1. INTRODUÇÃO
Desde a entrada em vigor do Código Civil atual o debate em torno da interpretação do art. 406 se manteve ativo. Duas correntes disputaram a fixação do significado da expressão “taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”. De um lado, havia aqueles que se filiavam à interpretação de que referida taxa é a prevista no art. 161, §1º do CTN, qual seja de 1% ao mês, e de outro a corrente que apontava como taxa aplicável a SELIC, por força do que dispõem as leis 9.250/95, 8.981/95 e 9.430/96. A doutrina majoritariamente se filiou à primeira tese1. Por outro lado, no âmbito do STJ, ainda que não especificamente sobre as dívidas civis, a posição sempre se inclinou pela aplicação da SELIC, em especial a partir de decisões da 1ª seção sob relatoria do falecido ministro Teori Zavascki2 e na decisão do Tema repetitivo 1123, vindo essa posição a ser reiterada no julgamento do Tema repetitivo 9054 e, mais recentemente, na decisão proferida pela corte especial no REsp 1.795.9825.
Com a conclusão do julgamento do REsp 1.795.982 e o advento das alterações do Código Civil promovidas pela lei 14.905/24, nasce para a sociedade um problema a ser tratado: a existência, ou não, de impacto sobre os negócios jurídicos firmados fora do âmbito do Sistema Financeiro Nacional e de outras áreas de exclusão do alcance do decreto 22.626/33, durante a vigência da redação original do art. 406 do CC e no período em que não firmado precedente qualificado sobre a taxa de juros aplicável sobre as dívidas civis.
Além disso, um outro problema se coloca. É fato notório que, influenciada pela redação do CC/16 que fixava a taxa legal em 6% ao ano e pela redação do art. 192 da CF/88 vigente até a EC 40/03, a sociedade brasileira se acostumou, quanto às dívidas civis, com uma taxa fixa de juros legal de 12% ao ano a partir da vigência do CC/02. Com a recente alteração legislativa – e mesmo com a predominância no STJ da posição doutrinariamente minoritária de aplicação da SELIC às dívidas civis mesmo antes dela – passa-se a ter uma taxa móvel ou variável como fiel para avaliação das disposições contratuais firmadas anteriormente. Desse modo, pensando-se em uma cláusula que fixou juros moratórios à taxa de 1% ao mês, há meses em que esse percentual poderá estar acima da taxa legal, e há meses em que poderá estar abaixo.
No que se refere aos impactos para a responsabilidade civil, os juros moratórios, que enfrentavam já a discussão sobre a sua taxa, passam a apresentar outras problemáticas que influenciam diretamente a composição das dívidas decorrentes de decisões judiciais, o efeito da mora para os negócios e a capacidade de as partes prefixarem as consequências do inadimplemento. É o que se buscará, nessas breves linhas, abordar à luz das alterações promovidas pela lei 14.905/24 e das regras de direito intertemporal do CC.
2. EFEITOS DA LEI – DIREITO INTERTEMPORAL
A primeira grande questão que se coloca em relação à lei 14.905/24 se relaciona com a produção dos seus efeitos. Publicada em 1/7/24, a sua vigência plena se deu, por força da vacatio legis estabelecida em seu art. 5º, II, no dia 30/9/24. Mas não é essa a polêmica que se vislumbra, e sim um aspecto de direito intertemporal relacionada com a mencionada norma.
Não se ignora que a vigência da lei se iniciou apenas a partir do fim do período de vacância, e que não há espaço para discussão sobre uma retroatividade da lei. Discussões judiciais sobre qual a taxa aplicável aos juros legais encerradas antes da lei não sofrem os seus efeitos, em prestígio à proteção da coisa julgada. A dúvida que fica é a seguinte: a nova taxa de juros legais que passou a viger a partir do final de agosto aplica-se aos negócios jurídicos celebrados anteriormente à publicação da lei? E se sim, a partir de quando os efeitos serão sentidos?
