Migalhas de Responsabilidade Civil

A realidade contemporânea, os riscos de desenvolvimento e a responsabilidade civil

Ivan Prux comenta sobre a responsabilidade civil por riscos de desenvolvimento que exigem a fornecedores assumirem danos de produtos inovadores, protegendo os direitos dos consumidores.

20/9/2024

Nas últimas décadas, já se transformou em truísmo o dizer de Ulrich Beck de que vivemos a sociedade de riscos; ao que ele, no título de seu livro, acrescenta a expressão “em busca da seguridade perdida”, a qual não pode ser tomada apenas na perspectiva ambiental, mas considerando-se a conjuntura social como um todo. Pois bem, nessa sociedade de riscos é indubitável que se fazem presentes aqueles que são denominados “de desenvolvimento” (ou estado da arte) que, conforme pacífica doutrina reconhecida no cenário nacional e afirmada por Antonio Herman V. Benjamin é “... aquele risco que não pode ser cientificamente conhecido ao momento do lançamento do produto no mercado, vindo a ser descoberto somente após um certo período de uso do produto ou serviço. É defeito que, em face do estado da ciência e da técnica à época da colocação do produto ou serviço em circulação era desconhecido e imprevisível”.  E aos quais, seguindo a mesma linha doutrinária, Ana Paula Atz refere que conglobam “os defeitos que – em face da ciência e da técnica à época da colocação do produto ou serviço – eram desconhecidos e imprevisíveis”.  Trata-se, segundo Benjamin, de espécie do gênero defeito de concepção .

Foi principalmente a partir da década de 50 do século passado que esse tipo de problema passou a despertar mais atenção devido a repercussão dos casos ligados aos efeitos da talidomida, medicamento que quando do lançamento no mercado estava sendo considerado seguro (usado para aliviar ansiedade e enjoo), mas posteriormente restou demonstrado que quando consumido por mulheres grávidas, era a causa de malformação congênita nos fetos destas. Desde então, esse tipo de constatação pontuou a detecção de vários outros casos, justificando preocupação com a problemática dos riscos de desenvolvimento.

A primeira observação a se fazer é que muito embora essa questão, de modo muito especial envolva a responsabilidade civil em relações de consumo regidas pela lei 8.078/90 (CDC), podem também existirem em situações envolvendo relações regidas pelo CC (exemplo: sob a garantia de tratar-se de um produto seguro, um distribuidor compra um estoque deste, adquire equipamentos ou compra instrumentos relacionados a colocação destes bens no mercado e depois, havendo a descoberta científica de efeito perigoso (por exemplo: radiação), a agência reguladora proíbe a comercialização do mesmo. Então, naturalmente, que os problemas dessa ordem envolvendo consumidores são os mais complexos e delicados, mas não se pode excluir a possibilidade de outros tipos de danos para quem não esteja caracterizado como consumidor.

No tocante a responsabilidade civil, os diplomais legais brasileiros mais relacionados com a matéria não trazem referência expressa a riscos de desenvolvimento ou estado da arte. No art. 927 do CC, a expressão “... ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem” não pode ser tomada como focada em termos de abarcar riscos de desenvolvimento. Essa interpretação seria generalizar/ampliar excessivamente a concepção, visto que riscos também podem existir em produtos e serviços já suficientemente testados e com resultados comprovados (não contrariados) por novidades surgidas de conhecimentos científicos posteriores ao lançamento. Já o CDC, dentre os motivos excludentes do dever de responsabilização do fornecedor, não elenca expressamente (ope legis) esse tipo de risco como justificativa para isenção. Apenas um detalhe: como argumento para os defendem a isenção, observe-se que o CDC em seu art. 12 diz que o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera levando-se em consideração, dentre outros aspectos, a época em que foi colocado em circulação; e mesmo que outro de melhor qualidade tenha sido colocado no mercado. Entretanto, esse dispositivo não vai além da distinção entre produtos de concepção mais avançada comparando-os com os de projeto mais antigo, sem que isso implique em eliminar o dever de segurança inerente a qualquer deles.

