Migalhas de Responsabilidade Civil

Queimadas e o dever de prevenção na regulação administrativa: due diligence nas propriedades rurais

O texto aborda o impacto ambiental e jurídico das queimadas no Brasil, destacando as novas obrigações legais que visam a prevenção e o controle do fogo em áreas rurais, bem como as implicações legais do não cumprimento dessas obrigações.

12/11/2024

O desastre ambiental vivenciado no Brasil com a proliferação de queimadas e a absorção da atmosfera por uma colcha de fumaça e poluição estacionada sobre o país provoca o enfrentamento das potencialidades de risco ambiental ligadas ao uso e descontrole do fogo. Tem-se aqui tanto um enfrentamento quanto a ações e omissões culposas quanto dolosas. Nesse horizonte, abre-se um tema de direta repercussão: em que medida o princípio da prevenção pode se materializar em obrigações diretas em face do risco de queimadas e de sua proliferação?

O desafio enfrentado passa pela concretização de obrigações de análise e gestão de risco que retirem o princípio da prevenção de uma articulação puramente centrada em conceituações juridicamente indeterminadas e lhe permitam assumir tons efetivos de densificação. O quadro estrutural de desastre atmosférico provocado pelas queimadas possui dois diplomas regulatórios recentes e implicados nessa tarefa de densificação da prevenção, a lhe dotar de critérios diretos e de teor obrigacional, que certamente influenciam tanto a dinâmica da responsabilidade administrativa quanto da responsabilidade civil ambiental.

O primeiro desses marcos regulatórios é a lei 14.944, de 31 de julho de 2024. A Lei instituiu a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que, apesar de toda sua relevância, provocou pouco calor jurídico-social, por irônico que o seja. A prevenção de incêndios foi conceituada como conjunto de atividades relacionadas com o controle e a extinção de incêndios desde a sua detecção até a sua extinção completa, sendo previsto um plano operativo de prevenção e combate a incêndios florestais. Juntamente com a obrigação de prevenção e gestão regular do uso do fogo, a Lei estabeleceu em seu artigo 45 a disciplina da responsabilização pelo uso irregular.

O marco regulatório dispõe que o uso irregular do fogo provoca responsabilidades civil, administrativa e penal. Apesar de já ser isso possível, §1º do artigo 45 estabelece uma dinâmica própria de obrigação de prevenção e gestão de risco. Dispõe expressamente que o responsável pelo imóvel rural implementará ações de prevenção e de combate aos incêndios florestais em sua propriedade de acordo com as normas estabelecidas pelo Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo e pelos órgãos competentes do Sisnama. Isso significa que os imóveis rurais como um todo no Brasil, principalmente em áreas de risco de incêndios, passam a ter obrigações de concretização específicas para prevenir e combater o risco de queimadas.

Em sequência, o artigo 46 determina que o descumprimento das atividades estabelecidas nos planos de manejo integrado do fogo que resultar em incêndios florestais e causar prejuízos ambientais, socioculturais ou econômicos sujeita diretamente à responsabilidade civil, administrativa e penal. A obrigação de prevenção e gestão de risco passa a contar com atributos de aplicação direta e densificada.

A regulação dessas obrigações ocorreu por meio do Decreto 12.189, de 20 de setembro de 2024, que alterou o Decreto n. 6.514/08. Há especial destaque para a previsão do artigo 58-C. A norma administrativa estabelece como infração ambiental deixar de implementar, o responsável pelo imóvel rural, as ações de prevenção e de combate aos incêndios florestais em sua propriedade de acordo com as normas estabelecidas pelo Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo e pelos órgãos competentes do Sisnama. Portanto, as normas de prevenção e gestão de risco do Ibama passam a ser obrigatórias na adoção de gestão de risco em face de queimadas tanto por atores privados quanto públicos.

A multa prevista, além de outras penalidades e medidas acautelatórias como o embargo, é de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). O dever de prevenção, além de ganhar carga densificadora, passa a contar com disposição expressa de teor punitivo sob o ângulo do comando controle. É relevante enfatizar que a norma não é uma vedação ao uso do fogo. Trata-se de um regramento normativo justamente para que as práticas ainda existentes de uso do fogo sejam executadas nas hipóteses e formas permitidas. Por essa razão se fala de Manejo Integrado do Fogo (MIF). O potencial de responsabilização será configurado se as disposições de prevenção e manejo integrado do fogo forem violadas.