Em princípio a resposta seria claramente negativa, pois sabe-se que normas de direito material não comportam retroatividade e, em regra, só se aplicam a negócios constituídos após o início de vigência de uma lei6. Ocorre que nesse caso não há que se falar em retroatividade ou produção de efeitos imediatos, mas sim a verificação de efeitos que serão produzidas no âmbito do plano da eficácia de um negócio jurídico. Isso porque, a aplicação dos juros legais não impacta a formação de um negócio jurídico, atuando no momento de produção dos seus efeitos, mais especificamente a partir do momento que o inadimplemento for verificado.
Interessante notar que do ponto de vista regulatório, a resposta para as dúvidas acima colocadas se encontra no meio termo. Após a regulamentação das novas regras aplicáveis aos juros legais realizada pelo CMN7, o Banco Central do Brasil passou a disponibilizar na sua aplicação “Calculadora do Cidadão” uma aba destinada exclusivamente ao cálculo dos juros legais8. Porém, a mencionada aplicação não permite que o cidadão calcule a nova taxa de juros legais imputando uma data inicial anterior a 30/9/24. Nesse sentido, a aplicação não se preocupa com a data de constituição da dívida, até porque não é função do BACEN se preocupar com tal questão, mas por outro lado não permite que no cálculo a taxa leve em conta uma data anterior à da vigência da lei 14.905/24.
Para dar uma solução para essa questão, busca-se na correta interpretação do art. 2.035 do CC uma resposta. O mencionado artigo, que faz parte do livro complementar das disposições transitórias do CC, estabelece que aos negócios jurídicos celebrados antes da sua vigência aplicam-se, quanto à validade, as regras jurídicas anteriormente vigentes. Por sua vez, quanto a eficácia dos negócios jurídicos, deve-se observar as regras do próprio código. Ao comentar o mencionado dispositivo, Mario Luiz Delgado esclarece que ela estabelece uma espécie de retroatividade mediana, possibilitando que a lei posterior se aplique a negócios jurídicos nos quais os efeitos jurídicos ainda não foram consumados9. Diferente não é a doutrina de Limongi França, para quem a lei nova se aplica aos facta pendentia quanto às suas partes posteriores, bem como aos facta futura10, isto é, tratando-se de mora, a partir da nova lei os juros posteriores passam a obedecer à nova taxa legal.
Dessa forma, entendemos que o disposto na lei 14.905/24, e mais especificamente a nova regra sobre a taxa legal de juros, deve ter aplicação imediata, pois é uma lei que afeta o plano da eficácia do negócio jurídico. Assim, a forma de cálculo atualizada dos juros legais deve ser aplicada a todos aqueles negócios jurídicos existentes e válidos anteriormente à vigência da lei, salvo obviamente disposição em contrário ou estabelecimento convencional da taxa de juros, nas hipóteses em que permitido11. Mais que isso, defendemos que a forma de cálculo deve acompanhar a integralidade da evolução da dívida, mesmo que o inadimplemento tenha ocorrido antes da vigência da lei12. Isso porque o momento de fixação da taxa legal se dá quando a decisão judicial ou arbitral for proferida, aplicando-se, portanto, as regras de eficácia vigentes no momento da aplicação.13
1. 3. EFEITOS DA LEI – APLICAÇÃO EM TABELAS E ÍNDICES PRÉ-DEFINIDOS
Limongi França em obra clássica sobre o tema do direito intertemporal destaca que o fato de a lei nova ter efeito imediato sobre os negócios jurídicos não é colidente com a regra geral de não retroatividade, porque os efeitos imediatos não afetam, a priori, os fatos anteriores e os efeitos anteriores decorrentes desses fatos14. Assim, continua Limongi França, "as novas leis ainda quando não expressas, se aplicam às partes posteriores dos facta pendentia, ressalvado o Direito Adquirido”15. Ou seja, os efeitos posteriores à nova lei, ainda que decorrentes de fatos anteriores, são por ela regulados.
