte é um processo, assim como o nascimento, "uma sequência de ocorrências, das quais uma é escolhida para caracterizar o termo inicial da produção ou cessação de efeitos jurídicos"15. Compreender a morte como um momento estático para fins jurídicos reduz o fenômeno e impede uma análise de todas as consequências que tal fato produz, o que adquire maior relevância em tempos de pandemia com índices de mortes significativos. Por isso, "não é só uma questão do fim efetivo da vida, do atestado de óbito e do caixão"16. Uma visão da morte como processo descortina a necessidade de proteção dos momentos anteriores ao fim da vida, bem como do respeito à fase de luto dos viventes. Isso permite visualizar que "muitas vezes a partida começa muito antes"17.
O Código Civil estabelece a morte como o fim da existência da pessoa natural, conforme o art. 6º. Em outros termos, a morte extingue a personalidade, a qualidade de pessoa reconhecida aos seres humanos que nascem com vida, e que têm, como tal, aptidão para titularizar direitos e contrair obrigações. Não há na Lei Civil requisitos para se caracterizar, de modo geral, a morte18. Compete aos médicos atestar a morte e preencher a Declaração de Óbito, conforme requisitos regulamentares19. De acordo com o art. 9º, I, do Código Civil, c/c art. 77 a 88, da lei 6.015/1973, os óbitos devem ser registrados no Registro Civil de Pessoas Naturais competente. A certidão extraída desse registro é prova bastante da morte, para todos os fins. Além disso, nos termos do citado art. 77, nenhum sepultamento será feito sem certidão do oficial de registro do lugar do falecimento ou do lugar de residência do de cujus, quando o falecimento ocorrer em local diverso do seu domicílio, extraída após a lavratura do assento de óbito, em vista do atestado de médico.
A severidade dos efeitos da pandemia de Covid-19 no Brasil acabou por mobilizar o legislador diante das situações de exceção, especialmente no que diz respeito aos óbitos. Talvez tenha sido lembrado o cenário mefistofélico de colapso dos serviços funerários, presenciado durante a epidemia de gripe espanhola. No Rio de Janeiro, registros históricos revelam que "pouco a pouco, as ruas da cidade se transformaram em um mar de insepultos, pela falta de coveiros para enterrar os corpos e de caixões onde sepultá-los"20.
Em 06 de fevereiro de 2020, portanto, poucos dias depois da Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional pela OMS, que data de 30 de janeiro de 2020, foi promulgada a lei 13.979, dispondo sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, estabelecendo em seu art. 3º, inciso V, a possibilidade das autoridades públicas, no âmbito de suas competências, adotarem como medida a exumação, a necropsia, a cremação e o manejo de cadáveres.
Em 28 de abril de 2020 foi assinada, pelo Corregedor Nacional de Justiça e pelo Ministro da Saúde, a Portaria Conjunta n. 2, para estabelecer procedimentos excepcionais para sepultamento de corpos durante a situação de pandemia do Coronavírus, com a utilização da Declaração de Óbito emitida pelas unidades notificadores de óbito, na hipótese de ausência de familiares, de pessoa não identificada, de ausência de pessoas conhecidas do obituado e em razão de exigência de saúde pública. Esta Portaria revogou a Portaria Conjunta nº 1, de mesma origem, datada de 30 março de 2020, que tratava da mesma matéria, com alterações que merecem destaque.
O confronto de ambas as Portarias revela, já na ementa da Portaria Conjunta n. 2, um pouco mais de clareza quanto aos casos em que é possível o sepultamento com a utilização da Declaração de Óbito, emitida pelas unidades notificadoras de óbito: (a) ausência de familiares; (b) pessoa não identificada; (c) ausência de pessoas conhecidas do obituado; e (d) exigência de saúde pública. Contudo, de acordo com art. 1º21, da Portaria Conjunta n. 2, na hipótese de ausência de familiares ou pessoas conhecidas do obituado ou em razão de exigência de saúde pública, está autorizado o encaminhamento dos corpos à coordenação cemiterial do município, para o sepultamento, com a prévia lavratura do registro civil de óbito e quando não for possível, apenas com a declaração de óbito (DO) devidamente preenchida. Vale dizer: o óbito será registrado e o sepultamento poderá ser feito ainda que ausentes familiares ou conhecidos do obituado ou por exigência sanitária.
