Migalhas de Responsabilidade Civil

Primeiras reflexões sobre a nova lei dos contratos de seguros e o Direito de Danos

O novo projeto de lei dos contratos de seguros, aprovado em 05/11/2024, traz mudanças importantes, como maior proteção ao segurado, regulação detalhada e foco na prevenção de danos.

26/11/2024

A Câmara dos Deputados aprovou em 05.11.2024, o projeto de lei 2597/24, como substitutivo ao projeto de lei da câmara 29, de 2017 (PL 3.555, de 2004). O diploma legal estabelece normas gerais em contratos de seguro privado e revoga dispositivos do CC, do CCB e do decreto-lei 73 de 1966.

O presente texto, escrito antes de sua sanção presidencial, examina alguns dos reflexos da nova legislação dos contratos de seguros no direito de danos.

Do ponto de vista do conteúdo, o novo marco legal dos seguros trata de princípios, interpretação do contrato, regulação e liquidação de sinistros, prazo prescricional, do interesse segurado, entre outras matérias. Sua estrutura contempla seis títulos: disposições gerais, seguros de danos, seguros sobre a vida e a integridade física, seguros obrigatórios, prescrição e disposições finais e transitórias.

Quando sancionada e publicada, a nova lei revogará todo o capítulo do CC dedicado ao contrato de seguro, além de outras disposições pontuais sobre o tema, como o prazo de prescrição do art. 206, §1º, II. Com essa mudança, os seguros passam a contar com um diploma legal específico, o que demandará um importante diálogo com o CC, e com o anteprojeto de sua revisão, sobretudo para que seja mantida a sempre desejável unidade sistemática.

A matéria dos contratos de seguro está hoje regulada em 46 arts. no CC. Com a sanção da nova lei, passam a ser 132 arts.s sobre o tema. A ampliação do número de dispositivos que regulamenta o tema revela a preferência por um regramento mais detalhado e previsível, deixando menor margem de discricionariedade para os aplicadores, cuja interpretação, muitas vezes, acaba por desconsiderar o cálculo atuarial e a distribuição de riscos que constituem a realidade econômica e técnica intrínseca a esta modalidade contratual.

Nesse setor, o conhecimento prévio e a clareza das regras constituem aspectos essenciais para o cumprimento de seu objetivo, seja pelo potencial de direcionar o comportamento do segurado, seja por possibilitar cálculos mais precisos quanto ao risco coberto (STIGLITZ, Ruben S. Derecho de seguros. 2008). A longo prazo estes elementos podem reduzir o valor dos prêmios e expandir a utilização dos seguros, o que seria benefício não só aos contratantes quanto a toda sociedade. 

Em âmbito funcional, a nova legislação externaliza dois vetores que a norteiam: a prevenção de danos e a maior proteção ao segurado.

Em relação ao primeiro, observa-se que o segurado passa a ter um dever legal de comunicar o sinistro ao “tomar ciência (...) da iminência de seu acontecimento” (art. 66 do projeto de lei 2597/24), e não apenas a partir de seu acontecimento. Essa alteração reforça o dever de mitigar danos e agir de forma diligente. Para melhor compreensão, vale comparar o teor da redação vigente do CC:Os objetivos desta cientificação prévia ao dano, pontuados nos incisos do art. 66, não deixam dúvida que a alteração visa uma função preventiva, que, em rigor, não é nova. Encontra-se na doutrina francesa, já em 1936, que “a prevenção é o primeiro princípio não somente da repressão penal, mas também da repressão civil” (MARTON, G. Les fondements de la responsabilité civile). A nova lei torna expresso este objetivo, referendando uma vez mais o locus da colaboração das partes e da função preventiva no direito de danos, na linha do que é proposto também pelo anteprojeto de reforma do CC (cf. art. 187-A, §1º).

