Migalhas de Responsabilidade Civil

Seguro (E&O) de reponsabilidade civil profissional e a (i) legitimidade passiva da seguradora nas ações de reparação civil: Uma análise do novo marco legal dos seguros (lei 15.040/24) e do anteprojeto de reforma do CC

O texto analisa as novas regras sobre seguros no Brasil, destacando litisconsórcio, intervenção de terceiros e conflitos legislativos.

17/12/2024

O regramento do contrato de seguro do CC/02 passa por um momento histórico e evolutivo de modo a atender a várias situações fático-jurídicas até então não contempladas em seu texto ou previstas de forma insuficiente.

Trata-se da lei 15.040/24 como o novo marco legal dos seguros, oficialmente publicada no dia 10/12/14, oriunda do PL 2597/24. Referida lei, cujo período de vacatio legis é de um ano a contar da data da publicação, revogou todos os dispositivos do capítulo XV do título VI da parte especial do CC/02 destinados à regulamentação do seguro privado.

Contudo, há também em vista as propostas de alteração pelo anteprojeto de reforma do CC, em relação ao regulamento do contrato de seguro, mas nem todas em sintonia com os enunciados normativos do novo marco legal.

É o caso da participação da seguradora no polo passivo das ações de reparação civil propostas pela vítima de danos causados por profissionais que tenham a responsabilidade civil segurada. Nesse aspecto, em especial, as previsões da nova lei de seguros e do anteprojeto são díspares.

A legitimidade ad causam, ou legitimidade para a causa, é um pressuposto subjetivo de validade e desenvolvimento regular de um processo, um requisito para que os sujeitos atuem regularmente na demanda.

Segundo Fredie Didier, “é a pertinência subjetiva da demanda”. O autor pontua que é necessário que “os sujeitos da demanda estejam em determinada situação jurídica que lhes autorize a conduzir o processo em que se discuta aquela relação jurídica de direito material deduzida em juízo.” (p. 343 – Didier Júnior, Fredie). 

É imprescindível, pois, que, em regra, haja correspondência total entre a situação jurídica submetida à apreciação judicial e a situação que legitima as partes a discuti-la em defesa de seus respectivos interesses.

Relativamente ao seguro de responsabilidade civil profissional, em caso de sinistro, a legitimidade ativa é do terceiro, vítima do dano. Mas quem tem legitimidade para compor o polo passivo dessa relação processual? Em regra, o profissional, causador do dano.

E qual o papel da seguradora nesse cenário processual? A obrigação da seguradora é deflagrada pela ocorrência do sinistro. Uma das hipóteses legais e contratuais de sua ocorrência é a condenação do profissional em virtude de decisão judicial condenatória transitada em julgado prolatada no bojo de um processo de conhecimento no qual o profissional segurado (um médico, por exemplo) tenha a oportunidade de se defender. Um processo no qual lhe sejam oportunizadas todas as prerrogativas do princípio da ampla defesa e do contraditório.

E ainda que venha a ter sua responsabilidade civil pelo dano causado realmente reconhecida, o ato ou fato que deram ensejo a ela podem ou não estar previstos na cobertura securitária.

Por tais razões, o dever da seguradora de pagar a indenização ao terceiro, vítima do dano e autor da ação, ocorrerá se: (i) em virtude de um comando judicial forem reconhecidos os pressupostos da responsabilidade civil e (ii) o ato ou fato do profissional estiverem dentro do âmbito de cobertura da apólice e no período de sua vigência.

Como pode, então, a seguradora compor o polo passivo nesse tipo de ação em referência? Será na qualidade de ré ou de terceira por meio de uma das espécies de intervenção de terceiros?

Nesse contexto, pergunta-se: Qual a relação jurídica da seguradora com o terceiro, vítima do dano? A resposta é nenhuma. Nenhuma relação jurídica. Daí, indaga-se: Instaura-se um litisconsórcio? Caso positivo, de qual natureza? Facultativo ou necessário? Ou caberia alguma hipótese de denunciação da lide? Ou, ainda, seria cabível o chamamento ao processo?

Pois bem. No anteprojeto de reforma do CC foi inserido o § 5º ao art. 787, abaixo transcrito:

§ 5º É cabível a ação direta do terceiro contra a seguradora e o segurado conjuntamente, respeitados os limites e as condições estipulados na apólice.

A redação do dispositivo supratranscrito permite que várias interpretações sejam extraídas de seu texto normativo, notadamente da expressão “conjuntamente”. Com efeito, poderia ser tal expressão interpretada como uma solidariedade passiva, uma legitimação extraordinária, um litisconsórcio passivo, uma colegitimação ou, ainda, uma denunciação da lide?

Qual é, afinal, a intenção do legislador ao permitir, por meio de uma norma de natureza processual no diploma civil, o cabimento da ação proposta pela vítima do dano direta e conjuntamente contra segurado e seguradora?

