Migalhas de Responsabilidade Civil

Responsabilidade civil e a violência doméstica: Da configuração à quantificação

A intersecção entre responsabilidade civil e direito das famílias, especialmente em casos de violência doméstica, é debatida com ênfase nas indenizações. Leis como a Maria da Penha, a lei Mariana Ferrer e a lei Henry Borel buscam prevenir e punir tais violências.

3/12/2024

A intersecção entre a responsabilidade civil e o direito das famílias continua a ser um tema que chama atenção dos juristas, nas mais variadas situações. No presente texto, o recorte a ser feito refere-se aos danos e indenizações decorrentes da violência doméstica.

Recentemente, em 9/10/24, houve a edição da lei 14.994 com o objetivo de alterar a legislação penal e “para tornar o feminicídio crime autônomo, agravar a sua pena e a de outros crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, bem como para estabelecer outras medidas destinadas a prevenir e coibir a violência praticada contra a mulher”.

Entretanto, desde 2006, com a edição da lei 11.340/06, mais conhecida como lei Maria da Penha, encontra-se no art. 5º a descrição do conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher. Inclusive, o mencionado texto legislativo não coloca como um de seus requisitos o vínculo familiar ou a coabitação, tampouco a orientação sexual das pessoas envolvidas, aplicando-se, portanto, para casos de namoro, relações homoafetivas e outros tipos de relações.

A lei Maria da Penha assegura, no art. 9, §4º e 5º, que aquele que causar a violência doméstica em qualquer grau deve ressarcir não só a vítima, mas também o SUS por todo o serviço prestado em decorrência da sua conduta. Ademais, no art. 24, inciso IV, está prevista a prestação de caução provisória, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica contra a ofendida.

Em 22/11/21, entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro a lei Mariana Ferrer, cujo objetivo é coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo. O contexto de aprovação da referida lei ocorreu após uma audiência na qual a vítima de violência contra a mulher foi a todo tempo revitimizada, sendo que as imagens e gravações de tais fatos viralizaram em redes sociais causando intensa comoção social no país. Por isso, os artigos 400-A e 474-A foram acrescentados ao CPP, os quais preveem a pena de responsabilização civil, penal e administrativa para aqueles que realizarem a chamada violência institucional.

Já em 2022, com a edição da lei 14.344/22, denominada como lei Henry Borel, houve a descrição da violência doméstica e familiar contra criança e adolescente como qualquer ação ou omissão que importe em morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou patrimonial. E, de igual forma ao que dispõe a lei Maria da Penha, a violência também se caracteriza independentemente do vínculo familiar e de coabitação para sua configuração, incluindo-se, portanto, relações como a de padrastos, madrastas e enteados.

E, não obstante a edição de tais legislações, conforme o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 20241, tem-se que o ano de 2023 apresentou um crescimento de mais de 23 mil casos de lesão corporal dolosa no âmbito da violência doméstica, se comparado ao ano de 2022. Também houve aumento no número de medidas protetivas concedidas, em um percentual de 26,7 em cotejo aos anos de 2022 e 2023. As denúncias de prática de stalking também cresceram no mesmo período em 34,5%, bem como as de violência psicológica em 33,8%.

A agressão no ambiente doméstico persiste no momento contemporâneo, o que implica no ajuizamento de ações indenizatórias e faz com que os Tribunais tenham que enfrentar a temática da quantificação dos danos extrapatrimoniais.

Sem olvidar da questão sob a esfera penal, Pontes de Miranda discorre sobre a existência de entendimento no sentido de inexistir a possibilidade de se cogitar em perdas e danos e indenização no âmbito da família, em razão do direito de família já prever certas sanções a determinadas situações. Todavia, tal concepção deveria ser posta de lado, uma vez que é “possível haver causa suficiente para indenização ou reparação, com fundamento noutra regra de direito civil”.2 Assim sendo, é plenamente possível que o réu seja condenado a indenizar a vítima de suas agressões.