Embora não haja referência à pessoa não identificada no caput do art. 1º, da Portaria em exame, cabe lembrar que é possível o registro do óbito em tal caso, nos termos do art. 81, da lei 6.015/1973, a partir de elementos identificadores, indicados no próprio artigo22 e nos §§ 2º, 3º e 5º, do art. 1º, da Portaria Conjunta n. 2. Constata-se, portanto, que o sepultamento – apenas com a declaração de óbito devidamente preenchida, conforme art. 1º, da Portaria Conjunta n. 2, está autorizado “quando não for possível” o prévio registro do óbito, o que possivelmente se dará mormente por razões dos cuidados de biossegurança e manutenção da saúde pública, ou, em hipóteses mais restritas, por falta de condições materiais para sua realização, como por exemplo, falta de pessoal para tomar as providências necessárias ao registro, ausência de meio eletrônico, inexistência ou distanciamento excessivo do Cartório. Observe-se que o prazo, para lavratura dos registros civis de óbito dos casos de que trata a Portaria Conjunta n. 2, foi dilatado e esses podem ser realizados em até sessenta dias após a data do óbito, a teor de seu art. 2º. Possível concluir, diante de tais disposições, que a regra geral, contida na Lei n. 6.015/1973, de exigência do prévio registro do óbito para sepultamento, foi mantida, mas por exceção, nas hipóteses acima ventiladas, poderá ser feito o sepultamento apenas com a declaração de óbito devidamente preenchida.
Alteração de grande importância diz respeito à proibição de cremação dos restos mortais de pessoas não identificadas ou que, identificadas, não tiverem seus corpos reclamados por familiares. Os restos mortais em tais casos devem ser sepultados para possibilitar exumação para eventual posterior confirmação de identidade, conforme § 7º23, do art. 1º, da Portaria Conjunta n. 2. Assegurou-se, desse modo, o legítimo direito dos familiares do falecido de providenciarem a inumação. Observa-se, contudo, que o § 2º do art. 77 da lei 6.015/1973 permite a cremação de cadáver no interesse da saúde pública se o atestado de óbito houver sido firmado por dois médicos e um médico legista. O dispositivo não restringiu tal hipótese aos cadáveres identificados ou não. A Portaria Conjunta n. 2 parece ter proibido a cremação de corpos não identificados durante a pandemia da Covid-19 para permitir futura inumação para fins de identificação.
Sem dúvida, a Covid-19 atinge, indistintamente, todas as camadas sociais. Certamente, no entanto, a ocorrência de óbito será mais complexa, se não cruel, para as populações mais carentes, quando se considera a notória precariedade do atendimento médico-hospitalar no Brasil, mesmo em condições normais e mesmo os serviços funerários. Os efeitos das mortes ocorridas durante a pandemia afetam, portanto, mais fortemente as famílias mais vulneráveis, especialmente quando se considera a sobreposição das identidades sociais, baseadas na cor, no gênero, nas escolhas de gênero e nas diferenças, muitas vezes abissais, das condições socioeconômicas existentes na sociedade brasileira24. Essas interseccionalidades agravam o impacto sofrido pelas famílias, que têm diminuído, quando não restringido, o acesso ao tratamento necessário para a Covid-19, a hospitais, e – principalmente – a informações sobre seus doentes, que entram nos hospitais e, não raro, nunca mais são vistos, uma vez que, ocorrendo seu falecimento, os familiares, ressalvada a pessoa que houver feito a identificação do corpo, retirarão do hospital uma urna lacrada25.
No mundo todo, há esforços em andamento para o adequado gerenciamento e contingenciamento dos serviços funerários para evitar o seu colapso. Ainda assim, algumas cenas são consternadoras mundo afora. Em especial, a situação do Equador é desoladora na América do Sul. Com o colapso dos sistemas de saúde e funerário, cadáveres demoram a ser recolhidos, o que tem levado os familiares a abandonarem os corpos em vias públicas. Uma força-tarefa composta pelo exército e policiais militares foi criada para recolher os corpos abandonados por todo país. Após o acúmulo de corpos de vítimas do coronavírus pelas ruas da cidade equatoriana de Guayaquil, epicentro da pandemia no país, há notícias de corpos sendo queimados nos cemitérios e, segundo autoridades municipais, "não há espaço nem para vivos, nem para mortos" nos hospitais e cemitérios da cidade. Há relatos de familiares que não conseguem localizar os parentes que estavam internados e morreram26. No estado norte-americano de Nova Iorque, em razão do elevadíssimo número de mortes, decidiu-se cavar valas comuns para sepultamento em massa das vítimas da Covid-19 em Hart Island, no distrito do Bronx, um lugar tradicionalmente usado na cidade de Nova Iorque para sepultar aqueles cujas famílias não podem arcar com um funeral ou um jazigo27.