Como exposto, a aplicação dos juros moratórios em uma dada relação jurídica insere-se no plano da eficácia. Ainda que o inadimplemento seja anterior, a situação de mora se renova periodicamente, se protraindo no tempo, de modo que as renovações posteriores à nova lei devem obedecer ao regramento por ela determinado. Nos casos em que as partes se omitiram quanto à taxa de juros moratórios em contratos anteriores à lei 14.905/24 a solução não é diferente, mas não apenas por uma questão de eficácia, senão pela mera supletividade da regra. Ao se omitirem, as partes se sujeitam integralmente à norma vigente ao tempo dos efeitos. Mudando a regra de regência supletiva, muda-se a taxa vigente no negócio.
E quando as partes expressamente previram no contrato a aplicação de juros moratórios de 1% ao mês? Ou mesmo previram a aplicação da SELIC? Vale lembrar que a nova taxa legal é calculada de forma simplificada através da fórmula SELIC – IPCA, portanto, nos dois casos a problemática surge.
Diferentemente dos juros moratórios, os ditos remuneratórios se encontram no plano da validade, em um momento de formação contratual, integrando, usualmente, a própria contraprestação em razão da disponibilização do capital por uma das partes. Os juros moratórios, ainda que inseridos no contrato desde a sua formação, são previstos apenas para a hipótese de inadimplemento. Isso significa que eles não integram a contraprestação originária, mas somente passam a integrar o patrimônio do contratante quando do inadimplemento da contraparte, a cada mês em que o período de mora se renove. Assim, o momento de avaliação da legalidade da taxa de juros moratórios é quando estes se tornam exigíveis e passam a integrar o patrimônio do credor, e não o da formação do contrato.
A leitura isolada do texto do art. 406 do CC poderia levar à interpretação, equivocada, de que as expressões “Quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada” permitiriam a prevalência das cláusulas que fixam a taxa de juros moratórios em qualquer hipótese. A norma do art. 406, contudo, não é dispositiva para todos os seus destinatários. Há de ser realizada a devida leitura sistemática, de modo que a prevalência, no caso dos juros moratórios, da taxa contratada sobre a legal se dá em duas hipóteses: i) nos casos em que a taxa convencionada for inferior à taxa legal; ii) nos casos em que o contrato tem como uma das partes pessoa autorizada a pela lei a contratar juros moratórios acima das taxas legais.
Caso a taxa de juros moratórios prefixada ou utilizada para o cálculo de tabelas seja nominalmente inferior à taxa legal, deve prevalecer o que convencionado pelas partes. O art. 406 não é norma puramente cogente, há parte dispositiva, contudo, limitada a liberdade contratual das partes à taxa legal. Assim, caso as partes prevejam como índice de juros moratórios ou utilizem tabelas destinadas ao cálculo de prestações no caso de mora que sejam inferiores à taxa legal, prevalecerá o que contratado, privilegiando-se aquilo que as partes livremente convencionaram.
Por outro lado, para os efeitos do inadimplemento que ocorrerem após a entrada em vigor da lei 14.905/24, se a taxa de juros moratórios convencionada for superior à taxa legal, ajustes precisarão ser realizados. Isso, a depender se o negócio se insere nas exceções aos limites da lei de Usura ou não, o que será objeto de análise no tópico seguinte.
Diferente não era a interpretação na vigência da redação original do art. 406 do CC, que já trazia a referida abertura, ainda que com redação diversa. É assente que somente poderiam convencionar juros além do limite legal as pessoas cuja liberdade não é restringida pela lei de Usura. A nova lei, portanto, não traz nova interpretação quanto aos limites da norma dispositiva contida na redação do art. 406 do CC.
Assim, a abertura dispositiva contida na primeira parte do art. 406 do CC não representa autorização para que os índices e taxas de tabelas previamente contratados para a situação de inadimplemento prevaleçam sobre a taxa legal, ficando limitados quanto a seus efeitos posteriores à nova lei, dado que não caracterizados como fatos pretéritos, mas como partes posteriores de fatos pendentes (facta pendentia).
