Migalhas de Responsabilidade Civil

STF decide futuro da liberdade de expressão no Brasil

O futuro da liberdade de expressão no Brasil será decidido no julgamento do STF sobre a (in)constitucionalidade do art. 19 do MCI que define a responsabilidade dos provedores de aplicações de internet.

18/10/2024

MCI - Marco Civil da Internet1 é considerado uma legislação pioneira no mundo ao estabelecer contornos regulatórios para o uso da internet no Brasil. Nele estão estabelecidos princípios, garantias, direitos e deveres para usuários, provedores de serviços e plataformas digitais.

O MCI trouxe uma abordagem regulatória inovadora, sobretudo ao conseguir harmonizar a proteção dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, com a supremacia da liberdade de expressão, com o modelo de responsabilização de intermediários de internet previsto no art. 19.2

Uma das inovações significativas do MCI é a previsão do art. 19, que estabelece a responsabilidade dos provedores de aplicações por conteúdo de terceiros condicionada à existência de ordem judicial específica para remoção.

De acordo com a regra, as plataformas digitais somente podem ser civilmente responsabilizadas por conteúdo de terceiros se descumprirem uma ordem judicial específica que determine sua remoção.

Esse sistema, conhecido como “judicial notice and takedown3 (notificação judicial e retirada), estabelece que a responsabilidade civil das plataformas está condicionada à existência prévia de uma ordem judicial.4

Há alguns países que adotam outro sistema, o “notice and takedown5 (notificação e retirada), que estabelece que as plataformas são compelidas a uma atuação prévia, podendo ser responsabilizadas civilmente por omissão a partir do momento em que são notificadas sobre a existência de conteúdos indesejados.

Com a amplificação dos debates internacionais sobre a questão da responsabilidade das plataformas digitais, surgiram algumas críticas sobre a eficácia do modelo brasileiro.

Esta discussão chegou até o STF, que reconheceu a existência de Repercussão Geral e discute a (in)constitucionalidade do art. 19 do MCI no âmbito do RE 1.037.3966.

O  presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, anunciou recentemente que pretende pautar o julgamento da ação para o dia 27 de novembro próximo. Esse julgamento representa um dos maiores desafios atuais do Poder Judiciário brasileiro no contexto da regulação da Internet, sobretudo porque a questão envolvida orbita em torno de uma temática sensível de um direito humano, a liberdade de expressão.

Uma eventual decisão que siga o caminho da declaração de inconstitucionalidade do art. 19 poderá atribuir às plataformas um encargo e uma responsabilidade do exercício de um controle preventivo e preliminar sobre a legalidade, ou ilegalidade, de conteúdos postados por terceiros, o que poderá impactar sobremaneira todo o ecossistema digital do país.

A regra brasileira do art. 19 adota um modelo equilibrado e calibrado, situando-se como um ponto de equilíbrio entre os países que adotam o sistema “notice and takedown”, entre eles, China, Irã, Rússia, Venezuela, por exemplo, que são considerados não democráticos.

A inovação e a importância do art. 19 foram inclusive reconhecidas internacionalmente pela Organização das Nações Unidas (ONU), que destacou a efetividade da regra para a proteção da liberdade de expressão7.

O dispositivo respeita a garantia do devido processo legal e a garantia da reserva judicial exigidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)7 quando da imposição de medidas restritivas à liberdade de expressão na Internet.

A necessidade de participação do Poder Judiciário na definição dos contornos de legalidade, ou ilegalidade, de determinado conteúdo garante segurança jurídica8, tanto para os usuários, quanto para as próprias plataformas.

É fundamental ter-se em mente que estamos diante da possibilidade de violações do direito humano à liberdade de opinião e expressão. E, deixar a critério de entes privados - provedores de aplicação de internet - a análise do que é ou não uma possível violação de direitos fundamentais e o que pode violar tais direitos não parece ser a decisão mais adequada e juridicamente sustentável.

Como mencionamos na pesquisa nacional que se debruçou sobre uma detalhada análise da jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros sobre as Desinformação, quando se está diante de uma possível violação de um direito humano, os tribunais internacionais seguem a diretriz do teste tripartite prevista no artigo 19 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP)9.

O exercício da liberdade de expressão não é absoluto; envolve deveres e responsabilidades. Esses aspectos estão claramente definidos por normas jurídicas e internacionais, sendo sujeitos a critérios rigorosos de interpretação e aplicação.

O teste tripartite, frequentemente negligenciado no Brasil, deveria ser aplicado em casos que envolvem restrições à liberdade de expressão, com a utilização das normas internacionais de direitos humanos. O parágrafo terceiro do PIDCP estabelece condições específicas para restrição da liberdade de expressão: (1) objetivo legítimo (Qualquer limitação deve ser orientada para a consecução de objetivos convincentes autorizados, que visem proteger os direitos dos outros, proteger a segurança do direito nacional, ordem pública, saúde pública ou moral pública); (2) legalidade (Qualquer limitação à liberdade de expressão deve ter sido prevista com antecedência, expressa, restritiva e clara em lei, no sentido formal e material) e; (3) necessidade e proporcionalidade (A limitação deve ser necessária em uma sociedade democrática para a consecução dos fins imperativos que se buscam; estritamente proporcional ao fim perseguido; e adequado para alcançar o objetivo convincente que busca alcançar)10.

Portanto, qualquer limitação ou vulneração à liberdade de expressão deve ser previamente prevista em lei, de forma expressa, restritiva e clara, uma vez que a censura prévia é proibida.

Impor esse ônus de verificação ativa dos contornos de legalidade ou ilegalidade, papel constitucional do Poder Judiciário, às plataformas digitais, afrontaria os princípios estabelecidos nos instrumentos internacionais de direitos humanos.