No Brasil, a situação inspira cuidados com a curva de crescimento da epidemia e o número já significativo de mortes. No maior cemitério da América Latina – cemitério da Vila Formosa – , localizado na zona leste da cidade de São Paulo, no início de abril uma imagem estampou o The Washington Post com a abertura de dezenas de covas28. Em Manaus, os serviços funerários já apresentam sinais de colapso e cenas desoladoras com enterros noturnos, caixões empilhados e covas em vala comum separados apenas por uma tábua29. A preocupação sobre um colapso funerário já mobilizou até as Forças Armadas, que enviaram ofícios a algumas prefeituras do Estado Rio de Janeiro com a solicitação do número de sepulturas disponíveis para traçar um plano emergencial nas localidades que apontarem déficits30. Constata-se, portanto, que em diversas capitais brasileiras o sistema funerário já apresenta sinais de colapso e um tratamento indigno às famílias e vilipendioso aos cadáveres.
Diante desse quadro, de todo indispensável pensar em formas seguras de amenizar a solidão dos pacientes terminais por meios eletrônicos, e, principalmente, permitir, ainda que minimamente, rituais por familiares sempre que possível e com a segurança necessária. O respeito aos mortos e aos seus familiares impõe tais medidas de alento e cuidado com os familiares em período tão difícil de pandemia. Um alerta fundamental é impedir que os moribundos – portanto, ainda vivos – se sintam excluídos do mundo dos viventes31. É preciso ter afeição recíproca até o fim da vida. Pensar em formas de amenizar a dor e a solidão dos pacientes internados por causa da Covid-19. São simbólicas as cenas de despedidas dos familiares por meio de celulares ou outro meio virtual. Se a presença física se torna arriscada em razão da contaminação, meios eletrônicos permitem amenizar a agonia do fim. A necessidade de isolamento não deve silenciar inexoravelmente o fim da vida dessas vítimas, sem que se tente atenuar sua solidão. Emocionante história circulou na internet, envolvendo Dona Maria Silva, de 90 anos. Seu filho foi vítima de complicações pela Covid-19 e ela não se conformou por não ter velado e sepultado o corpo. No entanto, a funerária atendeu seu pedido de mudar o percurso do carro funerário, que levava o caixão até o cemitério, e passou em frente de sua casa, para que a mãe de despedisse do filho pela última vez, mesmo que à distância32.
É imperioso, ao menos, respeitar as milhares de perdas, ter empatia com a dor e sofrimento dos familiares e amigos. As mortes causadas por uma pandemia dessa magnitude não são apenas números para fins estatísticos, mas histórias de vida abreviadas e desperdiçadas. A morte não se resume ao fim da personalidade de um indivíduo, uma vez que transborda sua existência e alcança o grupo social em que conviveu. Assim sendo, a "sociedade tem de se apropriar desse processo natural porque, se os indivíduos morrem, ela [a morte], pelo contrário, sobrevive"33. É preciso compreender, mesmo em tempos que escapam à normalidade do cotidiano, que o "que se teme da morte é exatamente o que ela tem de morte e o que nela se cultua é o amor à vida"34.
Em tempos de pandemia se apropriar do processo da morte é extremamente difícil, mas necessário para oferecer um tratamento digno e humano aos pacientes terminais da Covid-19, além de conforto e respeito pelo luto dos familiares e demais entes queridos. A neutralidade emocional, o desprezo e especialmente a repugnância diante dos mortos pela Covid-19 ou dos pacientes em estágio terminal evidenciam, de forma contundente, não como a sociedade reage e responde aos mortos, mas como trata os vivos.
*Heloisa Helena Barboza é professora Titular de Direito Civil e Diretora da Faculdade de Direito da UERJ. Doutora em Direito pela UERJ e em Ciências pela ENSP/FIOCRUZ. Especialista em Ética e Bioética pelo IFF/FIOCRUZ.
**Vitor Almeida é doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Discente do Estágio Pós-Doutoral do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ. Professor do Instituto de Direito da PUC- Rio.
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1 ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 10.
2 Em caso de óbito, as regras sanitárias do Ministério da Saúde sobre “Manejo dos corpos no contexto do novo coronavírus (COVID-19)” determinam a embalagem do corpo em três camadas e sua acomodação em urna a ser lacrada antes da entrega aos familiares ou responsáveis. Após lacrada, a urna não deverá ser aberta, em razão da possibilidade de contaminação. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis. Manejo de corpos no contexto do novo coronavírus – COVID-19. Versão 1, Brasília, 2020. Disponível aqui. Acesso em 15 maio de 2020.