O segundo vetor que parece ter guiado a nova legislação é a proteção ao segurado, por vezes de forma até mesmo paternalista. Para ilustrar, tome-se o parágrafo segundo do art. 9º o qual estabelece: “se houver divergência entre a garantia delimitada no contrato e a prevista no modelo de contrato ou nas notas técnicas e atuariais apresentados ao órgão fiscalizador competente, prevalecerá o texto mais favorável ao segurado”. Essa determinação deve ser vista com cautela para que seja preservado o equilíbrio contratual, mormente considerando que o cálculo atuarial do prêmio é realizado tomando como elemento o valor da garantia de cada contrato, e não do modelo geral.

Ainda na linha de maior proteção ao segurado, a nova legislação incorpora a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em dois temas cujo regramento do CC se apresentava insuficiente, precisamente os efeitos da mora do segurado e a delimitação do que constitui agravamento do risco para fins de exclusão da cobertura securitária.

Na literalidade do art. 763 do CC, “não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação”. Assim, aquele que tivesse apenas uma ou algumas prestações vencidas quando da ocorrência do sinistro, perderia o direito à indenização.

O STJ já havia sedimentado que “não basta o atraso no pagamento de parcela do prêmio para o desfazimento automático do contrato de seguro, sendo necessária a prévia constituição em mora, por interpelação específica” (STJ. AgRg no AREsp 543.101/SP, 13/2/20). Vale recordar o teor do enunciado da súmula 616 do STJ: “A indenização securitária é devida quando ausente a comunicação prévia do segurado acerca do atraso no pagamento do prêmio, por constituir requisito essencial para a suspensão ou resolução do contrato de seguro”.

A lei dos contratos de seguro incorpora a posição jurisprudencial, estatuindo que apenas a mora do segurado em relação ao adimplemento da primeira ou única prestação resolvem o contrato, ao passo que “a mora relativa às demais parcelas suspenderá a garantia contratual, sem prejuízo do crédito da seguradora ao prêmio, após notificação do segurado concedendo-lhe prazo não inferior a 15 dias, contado do recebimento, para a purgação da mora” (art. 20, §1º), de modo que o segurado apenas perderá o direito à indenização caso não seja purgada a mora no prazo concedido pela notificação.  

Também quanto à definição do agravamento do risco para fins de exclusão da cobertura securitária a nova lei incorpora a jurisprudência do STJ. O art. 768 do CC estatui que o “segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”, em redação que claramente permite inferências diversas quanto a sua amplitude, notadamente se o agravamento abstrato do risco seria suficiente, ou se teria de estar diretamente relacionado ao sinistro concretamente ocorrido.

Para a Corte de Vértice, a perda da garantia apenas é permitida quando o agravamento do risco constitui causa determinante para o sinistro, estando, portanto, a ele diretamente relacionado (STJ. REsp 1.466.237/SP, DJe de 18/12/2019). É nesta linha a disposição do art. 16 da nova lei, pelo qual “sobrevindo o sinistro, a seguradora somente poderá recusar-se a indenizar caso prove o nexo causal entre o relevante agravamento do risco e o sinistro caracterizado”.

Como se percebe, a matéria vem mais bem detalhada na lei dos contratos de seguro: O agravamento voluntário do risco por parte do segurado permanece previsto como causa de perda da garantia (lei do contrato de seguros, art. 11, §1º), devendo ser imediatamente comunicado à seguradora para que opte entre a resolução ou o reajuste das prestações contratuais (art. 14). Caso não seja comunicada do agravamento, ocorrendo o sinistro, será da seguradora o ônus da prova do nexo causal entre o agravamento e o sinistro para justificar recusa ao pagamento da indenização (lei do contrato de seguros, art. 16).