A partir do novel marco regulatório do uso regular do fogo e de prevenção a queimadas, o Ibama procedeu ao mapeamento de áreas vulneráveis, assim como de áreas de maior incidência em ignição de queimadas. O termo ignição significa justamente o fator de origem que acarreta o início da ocorrência do fogo. A pura situação de clima seco ou de propagação no tempo das secas não acarreta por si as queimadas. As rotineiras propagações do senso comum de ocorrência natural e contínua de queimadas não correspondem plenamente à realidade.

No fluxo natural, se ausente a atuação humana, podem ocorrer incêndios cujo fator de ignição é um raio, por exemplo. Entretanto, em uma situação como esta, a própria conjuntura já indica chuva a ocorrer. Assim, ignições naturais de queimadas por raios são em curto prazo levadas ao fim pela própria chuva intercalada com a situação de causa do início do fogo. Situação congênere não ocorre com causas antrópicas de ignição. É a ação humana a fonte da queimada, seja culposa, seja dolosa ou mesmo com intuito criminoso.

As ocorrências de incêndio atuais são eminentemente de causa humana, são antrópicas, tanto em sua ocorrência quanto em sua propagação. Advém daí toda a relevância da atuação preventiva sobre as áreas de risco de ignição e propagação. Além disso, o uso e ocupação humanas é comumente realizado com plantação de vegetação ou gramíneas exóticas, cujo potencial de combustão é superior ao da vegetação nativa, elevando tanto o risco quanto a propagação de incêndios também por fator contributivo antrópico do titular da área.

Para fins de operacionalização de diretivas quanto à prevenção por proprietários e possuidores de áreas rurais, o Ibama elabora as denominadas Notificações Preventivas, constantes em editais publicados e disponíveis publicamente, sem prejuízo de seu encaminhamento pessoal. Para fins de exemplificação, aborda-se aqui o Edital de Notificação n. 21/2024, datada a publicação no Diário Oficial de 9 de outubro de 2024.

No edital, o Ibama fundamenta a seleção de área com base em monitoramento por satélite, que veio a avaliar o alto risco de ocorrência de incêndio florestal. Os imóveis são identificados no anexo, com listagem numérica do registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR), dimensão de área, município em que está localizado, nome do imóvel e dados do proprietário ou possuidor. Além disso, são arroladas as obrigações concretas de prevenção a serem adotadas. No caso da Notificação n. 21/24, tem-se as seguintes obrigações dispostas: 

1 - Construir aceiros no entorno de áreas cobertas por vegetação nativa (Reserva Legal, Áreas de Proteção Permanente e demais remanescentes florestais nativos). A largura adequada do aceiro dependerá das condições climáticas da região, topográficas e material combustível florestal existente na propriedade;

2- Capacitar mão de obra e disponibilizar ferramentas, equipamentos e maquinários para utilização em prevenção e combate aos incêndios florestais;

3- Manejar adequadamente as áreas de pastagens para evitar acúmulo de material combustível florestal (crescimento excessivo das gramíneas exóticas);

4 - No período crítico para ocorrência de incêndios florestais, manter constante vigilância da propriedade e articulação com os vizinhos. Ao sinal de fumaça (mesmo que fora da propriedade) acionar os recursos necessários e avisar os vizinhos;

5 - Observar se na Unidade Federativa (Estado) onde está localizada sua propriedade, existem leis, decretos ou outras normas relacionadas à proibição de uso do fogo para limpeza e manejo de áreas rurais.

O Ibama notifica os proprietários rurais, que o descumprimento dessa notificação pelo uso ilegal do fogo em áreas agropastoris resultará em multa de R$3.000,00 (três mil reais) por hectare ou fração, conforme previsto no artigo 58 do Decreto Federal 6.514/2008 - Descrição da infração ambiental: Fazer uso do fogo em área agropastoril, sem autorização do órgão competente.

Caso o fogo atinja área de vegetação nativa (Reserva Legal, Áreas de Preservação Permanente ou outras categorias de remanescentes florestais nativos), o proprietário ou possuidor a qualquer título de imóvel rural, incorrerá na prática de infração ambiental com multa de R$5.000,00 (cinco mil reais) por hectare ou fração (dependendo do caso concreto), conforme previsto no artigo 58-A do Decreto Federal 6.514/2008, além de responder por crime ambiental previsto na Lei 9605/1998.