Os casos submetidos à apreciação do Judiciário cotidianamente envolvem conflitos complexos entre direitos fundamentais, que demandam uma atuação criteriosa. Por essa razão, o Judiciário atuará como órgão de ponderação7, analisando o impacto de uma eventual restrição no direito fundamental à liberdade de expressão em cada caso concreto.

Regras que imponham a responsabilidade civil pelo conteúdo ilegal de terceiros unicamente às plataformas digitais - como o notice and takedown - não asseguram proteção à liberdade de expressão11, pelo contrário, podem incorrer em uma indiscriminada e disseminada censura.

Portanto, o sistema do art.19 é um importante mecanismo contra a censura prévia7, pois evita que as plataformas adotem uma postura rigorosa e unilateral de remoção antecipada do conteúdo12, que pode implicar no chamado chilling effect ou efeito inibitório13.

Diante de sua reconhecida importância internacionalmente, não se mostra razoável a declaração de inconstitucionalidade; em vez disso, é possível ajustá-lo e aperfeiçoá-lo, introduzindo hipóteses específicas de adoção do sistema notice and takedown para situações relevantes que exijam uma resposta mais rápida das plataformas.

Apesar de o MCI já estabelecer hipóteses de adoção do sistema notice and takedown, em situações excepcionalíssimas, notadamente nos casos de conteúdos com cenas de nudez ou de atos sexuais (art. 21), nada impede que as hipóteses do dispositivo sejam aperfeiçoadas e atualizadas, não atuando o Judiciário na usurpação legislativa, caminho adequado de construção por meio do devido processo legislativo, mas pela vida da interpretação conforme à constituição, contemplando outras exceções14 que estão de acordo com o sistema normativo, desde que no âmbito e nos limites técnicos do serviço dos provedores de aplicações de internet.

As exceções podem ser ampliadas, em uma interpretação conforme à constituição, para abranger casos em que há violação grave aos direitos fundamentais, estabelecendo parâmetros claros para que as plataformas tomem ações mais rápidas e eficazes.

As novas hipóteses devem constituir exceções bem definidas de temas manifestamente ilegais gerados por terceiros que: atentem contra o Estado Democrático de Direito, atentem contra o processo eleitoral, violência contra a mulher, Emergência em Saúde Pública, racismo, homofobia, atos de terrorismo, abusos sexuais de crianças e disseminação de conteúdo pornográfico.

Por outro lado, a eliminação ou alteração radical do artigo 19 do MCI poderia gerar uma série de consequências, especialmente no tocante à inovação e à competição no mercado. As plataformas precisariam de mecanismos de monitoramento e remoção de conteúdos em tempo real para gerir todas as notificações de conteúdo ilegal, o que exigiria um alto investimento em infraestrutura tecnológica. Logo, seria inviável exigir das plataformas uma fiscalização abrangente e repressiva.

Portanto, o artigo 19 do Marco Civil da Internet desempenha um papel importante ao atribuir ao Poder Judiciário a responsabilidade pela análise criteriosa de conteúdos ilegais e pela ponderação entre direitos fundamentais. No entanto, a preservação do núcleo do dispositivo não impede que ajustes pontuais sejam feitos para aperfeiçoar o sistema brasileiro de judicial notice and takedown. A introdução de exceções bem delimitadas para casos de conteúdos manifestamente ilegais garantirá a manutenção dos pilares que sustentaram a criação do MCI, ao mesmo tempo em que preservará a inovação e a concorrência do mercado tecnológico no Brasil.

________

1 BRASIL. Lei n.12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2014.

2 PONTIERI, Alexandre. Marco Civil da Internet e liberdade de expressão. JOTA, 2024. Acesso em: 17 out. 2024.

3 NORTHFLEET, Ellen Gracie. O Marco Civil da Internet sob o prisma da constitucionalidade - parte II. Consultor Jurídico, 2020. Acesso em: 17 out. 2024.

4 MAIA, Flávia. Marco Civil da Internet: Toffoli diz que libera recurso para julgamento até junho. JOTA, 2024. Acesso em: 17 out. 2024.

5 CONSTANT, Isabel. O Sistema de Notice and Takedown: Aviso e Retirada. IP.rec, [s.d.]. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024.

6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 1.037.396 - São Paulo. Relator: Min. Dias Toffoli. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024.

7 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS - CIDH. Liberdade de expressão e Internet: Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 2013. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024.

8 NORTHFLEET, Ellen Gracie. O Marco Civil da Internet sob o prisma da constitucionalidade - parte I. Consultor Jurídico, 2020. Acesso em: 17 out. 2024.

9 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966). Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024.

10 SALOMAO, Luis Felipe; BORGES, Gustavo Silveira; MADEIRA; Daniela Pereira; BARZOTTO, Luciane Cardoso; TAUK, Caroline Somesom; et al;. O que é desinformação do judiciário brasileiro? [livro eletrônico]: uma análise da jurisprudência dos tribunais superiores sobre as fake news. Brasília, DF: AMB, 2023.

11 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS - CIDH. Mecanismos Internacionais para a Promoção da Liberdade de Expressão: Declaração conjunta sobre liberdade de expressão e internet. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024.

12 TAVARES, Viviane. Por que somos a favor da constitucionalidade do artigo 19? Carta Capital, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024.

13 MARTINS, Thiago Souza. Além de foguetes: Elon Musk, STF e a (in)constitucionalidade do art.19 do MCI. Migalhas, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024.

14 TAJRA, Alex. Inovador em sua aprovação, Marco Civil da Internet fica obsoleto frente às big techs. Consultor Jurídico, 2023. Acesso em: 17 out. 2024.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.