2. 4. REVOGAÇÃO DA APLICAÇÃO DA LEI DE USURA AOS NEGÓCIOS ENTRE PESSOAS JURÍDICAS
A lei 14.905/24 trouxe outra importante alteração, o alargamento das exceções aplicáveis às restrições de liberdade contratual presentes na lei de Usura. No período pretérito à nova legislação, poucas eram as exceções à lei de Usura. Basicamente apenas as pessoas jurídicas de direito público e privado integrantes do Sistema Financeiro Nacional estavam autorizadas a contratar juros acima do limite legal, conforme sedimentado na súmula 596 do STF, editada em 197616.
O projeto de lei que originário (PL 6233/23) previa originalmente três novas exceções à lei de Usura, para além da exclusão das entidades do SFN de seu alcance, a saber as operações: contratadas entre pessoas jurídicas; representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários; ou contraídas perante fundos ou clubes de investimento. Após emendas, a redação final foi além, incluindo entre as obrigações não alcançadas pelos limites da vedação legal aquelas contraídas perante, expressamente, as instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central; sociedades de arrendamento mercantil e empresas simples de crédito; e organizações da sociedade civil de interesse público de que trata a lei 9.790, de 23 /3/99, que se dedicam à concessão de crédito.
Das exceções inseridas, duas previsões merecem destaque. A primeira nas obrigações contraídas entre pessoas jurídicas e a segunda naquelas representadas por títulos de crédito e valores mobiliários. Surgem duas questões: i) nas operações contratadas entre pessoas jurídicas a análise dos limites de liberdade é meramente formal de modo que não há qualquer limitação legal à taxa de juros a ser contratada?; ii) no que diz respeito aos títulos de crédito, qualquer obrigação representada por título de crédito está excluída do alcance da lei de Usura? Dado à limitação de espaço, em linhas preliminares, parece que a resposta a ambas as perguntas é negativa.
Sequer para as operações contratadas no âmbito do SFN no período anterior à nova lei havia irrestrita liberdade quanto à taxa de juros contratada. Portanto, a exclusão das obrigações contratadas entre pessoas jurídicas das restrições da lei de Usura não significa ampla e irrestrita liberdade formal, devendo ser realizado um juízo de proporcionalidade a partir dos parâmetros de mercado. Ainda que nos contratos entre pessoas jurídicas os espaços de liberdade negativa sejam ampliados, isso não significa que são irrestritos. Interagem com outros perfis na relação negocial17.
A livre fixação de taxas de juros moratórios nos negócios firmados por pessoas jurídicas prestigia a autonomia privada e a alocação de riscos do negócio pelas partes, de modo que a avaliação de razoabilidade das taxas prefixadas não foge dos critérios de interpretação gerais dos negócios jurídicos que se presumem simétricos e paritários, conforme previsto no art. 421-A do CC. Ressalvado que, para os fins da exceção prevista na lei 14.905/24, o contrato assim considerado deve ser o firmado entre partes que sejam pessoas jurídicas, não se admitindo aí relações entre uma pessoa jurídica e outra natural.
Também quanto aos títulos de crédito, especialmente, a interpretação da exclusão não deve ser a mais abrangente. O entendimento de que, por exemplo, qualquer nota promissória pudesse prever juros acima da taxa legal, significaria uma abertura para evitar a limitação do art. 591 do CC nos contratos de mútuo, por exemplo. Bastaria às partes que ao invés de formalizarem o contrato via instrumento próprio, emitissem uma promissória com vencimento para a data da devolução do capital e a taxa de juros superior ao limite legal. Seja por interpretação pela visão sistemática ou finalística, a conclusão é a de que os títulos de crédito vinculados a operações excluídas do âmbito das restrições da lei de Usura.