Além disso, o não cumprimento desta notificação configura a infração prevista no art. 58-C do Decreto Federal 6.514/2008, Descrição da infração ambiental: Deixar de implementar, o responsável pelo imóvel rural, as ações de prevenção e de combate aos incêndios florestais em sua propriedade de acordo com as normas estabelecidas pelo Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo e pelos órgãos competentes do Sisnama, com multa de R$5.000,00 (cinco mil reais) a R$10.000.000,00 (dez milhões de reais).

Por fim, de acordo com os artigos 3º, 15, 16 e 101 do decreto Federal 6514/2008, o embargo será aplicado sempre que a atividade não obedecer às determinações regulamentares. 

Essa cominação soma-se às previsões de responsabilização civil pelo dano, que se coliga às atuações administrativas sancionatórias. A notificação deriva um dever especial de diligência e proteção ao proprietário ou possuidor, que acarreta efeitos tanto em termos de responsabilidade punitiva quanto de responsabilidade reparatória. Há, portanto, ponto de comunicância da atribuição de dever administrativo especial com a obrigação reparatória potencial decorrente da condição de proprietário ou possuidor.

O Tema Repetitivo n. 1204, firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, configurou a responsabilidade propter rem em matéria de dano ambiental pela ótica do poluidor indireto, para além da figura do poluidor direto, também prevista como responsável. A consequência em termos de responsabilidade civil ambiental é relevante, quando se articula a obrigação de prevenção, que ganhou densificação, com a obrigação propter rem.

Há julgados no âmbito federal e estadual que tratam da responsabilidade civil sob a perspectiva de quebra do nexo de causalidade em situações de dano ambiental advindo de incêndio, inclusive provocado por terceiros. O argumento de exclusão não seria, por óbvio, uma excludente em si da responsabilidade objetiva pela teoria do risco integral, mas sim a quebra do nexo de causalidade por não ter o proprietário ou possuidor contribuído, positiva ou negativamente, para a situação do dano. Essa dimensão de responsabilidade e sua exclusão não alcança apenas a reparação do dano em si, o denominado dano ambiental material, mas também o dano moral ambiental e o dano interino ou intercorrente.

A modificação normativa imprime ainda maior ênfase à corrente jurisprudencial que afirma a caracterização de lastro de responsabilidade, e manutenção do nexo de causalidade, quando o proprietário ou possuidor não adota medidas preventivas e de resguardo em face seja de incêndios, seja de atuações de terceiros que contribuam para danos. A causa normativa dessa responsabilidade é a qualificação do proprietário ou possuidor como poluidor indireto, conforme dispõe a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/81), aplicando-se o dever de cuidado como aditivo à obrigação propter rem.

O Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no julgamento da Apelação Cível n. 572623-0002480-11.2012.4.05.8000, firmou que o nexo de causalidade em responsabilidade ambiental se sustenta no dever geral, ou mesmo especial, de adoção de providências eficazes em face do ilícito ambiental. Já o Tribunal Regional Federal da 1ª Região firmou decisão recente, datada de maio de 2024, fundada no Tema Repetitivo n. 1204 do STJ, no sentido de que a responsabilidade reparatória ambiental é derivada da função social da propriedade e dos deveres a ela inerentes (Apelação Cível n. 0000923-70.2006.4.01.4100).

A lei 14.944/24 e o Decreto 12.189/24 determinam uma guinada de densificação nas obrigações ambientais dos proprietários e possuidores rurais, com a concretização de planejamentos e gestão de riscos em face de incêndios, em uma verdadeira due diligence ambiental, cujo descumprimento ocasiona tanto a responsabilidade reparatória quanto a sancionatória. Há uma concretização de dever de cuidado a robustecer as obrigações derivadas da função social da propriedade. A tendência verificada é o fortalecimento das linhas jurisprudenciais que já afirmam a obrigação de responsabilidade em face do dano ambiental derivado de queimadas, tornando mais sólida a identificação da amplitude de nexo de causalidade quando se trata de situação de lesão ecológica derivada de descontrole ou uso irregular do fogo.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.