Vale ainda observar que a provocação dolosa de sinistro implica a extinção do contrato, sem direito ao capital segurado (lei do contrato de seguros, art. 69). Idêntica penalidade se aplica em caso de fraude cometida por ocasião da reclamação de sinistro (lei do contrato de seguros, art. 69, § 4º), temas que apresentam correspondência com o anteprojeto de reforma do CC, especificamente o disposto em seu art. 771-B.1

Há ainda outras interessantes alterações a serem analisadas, e tendo o presente texto o escopo apenas de apresentar as primeiras reflexões se limitará a destacar cinco outros temas.

Em boa hora, o seguro de responsabilidade civil recebe especial atenção, passando a contar com regramento em capítulo próprio entre os seguros de dano. A positivação legal apenas materializa o que a doutrina há muito enuncia, notadamente que “a era da responsabilidade individual está encerrada. O direito moderno reclama uma completa revisão da responsabilidade civil, que deve evoluir para um contexto de seguros e seguridade social (KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico, 2019).

A facilitação do seguro de responsabilidade civil é de todo desejável: ganha o mercado, com a maior segurança dos profissionais no exercício de sua atividade, e também as vítimas, que passam a não depender da saúde financeira do causador do dano para obter a devida reparação pelos danos que venha a suportar.

A prescrição passa a ter regramento mais extenso e detalhado. O art. 127 da lei do contrato de seguros define uma hipótese específica de interrupção da prescrição, a saber, quando a seguradora receber pedido de reconsideração da recusa de pagamento. A suspensão cessa quando o interessado recebe a comunicação da seguradora acerca de sua decisão.

Em caso de mora da seguradora, a lei do contrato de seguros (art. 88) estabelece multa de 2% sobre o montante devido, corrigido monetariamente, sem prejuízo dos juros legais e da responsabilidade por perdas e danos, criando assim uma penalidade significativa. 

No tocante à sub-rogação, é interessante notar que se impõe dever expresso do segurado “colaborar no exercício dos direitos derivados da sub-rogação, respondendo pelos prejuízos que causar à seguradora” (lei do contrato de seguros, art. 94, § 1º). A colaboração, como denota o art. 100, abrange informar de imediato a seguradora das comunicações recebidas que possam gerar reclamação futura; fornecer documentos; comparecer aos atos processuais para os quais for intimado, e abster-se de agir em sentindo contrário aos direitos e das pretensões da seguradora.

Há inovação também em relação aos atos praticados por cônjuge, parentes e empregados, excluindo a possibilidade de ação própria da seguradora ou derivada de sub-rogação quando, nos termos da lei “decorrer de culpa não grave” (lei do contrato de seguros, art. 95). O resgate de gradação de culpa e distanciamento da responsabilidade por fato de terceiro de que trata o CC merece crítica2.      

O novo texto legal apresenta uma exceção interessante a exclusão de medidas contra o causador nas hipóteses recém referidas. Na forma da lei do contrato de seguros, art. 95, parágrafo único. “Quando o culpado pelo sinistro for garantido por seguro de responsabilidade civil, é admitido o exercício do direito excluído pelo caput deste artigo contra a seguradora que o garantir”, ainda que seja cônjuge, parente ou empregado.

Em visão prospectiva, o material legislativo se encontra na iminência de sanção e aprovação. Caberá agora a doutrina desempenhar o seu papel de “explicitar, sistematizar, compreender e desenvolver o que está ‘posto’ pelas normas de direito” (MARTINS-COSTA, Judith. Modelos de Direito Privado. 2014).

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1 BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto do CC. 2024. Art. 771- B. “A provocação dolosa de sinistro gera a perda do direito à garantia, sem prejuízo do prêmio vencido e da obrigação de ressarcir as despesas feitas pela seguradora”. Disponível aqui. 

2 Em relação a controvérsia sobre a expressão, recorde-se o que estabelece a CIRCULAR SUSEP 541/2016, art. 3º, inc. VIII: “culpa grave: é aquela que, por suas características, se equipara ao dolo, sendo motivo para a perda de direitos por parte do Segurado. A culpa grave deverá ser definida pelo Judiciário ou por arbitragem”.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.