Em paralelo, com a publicação da nova lei 15.040/24 em 10/12/24, outra redação foi conferida no tocante à participação da seguradora no polo passivo da ação de reparação civil contra o profissional segurado, conforme se verifica nos arts. 101 e 102 abaixo transcritos. Contudo, assim como o anteprojeto, não elucida a dúvida e controvérsia acerca da espécie de intervenção de terceiros apta a integrá-la ao processo ao preceituar, textualmente, a sua condição de litisconsorte por meio da possibilidade do segurado “chamá-la”, porém, sem responsabilidade solidária. 

Art. 101. Quando a pretensão do prejudicado for exercida exclusivamente contra o segurado, este será obrigado a cientificar a seguradora, tão logo seja citado para responder à demanda, e a disponibilizar os elementos necessários para o conhecimento do processo. Parágrafo único. O segurado poderá chamar a seguradora a integrar o processo, na condição de litisconsorte, sem responsabilidade solidária.

Art. 102. Os prejudicados poderão exercer seu direito de ação contra a seguradora, desde que em litisconsórcio passivo com o segurado. Parágrafo único. O litisconsórcio será dispensado quando o segurado não tiver domicílio no Brasil.

Nessa conjuntura, apresentam-se possíveis, porém não exaurientes respostas, pautadas em interpretações sistemáticas e teleológicas dos dispositivos em comento.

No que tange ao anteprojeto, uma possível explicação à expressão “conjuntamente”, a princípio, é a hipótese de legitimação extraordinária. Trata-se a legitimação extraordinária de uma legitimação anômala, excepcional. Considera-se a aptidão conferida a alguém para discutir em juízo direito alheio, em nome próprio.

Na legitimação ordinária, ao revés, há exata correspondência entre a situação legitimante e a situação submetida à apreciação do juiz e, em razão disso, uma perfeita coincidência entre os sujeitos dessa relação jurídica com as partes da relação processual.

Pode-se aventar, portanto, a possibilidade da seguradora ser considerada como legitimada extraordinária? Estaria ela defendendo, em nome próprio, os direitos e interesses do segurado?

Pela leitura dos arts. 18 e 190 do CPC/15 e do próprio § 5º do art. 787 do anteprojeto do CC, a resposta pode ser afirmativa no sentido de que o ordenamento jurídico autoriza, excepcionalmente, alguém a pleitear direito alheio em nome próprio, bem como prevê a possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais.

Amparada na previsão normativa do § 5º do art. 787 do anteprojeto que admite o cabimento da ação conjuntamente contra o segurado e seguradora, seria viável a legitimação extraordinária. Baseando-se em uma interpretação teleológica da norma em comento, essa seria, portanto, uma hipótese cabível.

Para tanto, procura-se afastar a possibilidade de colegitimação que é o concurso de legitimados quando a lei atribui a legitimidade para várias pessoas, de forma concorrente e simultânea, a fim de discutirem em juízo o mesmo objeto, o mesmo fato, a exemplo dos condôminos na defesa do bem comum. Nessa hipótese, o colegitimado é, igualmente, titular do direito sub judice, ou seja, titular do direito material objeto da discussão no processo, o que não é o caso da seguradora, eis que sequer participou do evento danoso.

Com base nessas discussões ora apresentadas, passa-se à análise dos enunciados normativos dos arts. 101 e 102 da nova lei de seguros, a lei 15.040/24.

O parágrafo único do art. 101 dispõe que o segurado poderá chamar a seguradora a integrar o processo, na condição de litisconsorte, sem responsabilidade solidária.

A princípio, a expressão “chamar” apresenta uma atecnia, pois remete à ideia de chamamento ao processo, hipótese de intervenção de terceiros por meio da qual o réu convoca seus codevedores solidários para compor o polo passivo, de modo que todos sejam incluídos na mesma condenação.

Com efeito, a seguradora não é devedora solidária do segurado, muito pelo contrário; sua relação jurídica com o profissional segurado a obriga ao pagamento da indenização de forma individual e integral (nos limites do capital segurado). Nesse sentido, no dispositivo supratranscrito, há expresso afastamento de tal solidariedade, pelo que se infere da expressão “sem responsabilidade solidária”. Entretanto, tal norma civil é contrária à essência do instituto do chamamento ao processo, bem como das normas processuais civis que o regulamentam.

Quanto à possibilidade de litisconsorte, a expressão “poderá” nos permite concluir tratar-se de um litisconsórcio passivo facultativo.

O caput do art. 102, entretanto, impõe – e não permite – a participação da seguradora no polo passivo na qualidade de litisconsorte, caso o prejudicado contra ela também queira demandar.

Há nesse dispositivo várias situações a serem elucidadas, o que não é possível nesse espaço. Contudo, provoca-se, por meio deste texto, outra possível atecnia. O litisconsórcio facultativo ativo ou passivo forma-se em razão da vontade de quem propõe a demanda; porém, o legislador exige a presença da seguradora e segurado nas ações propostas pelos prejudicados, o que permite a interpretação de um litisconsórcio necessário.