Os juros moratórios são uma sanção contra o inadimplemento parcial da obrigação. Assim, a sua definição pelas partes representa alocação de riscos dos negócios, devendo ser privilegiada nos contratos em que autorizada a sua fixação em valores acima da taxa legal, observada a razoabilidade e a condição dos contratantes no caso concreto. Dessa forma, com base nos controles e filtros legais que tutelam o exercício de posições jurídicas pelas partes, uma redução de taxa de juros que seja reputada abusiva pelo julgador será justificável, em especial considerando a vedação do abuso de direito e a função corretiva que emana da boa-fé objetiva.
5. LIMITE LEGAL APLICÁVEL AOS JUROS QUANDO CONVENCIONADOS – INTERPRETAÇÃO DA LEI DE USURA
A última controvérsia que cabe analisar no presente texto diz respeito ao limite legal a ser aplicado quando as partes convencionam os juros moratórios aplicáveis ao contrato. Como se viu acima, a lei de Usura continua em vigor para relações jurídicas que tenha pelo menos uma parte que seja pessoa natural. Em razão disso, as disposições contidas nos arts. 1º e 5º da mencionada lei aplicam-se à essas relações jurídicas, o que pode levar à nulidade da cláusula que estabelece os juros em um contrato18. Adicionado a isso, observa-se a prática contratual brasileira que na sua grande maioria adota a taxa de 1% ao mês, calculada pro rata die, como taxa de juros convencionalmente utilizada. Assim, surgem as seguintes dúvidas: como definir o limite legal aplicável aos juros estipulados pelas partes? Como calcular o que seria o dobro da taxa legal? As taxas de 1% ao mês estabelecidas em contratos serão ou poderão ser consideradas nulas?
A correta interpretação dos artigos acima mencionados à luz do disposto no atual CC sempre foi bastante controversa. Na vigência da antiga regra, Daniel Bucar e Caio Ribeiro Pires, de forma bastante minuciosa, apontavam que, a partir da análise doutrinária e jurisprudencial sobre o assunto, podemos encontrar argumentos para defender 5 limites legais diversos, quais sejam: 1) a própria SELIC; 2) o dobro da SELIC; 3) a SELIC acrescida de 12% ao ano; 4) a taxa1% ao mês, ou seja 12% ao ano; 5) o dobro de 1% ao mês, ou seja 24% ao ano19.
Como a alteração promovida pela lei 14.905/25, algumas dessas hipóteses são afastadas, já que a taxa legal restou definida. Mas essa definição não é capaz de afastar as dúvidas colocadas acima. Isso porque o legislador acabou por acolher uma taxa que é essencialmente móvel, com variação diária de acordo com a regulamentação do CMN20. Dessa forma, calcular qual valor representa uma “taxa(s) de juros superior(es) ao dobro da taxa legal” não é uma tarefa das mais fáceis.
Considerando tal variação, a taxa fixada pelas partes pode ser maior ou menor que o dobro da taxa legal a cada dia que se passa. Se as partes estabelecerem, como ocorre usualmente, uma taxa de juros de 1% ao mês para o caso de atraso no pagamento da remuneração de um contrato de prestação de serviços, é possível que em um dia a taxa esteja dentro do limite legal, enquanto no outro ela esteja acima. Nesse caso, a taxa como um todo seria nula, ou apenas deve-se considerá-la nula nos dias nos quais o seu patamar superar o dobro legal? A resposta não se mostra simples. Certo é que as regras que estabelecem a nulidade de um negócio jurídico, em razão do seu interesse coletivo, são normas de ordem pública, não comportando confirmação ou convalescimento.21 Por outro lado, declarar nula uma cláusula que encontra uma enorme adesão social por conta de um excesso mínimo ou pontual, pode se mostrar excessivo.