Já se sustentou em sentido similar, em momento anterior, ao afirmar que o divórcio e os alimentos não seriam suficientes para tutelar adequadamente os integrantes da família. É preciso que a responsabilidade civil ingresse em alguns casos que o direito de família não consegue abarcar sozinho. Acaso fosse afastada a possibilidade de responsabilização civil no âmbito do direito das famílias, estar-se-ia incentivando a impunidade.3

Sobre este prisma deliberativo, o Tema 983 do STJ dispõe que, nos casos de violência doméstica, é possível a fixação de um mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que exista pedido expresso pela acusação ou pela ofendida, cuja fixação independe de instrução probatória.

A fixação do valor de indenização extrapatrimonial, em regra, tem seguido o conhecido método bifásico, cujo idealizador foi o ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino, em pesquisas realizadas sobre o “princípio da reparação integral”.  O autor descreve que tal método seria “uma autêntica operação de concreção”, na qual haveria duas fases: Na primeira, arbitrar-se-ia um valor inicial de acordo com o interesse jurídico lesado, o que permitiria uma razoável igualdade de tratamento para os casos semelhantes.4 Em um segundo momento, haveria a fixação definitiva da indenização, com a respectiva adequação do valor às peculiaridades do caso em concreto. Assim sendo, eleva-se ou reduz-se o montante conforme a gravidade do fato, culpabilidade do agente, condição econômica das partes e culpa concorrente da vítima.

Tal critério para quantificação da indenização está inserido no projeto de atualização do Código Civil que nos incisos I e II, do § 1º, do art. 944-A, cuja redação dispõe: “I - quanto à valoração do dano, a natureza do bem jurídico violado e os parâmetros de indenização adotados pelos Tribunais, se houver, em casos semelhantes; II - quanto à extensão do dano, as peculiaridades do caso concreto, em confronto com outros julgamentos que possam justificar a majoração ou a redução do valor da indenização”.5

Neste sentido, decisões recentes do TJ/SP na competência criminal têm fixado valores diversos, que variam entre um salário-mínimo (1500470-06.2023.8.26.0404)6, dois mil reais (1500365-77.2022.8.26.0270) e dez mil reais (1501823-62.2023.8.26.0572). Todas reafirmando que o dano moral é presumido (in re ipsa), inclusive decidindo que a hipossuficiência não é causa suficiente para o afastamento da indenização (1500365-77.2022.8.26.0270). Logo, o fato de o agressor ser hipossuficiente não deve gerar uma indenização de menor montante pecuniário para que não incentive a continuidade da violência, afetando a função preventiva da responsabilidade civil.

Na esfera cível, em específico, de acordo com os casos julgados pelo TJ/SP entre 2023 e 2024, quanto às competências para fixar a indenização, os valores encontrados estão entre dez mil reais (0003529-63.2010.8.26.0491, 1023057-32.2014.8.26.0554 e 1012286-45.2014.8.26.0020); perpassando por vinte mil reais (0109811-24.2007.8.26.0009, 1015800-45.2014.8.26.0007 e 1002452-38.2015.8.26.0002). Em casos mais graves, como tentativas de homicídio, observa-se possível fixação de indenização em valores maiores, de até R$ 176.000,00 (0013367-82.2011.8.26.0624).

A questão que se coloca em debate é se a responsabilidade civil seria o instituto que melhor abarca a reparação do dano causado à vítima de violência doméstica no Brasil. Verificou-se, no decorrer do estudo, que há vários instrumentos nas legislações que preveem a responsabilização do agressor pelos danos causados não só à vítima, mas também ao sistema que prestou serviços de saúde em razão do ocorrido e, ainda assim, o cenário de violências domésticas no país está longe de ser cessado.