De fato, no litisconsórcio facultativo a formação do polo passivo não é imposta, mas tão somente permitida, caso assim não o fosse, seria um litisconsórcio necessário, por disposição de lei, nos termos do art. 114 CPC/15.

A consequência da falta de citação de um litisconsorte necessário simples (como nesse caso) é a ineficácia – e não nulidade – da decisão relativamente a ele, nos termos do art. 115 do CPC.

Infere-se que a finalidade do legislador foi seguir o entendimento sumulado do STJ, enunciado 529, decidido em sede de recurso repetitivo, segundo o qual não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora, justamente para assegurar o princípio do contraditório ao profissional segurado.

Nesse sentido, pelo que se denota da lei 15.040/24, as hipóteses previstas para a integração da seguradora na relação processual entre vítima (autora) e profissional segurado (réu) são na qualidade de litisconsorte.

Contudo, o litisconsórcio previsto na nova lei de seguros, seja ele facultativo ou necessário, pode ser interpretado tão somente considerando-se a seguradora como legitimada extraordinária e não como colegitimada pelas razões acima expostas.

Porém, não se pode descurar da hipótese da denunciação da lide pelo réu, modalidade provocada de intervenção de terceiros, nos casos em que a seguradora figure como terceira e se recuse a pagar a indenização, situação que deflagra um segundo conflito muito comum: A seguradora contra o próprio segurado. Múltiplos são os casos em que a seguradora tenta se eximir da sua obrigação. Uma delas, a mais recorrente, é a alegação de que o risco não fora objeto de cobertura.

Instauram-se, portanto, duas demandas por meio da denunciação da lide: (i) a principal, entre vítima, na qualidade de autora, e o profissional segurado, como réu; e (ii) a segunda demanda, de natureza secundária e regressiva, entre o profissional segurado como réu da primeira e denunciante da segunda; e a seguradora como terceira denunciada.

No caso do profissional réu ser o denunciante, caso seja vencido, o juiz analisa a segunda demanda (que é a regressiva da denunciação). Mas se o réu denunciante for vencedor, a denunciação não será examinada.

Para além dessas hipóteses, por meio de um método hipotético-dedutivo, propõe-se, ainda, a possibilidade de assistência simples pela seguradora como outra espécie de intervenção de terceiros mais consentânea se não houver recusa da seguradora ao ser comunicada do evento danoso, na medida em que ela poderá ingressar nessa demanda devido ao seu interesse jurídico em que o segurado seja vencedor, podendo, para tanto, praticar os atos processuais a fim que tal desiderato seja realmente alcançado.

Com efeito, não seria o caso de assistência litisconsorcial, eis que, nessa modalidade, o terceiro apresenta-se como colegitimado ou cotitular do direito invocado em juízo. Por tal razão, a assistência simples seria a intervenção de terceiros mais adequada diante da eventual ausência de conflito entre seguradora e segurado.

Enfim, a possibilidade de participação da seguradora no polo passivo das ações de reparação civil propostas em face do profissional segurado é prevista tanto no novo marco legal dos seguros quanto no anteprojeto de reforma do CC, mas não podem ser desconsideradas as hipóteses de intervenção de terceiros.

Ambos os regramentos apresentam uma finalidade comum: A possibilidade de beneficiar a vítima ao facultar-lhe a propositura da ação conjuntamente contra a seguradora que, em tese, tem condições patrimoniais para satisfação do valor objeto da condenação. Isso sem desalijar da relação processual o profissional segurado, eis que, por responder subjetivamente – conforme determina o art. 14 §4º do CDC - deve sim participar do polo passivo da ação reparatória na qual poderá apresentar suas teses de defesa, em observância ao princípio do contraditório. 

Tal finalidade comum está em consonância com uma das funções primordiais da responsabilidade civil, a função reparatória. Contudo, não podem se descurar das normas de natureza processual civil nem avançarem em descompasso recíproco, sob pena de estarmos diante de uma nítida (e não aparente) antinomia jurídica.

Resta saber qual será o destino da seguradora nas ações de reparação civil propostas pela vítima contra o segurado. Diante da fase do processo legislativo em que se encontra o anteprojeto, se aprovado nos termos até então propostos, surgirá, possivelmente, uma antinomia jurídica cujos critérios para solução são: O critério da especialidade e o critério cronológico. A partir disso, outra discussão certamente surgirá: Qual dos mencionados diplomas normativos prevalecerá?

Importa que estas normas civis estejam alinhadas recíproca, teleológica e sistematicamente àquelas de natureza processual, visando à efetiva reparação de danos aos terceiros prejudicados. Aguardam-se as cenas dos próximos capítulos.

_______________

BRASIL. Lei 15.040/24. Disponível aqui.

BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto do CC. 2024. Disponível aqui.

BRASIL. Câmara dos deputados. PL 2597/24. Disponível aqui.

BRASIL. Lei 13.105, de 16/3/15, Brasília, DF, CPC. Disponível aqui.

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17 ed. Salvador: Juspodivm, 2015.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.