Tendo isso em mente, a solução mais adequada deve ser a intermediária, sendo necessário verificar a taxa média aplicada ao longo da situação de inadimplemento da obrigação. Será nula a estipulação quando as partes estabelecerem juros superiores ao dobro legal22. Mas somente nos casos nos quais a média da taxa convencionada for mais que o dobro da taxa legal. Se as partes estabelecerem um patamar médio que seja inferior ao limite legal (ou seja, o dobro), ela deve ser considerada válida. Por outro lado, caso me média a taxa convencionada seja superior ao dobro da média da taxa legal para o mesmo período, o julgador deve declará-la nula e aplicar a taxa legal.
Duas são as ressalvas finais sobre essa questão. Em primeiro lugar, deve-se sempre lembrar que essa limitação se aplica apenas às relações sujeitas à lei de Usura e que não tenham regulamentação específica. Em segundo lugar, por se tratar de um controle que atua no plano da validade do negócio jurídico que estabelece os juros moratórios convencionais, o disposto na lei 14.95/24 só se aplica aos contratos celebrados após o início da sua vigência.
4. 6. CONCLUSÃO
Com o advento da lei 14.905/24, uma das grandes dúvidas doutrinárias e jurisprudenciais sobre a correta interpretação do CC acaba por se encerrar. A mencionada norma, como demonstrado, ao alterar a redação do art. 406 do diploma civil encerra a discussão que durou mais de 20 anos, fixando como taxa de juros legal o resultado líquido da subtração da taxa SELIC pelo IPCA. Com isso, na falta de disposição em contrário, uma relação jurídica de direito privado na qual se verificar uma situação de inadimplemento estará submetida aos juros moratórios calculados considerando essa taxa.
Se a lei tem como principal mérito definir de forma definitiva a taxa de juros supletiva vigente na realidade brasileira, infelizmente ela acaba por deixar algumas lacunas e dúvidas adicionais. Em razão disso, não alcança a plena segurança jurídica que se propôs. Nesse breve ensaio sobre a lei, procuramos apontar quatro questionamentos que ainda pairam sobre o regime legal aplicável aos juros moratórios, cogitando soluções para cada um deles. Assim, para concluir o presente texto de forma propositiva, apresentamos as seguintes considerações:
1) Em que pese a vigência plena da lei 14.905/24 tenha se iniciado apenas em 30/8/2024, a nova taxa de juros legal por ela introduzida aplica-se a todas as relações jurídicas em curso, quanto às suas partes posteriores, mesmo aquelas constituídas anteriormente à publicação da lei, atuando, pois, no plano da eficácia.
2) A lei 14.905/24 não criou uma autorização para que as partes não excepcionadas da lei de Usura estabeleçam índices e taxas de tabelas para a situação de inadimplemento que prevaleçam sobre a taxa legal, sendo certo que esses ficarão limitados quanto a seus efeitos posteriores à nova lei.
3) A maior liberdade trazida pela lei 14.905/24 quando à fixação da taxa de juros moratórios, em razão das novas hipóteses de exceção à lei de Usura, ainda que autorize que as partes excepcionadas estabeleçam taxas superiores ao limite legal, não permite que o façam de modo abusivo.
4) No exercício de controle da taxa de juros moratórios, de acordo com as regras estabelecidas nos arts. 1º e 5º da lei de Usura, deve-se considerar como nula a taxa convencionada pelas partes que supere o dobro da taxa média legal para o período avaliado.
__________
1 É o que se extrai do Enunciado nº 20 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça: “A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês”. Essa era também a posição de um dos autores desse texto: Disponível aqui. Cabe apontar que aquilo que se defendeu no mencionado artigo não foi acolhido pela Lei 14.905/2024, que optou por seguir uma direção diversa. O tema também foi objeto de debate com a Professora Renata Steiner (que defendeu a posição adotada pela lei) em webinar organizado pelo Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil: Disponível aqui.
2 EREsp 727.842/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, 8/9/08 e REsp 1.102.552/CE - 1ª Seção, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, 6/4/09.