Pois bem, em várias legislações estrangeiras, os riscos de desenvolvimento são acolhidos como um excludente do dever de indenizar, opção adotada em nome de incentivo à criação de inovações. Isso está previsto, por exemplo, na diretiva 85/374/CEE e na proposta de sua reformulação (se bem que os estados-membros, tal como fez a França, podem não aderir e não internalizar essa diretriz). Ao mesmo estilo, nos EUA igualmente tem sido aceita essa justificativa que livra o fornecedor do dever de indenizar. O argumento prevalecente reside em que, além de ser necessário criar-se um ambiente favorável ao surgimento de produtos e serviços inovadores, existe a consideração de que responsabilizar um fornecedor por um perigo impossível de ser conhecido segundo o alcançado pela ciência até a época do lançamento, seria torná-lo espécie de segurador virtual do produto .

Indubitavelmente, as inovações são muito ressaltadas na contemporaneidade e há notório incentivo ao empreendedorismo, a pesquisa e aos avanços trazidos pelas inovações. Há todo um ambiente social favorável para que ser incentivada a criação de produtos e serviços mais adequados, com melhor qualidade, inclusive até gerados com uso de inteligência artificial. Entretanto, não há como ignorar-se os casos em que alguns deles redundam em efeitos que não são completamente conhecidos quando de seu lançamento no mercado (e mesmo durante fabricação). São produtos ou serviços que, apesar de passarem por pesquisas que o fabricante, a seu critério, julgou suficientes (podendo a regulação, em seu poder-dever, vir a interferir, algo que, na maioria dos casos, não tem sido rotineiramente demonstrado), só posteriormente mostram seus reais efeitos quando da utilização. E isso nas mais diversas áreas, incluindo, por exemplo, algumas muito sensíveis como a da medicina (remédios e terapias), veículos de locomoção autônomos (total ou parcialmente, de automóveis a aviões) e até situações mais sutis como os efeitos causados pelo uso excessivo de eletrônicos (e tecnologias neles acopladas), os quais comprovadamente modificam o cérebro das crianças e adolescentes com adicção.

Convém atentar que há muitos fatores a se considerar nesse contexto. Perceba-se que o consumidor não pode acabar sendo parte do experimento que irá demonstrar os efeitos do produto ou serviço (como uma cobaia) e é injustificável deixar esse tipo de risco ser imputado a ele. Não se trata de uma mera externalidade que deve ser suportada por todos, sendo completamente injusto deixar-se para o consumidor-vítima, as consequências danosas que vierem a surgir. Também cabe citar-se peculiaridades como as dificuldades práticas para se precisar o momento exato do lançamento do produto, bem como, a forma de se superar a subjetividade da expressão “efeitos imprevisíveis”, em especial ao se tentar dar-lhe contornos precisos quando em análise de caso concreto. Advirta-se a contrário senso, sobre a possibilidade de se indagar se há como serem previsíveis todos e quaisquer efeitos que poderão advir da utilização do produto ou serviço e, diante dos riscos de desenvolvimento, como interpretar-se o art. 10 do CDC que prescreve: “O fornecedor não pode colocar no mercado de consumo produto ou serviços que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança” (grifo nosso). Afinal, a par de não se ter unanimidade quanto ao tipo e número de pesquisas que o fornecedor deve realizar para assegurar inexistência de defeito, há que se considerar o fato de inexistir um banco de dados unificado do conhecimento científico que possa ser consultado no momento do lançamento; afim de identificar-se quais efeitos poderiam ou não serem os efeitos realmente enquadráveis como desconhecidos. Note-se, inclusive as dificuldades de saber-se o que ocorre em todos os laboratórios de pesquisas (e até em quais informações se pode alcançar e considerar científicas, dos costumes indígenas ao que existe postado na internet). E mais, à quem cabe o ônus da prova de que à época do lançamento do produto ou serviço, ainda não existiam conhecimentos científicos para sinalizar os efeitos causadores dos danos que depois se demonstraram reais quando o produto ou serviço foi utilizado. É oportuno lembrar-se, tanto a dificuldade para o fornecedor de fazer prova da não existência do conhecimento (prova negativa), assim como, da vítima em demonstrar que já havia conhecimento científico indicando a possibilidade de efeito danoso, informação que em muitos casos é de difícil acesso para ela trazer aos autos e integrarem o conjunto probatório no processo judicial.

Portanto, tem-se um rol complexo de aspectos a serem observados para, desde logo, numa situação prática, afirmar-se a certeza de se estar a tratar de um risco de desenvolvimento.