Houve recente aumento de pena ao crime de violência doméstica contra a mulher, mas o agressor que comete a conduta, no momento em que realiza o crime, não pensa se a pena é alta, se deverá ressarcir a vítima ou algo do tipo. A responsabilidade civil, ao que se viu diante dos julgados mencionados, não tem obtido êxito em ressarcir os danos na esfera penal, mas situação diversa foi notada no âmbito cível.

Acontece que, no caso de violência doméstica contra a mulher, o ressarcimento do dano está deveras ligado ao patrimônio dos envolvidos, de modo que quanto mais dinheiro o agressor possuir, maior será a sua condenação. No entanto, não são esses casos que chegam ao Poder Judiciário com mais frequência, e sim aqueles cujo agressor tem menor condição financeira. Assim, ao se fixar um salário mínimo como medida de reparação – por levar em consideração a sua condição financeira –, o agressor não vai entender a compensação como uma forma de punição pelo crime cometido, e pode gerar a sensação de que violentar a mulher compensa.

A responsabilidade civil em casos de violência doméstica precisa caminhar melhor na quantificação do dano causado à vítima, visando alcançar todo o contexto. Deve assegurar, inclusive, a sua adoção como método de prevenção e punição, de modo que os casos de ameaça e stalking – os crimes iniciais da violência –, sejam analisados celeremente, de maneira a reprimir o agressor, impedindo-o de dar continuidade aos atos e de violar a integridade física da mulher.

Em resumo, é possível identificar que as vítimas de violência doméstica demandam no Poder Judiciário a respectiva indenização que, não obstante a reprimenda penal e cível, não é suficiente para impedir tais casos, tampouco reduzi-los. E, bem por isso, também caminhou o projeto de alteração do Código Civil de modo a permitir que o juiz analise todas as circunstâncias que impliquem em uma majoração nos valores a serem fixados, conforme parágrafo 2º e seguintes do art. 944-A.

Portanto, verificou-se que, apesar de haver instrumentos que determinam o ressarcimento do dano causado à vítima de violência doméstica, os casos crescem. Assim, a responsabilidade civil, aliada à imprescindível persecução penal, se aplicada de maneira correta e com valores indenizatórios adequados, poderá cumprir não só uma função ressarcitória, mas também preventiva e punitiva.

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1 ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024.

2 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, tomo VII, 1955, p. 190.

3 PAIANO, D. B.; FURLAN, A. C. Responsabilidade civil nas relações conjugais e convivenciais. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 27, n. 01, 2021, p. 45. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024.

4 SANSEVERINO, Paulo de Tarso V. Princípio da Reparação Integral, 1. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2010. E-book. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024.

5 BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Relatório final dos trabalhos da Comissão. Brasília, DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em 30 out. 2024.

6 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024.

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ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024.

BRASIL. Lei n. 14.994 de 9 de outubro de 2024. (Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), o Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais), a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execuc¸a~o Penal), a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha) e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para tornar o feminicídio crime autônomo, agravar a sua pena e a de outros crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, bem como para estabelecer outras medidas destinadas a prevenir e coibir a violência praticada contra a mulher. Diário Oficial da União, 09 de outubro de 2024. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024.

BRASIL. Lei n. 11.340 de 7 de agosto de 2006. (Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, 07 de agosto de 2006. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024.

BRASIL. Lei n. 14.344 de 24 de maio de 2022. (Cria mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, nos termos do § 8º do art. 226 e do § 4º do art. 227 da Constituição Federal e das disposições específicas previstas em tratados, convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e as Leis nºs 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei de Crimes Hediondos), e 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência; e dá outras providências. Diário Oficial da União, 24 de maio de 2022. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024.

BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Relatório final dos trabalhos da Comissão. Brasília, DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em 30 out. 2024.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, tomo VII, 1955.

PAIANO, D. B.; FURLAN, A. C. Responsabilidade civil nas relações conjugais e convivenciais. Revista Brasileira de Direito Civil, [S. l.], v. 27, n. 01, p. 37, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024.

SANSEVERINO, Paulo de Tarso V. Princípio da Reparação Integral, 1. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2010. E-book. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.