3 Cf. Disponível aqui.
4 STJ. REsp n. 1.495.146/MG, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 22/2/2018, DJe de 2/3/2018: "[...] nos termos do art. 406 do CC/2002, 'quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional'. Conforme entendimento pacificado pela Corte Especial/STJ, 'atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei 9.065/95, 84 da Lei 8.981/95, 39, § 4º, da Lei 9.250/95, 61, § 3º, da Lei 9.430/96 e 30 da Lei 10.522/02)'
5 Nesse caso, a Corte Especial do STJ reafirmou o entendimento de que a interpretação a ser conferida ao art. 406 do Código Civil é de que a taxa ali indicada é a SELIC
6 Como leciona Franciso Amaral ao destacar que o direito intertemporal é regido por dois princípios fundamentais, quais sejam, o do efeito imediato e o da irretroatividade. (Direito civil: introdução. 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018 p. 188).
7 Por força da introdução do §2º do art. 406 do Código Civil, alterado pela lei 14.905/2024: “§ 2º A metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação serão definidas pelo Conselho Monetário Nacional e divulgadas pelo Banco Central do Brasil.”
8 Que pode ser acessada por meio desse link: Disponível aqui.
9 DELGADO, Mário Luiz. Comentários ao art. 2.035. SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 1712-1713.
10 LIMONGI FRANÇA, R. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 3. ed. São Paulo: RT, 1982, p. 258. ‘
11 No mesmo sentido é a posição de Carlos E. Elias de Oliveira, o qual adverte que situações como essas não garantem direito adquirido aos credores, em razão da sua natureza de situação jurídica institucional. (Juros remuneratórios, juros moratórios e correção monetária após a Lei dos Juros Legais (Lei nº 14.905/2024): dívidas civis em geral, de condomínio, de factoring, de antecipação de recebíveis de cartão de crédito e outras. Disponível aqui.
12 O que, ao nosso ver, se harmoniza com o enunciado 300 da IV Jornada de Direito Civil do CJF: “A lei aplicável aos efeitos atuais dos contratos celebrados antes do novo Código Civil será a vigente na época da celebração; todavia, havendo alteração legislativa que evidencie anacronismo da lei revogada, o juiz equilibrará as obrigações das partes contratantes, ponderando os interesses traduzidos pelas regras revogada e revogadora, bem como a natureza e a finalidade do negócio.”
13 Interessante notar que essa solução foi a adotada pela Lei de Usura (Decreto 22.626/1933), que no seu art. 3º estabelece o seguinte “Art. 3º As taxas de juros estabelecidas nesta lei entrarão em vigor com a sua publicação e a partir desta data serão aplicaveis aos contratos existentes ou já ajuizados.”
14 LIMONGI FRANÇA, R. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 3. ed. São Paulo: RT, 1982, p. 200.
15 LIMONGI FRANÇA, R. op. cit. p. 202.
16 STF. Súmula nº 596. As disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional. (Sessão Plenária de 15/12/1976).
17 PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Liberdade(s) e Função. contribuição crítica para uma nova fundamentação da dimensão funcional do Direito Civil brasileiro. 2009. Tese (Doutorado em Direito das Relações Sociais), Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009, p. 229.
18 Em razão da chamada nulidade virtual prevista no art. 166, VII do Código Civil: “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.”
19 BUCAR, Daniel; PIRES, Caio Ribeiro. Juros moratórios na teoria do inadimplemento: em busca da sua função e disciplina no direito civil. In: Inexecução das Obrigações: pressupostos, evolução e remédios. Aline de Miranda Valverde Terra e Gisela Sampaio da Cruz Guedes (coord.). Rio de Janeiro: Processo, 2020, p. 474.
20 Como se extrai da redação do art. 6º, Parágrafo Único, da Resolução CMN 5.171 de 29 de agosto de 2024.
21 Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo.
22 Nesse sentido, concordamos com a posição de OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Juros remuneratórios, juros moratórios e correção monetária após a Lei dos Juros Legais (Lei nº 14.905/2024): dívidas civis em geral, de condomínio, de factoring, de antecipação de recebíveis de cartão de crédito e outras. Disponível aqui.