3 RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. 7. ed., rev., Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006, p. 52.
4 ELIAS, Norbert. Op. cit., p. 11.
5 ELIAS, Norbert. Op. cit., p. 44.
6 BAUMAN, Zygmunt. Vida em fragmentos: sobre ética pós-moderna. Trad. Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 143-144. (grifo no original)
7 Id. Ibid., p. 144. (grifo no original)
8 RODRIGUES, José Carlos. Op. cit., p. 52.
9 Id. Ibid., p. 52.
10 Id. Ibid., p. 54.
11 SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo Companhia das Letras, 2005. Trecho retirado da orelha do livro.
12 ELIAS, Norbert. Op. cit., p. 98.
13 ELIAS, Norbert. Op. cit., p. 98.
14 Id. Ibid., p. 9.
15 BARBOZA, Heloisa Helena. Autonomia em face da morte: alternativa para a eutanásia? In: PEREIRA, Tânia da Silva; MENEZES, Rachel Aisengart; BARBOZA, Heloisa Helena (orgs.). Vida, Morte e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2010, p. 33.
16 ELIAS, Norbert. Op. cit., p. 8.
17 Id. Ibid., p. 8.
18 A lei 9.434/1997 (Lei de Transplantes) estabelece o critério da morte encefálica para fins de transplante post mortem em seu art. 3º.
19 Resolução CFM nº 1.779/2005 regulamenta a responsabilidade médica no fornecimento da Declaração de Óbito. Vide, ainda, arts. 83 e 84 do Código de Ética Médica (Res. CFM n. 2.217/2018).
20 GOULART, Adriana da Costa. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 12, n. 1, p. 101-42, jan./abr. 2005, p. 104.
21 "Art. 1º Autorizar as unidades notificadoras de óbito, na hipótese de ausência de familiares ou pessoas conhecidas do obituado ou em razão de exigência de saúde pública, a encaminhar à coordenação cemiterial do município, para o sepultamento, os corpos com a prévia lavratura do registro civil de óbito e quando não for possível, apenas com a declaração de óbito (DO) devidamente preenchida".
22 "Art. 81. Sendo o finado desconhecido, o assento deverá conter declaração de estatura ou medida, se for possível, cor, sinais aparentes, idade presumida, vestuário e qualquer outra indicação que possa auxiliar de futuro o seu reconhecimento; e, no caso de ter sido encontrado morto, serão mencionados esta circunstância e o lugar em que se achava e o da necropsia, se tiver havido".
23 "Art. 1º. [...] §7º Os restos mortais de pessoas não identificadas ou que, identificadas, não tiverem seus corpos reclamados por familiares, não deverão ser levados a cremação, mas sepultados, o que possibilitará exumação para eventual posterior confirmação de identidade".
24 A questão do agravamento severo da vulnerabilidade em razão da pandemia, é bem esclarecida por Boaventura de Sousa Santos, em sua obra "A cruel pedagogia do vírus", em que saliente que "qualquer quarentena é discriminatória, mais difícil para uns grupos sociais do que para outros e impossível para um vasto grupo de cuidadores, cuja missão é tornar possível a quarentena ao conjunto da população". Por isso, alguns grupos "padecem de uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com ela". SANTOS, Boaventura de Souza. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020, n. p. Disponível aqui. Acesso em 05 maio 2020.
25 O Ministério da Saúde, em seu Manual Para Manejo dos Corpos – COVID-19, preocupou-se com o apoio à família, estabelecendo ser "necessário fornecer explicações adequadas aos familiares/responsáveis sobre os cuidados com o corpo do ente falecido", mas recomendando, de modo destacado, que "a comunicação do óbito seja realizada aos familiares, amigos e responsáveis, preferencialmente, por equipes da atenção psicossocial e/ou assistência social", o que "inclui o auxílio para a comunicação sobre os procedimentos referentes à despedida do ente". BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis. Manejo de corpos no contexto do novo coronavírus – COVID-19. Versão 1, Brasília, 2020, p. 5. Disponível aqui. Acesso em 15 maio de 2020.
26 Disponível aqui. Acesso em 30 abr. 2020.
27 Disponível aqui. Acesso em 16 maio 2020.
28 Disponível aqui. Acesso em 10 maio 2020.
29 Disponível aqui. Acesso em 17 maio de 2020.
30 Disponível aqui. Acesso em 05 maio de 2020.
31 ELIAS, Norbert. Op. cit., p. 76.
32 Disponível em: . Acesso em 18 abr. 2020.
33 RODRIGUES, José Carlos. Op. cit., p. 61.
34 Id. Ibid., p. 62.