Focando no ponto de vista dos interesses empresariais, há que se considerar que para o fornecedor, as pesquisas normalmente são custosas e/ou demoradas, sendo que inserir celeremente o produto ou serviço no mercado tem potencial de impactar positivamente o resultado econômico-financeiro da organização. Nessa condição, o dito popular de que “tempo é dinheiro” ganha força para que, o quanto possível, sejam acelerados os lançamentos dos produtos ou serviços. E, compondo esse cenário, rememore-se que as agências reguladoras – seja por omissão, seja por genuína impossibilidade (fática ou mesmo de competência/atribuição) - nem sempre realizam o papel de contribuir para assegurar que no mercado não seja lançado produto ou serviço defeituoso.

Independente disso, a experiência demonstra que um simples recall, normalmente não é suficiente para reparar todas as situações provocadas por danos causados por produtos ou serviços defeituosos, sendo que com base nas considerações recém-expostas, emerge a necessidade de se repensar o tratamento conferido aos riscos de desenvolvimento como motivo para exoneração do dever de indenizar.

Muito embora seja muito difícil para o fornecedor estimar os custos para suportar os riscos que ele ainda desconhece quando do lançamento do produto, mesmo assim deve-se considerar que produtos inovadores contam um sistema de proteção da propriedade industrial que no caso dos medicamentos, por exemplo, assegura para empresa criadora, a possibilidade de exercer longo período de monopólio , sendo que esses produtos costumam ser colocados no mercado por preços consideravelmente mais elevados. Isso, por si só, deve ser suficiente para atrair a responsabilidade civil pelo risco-proveito. Outro detalhe: pelo processo de internalização, a verdade é que, rotineiramente, são os próprios consumidores que pagam as indenizações, posto que, normalmente, a empresa inclui esses gastos nos preços de seus produtos comprados por esses destinatários finais da produção. Ou seja, repassa os prejuízos que teve de arcar. E no que é deveras importante, acrescente-se que as empresas têm condição de suportar os resultados desses riscos, principalmente considerando instrumentos muitos conhecidos e adotados no mercado com vistas a socorrê-las para serem evitadas falências/quebras, tais como, por exemplo, os seguros (e resseguros), os fundos públicos ou privados criados para amparar empresas em dificuldades, etc. Ressalve-se apenas que não se pode ignorar a possibilidade de, na sociedade de risco em que vivemos, surgirem situações excepcionais, tal como ocorreu quando da epidemia do COVID-19 (causada pelo vírus SARS-CoV-2) em que a indústria farmacêutica e laboratórios não tiveram um tempo adequado para testar completamente os efeitos das vacinas que criaram e com rapidez tiveram de colocar no mercado. Como se tratava de momento aflitivo de busca por salvar vidas humanas aos milhares ou milhões, as vacinas tinham de chegar ao mercado e serem aplicadas no tempo mais curto possível, mesmo sem maiores testes que demandariam mais tempo. Não havia como delongar. E tratando-se de uma excepcionalidade, seu tratamento precisava e precisa considerar essa circunstância, ou seja, como uma exceção a comportar também uma solução diferenciada que não penalize as empresas.

Todavia, não havendo situação caracterizada por comprovada excepcionalidade, conforme os argumentos já descritos, em todos os demais casos envolvendo riscos de desenvolvimento, não mais existe razão para justificar a manutenção dessa concepção de tratar-se de motivo eximente de responsabilidade; concepção essa que pode ser considerada ultrapassada e desconforme com o capitalismo do século XXI.

Apoie-se a livre iniciativa nos termos do art. 170 da CF/88 e não se descuide das proteções para as empresas, mas conforme o já demonstrado, tal não deve lhes conferir um salvo-conduto que, inclusive, as dispense de se utilizarem de outras alternativas já conhecidas para se protegerem. É fundamental entender-se que se as inovações que impelem o progresso capaz de trazer benefícios para os consumidores individualmente e para a sociedade em geral, na realidade acabam sendo benesses para todos, não é justo que o “preço” ou o “custo” disso (na prática: o efeito que resultou em dano) acabe recaindo somente no ser humano vítima de um defeito classificado como risco de desenvolvimento. Portanto, em resumo, reitera-se de forma objetiva: os riscos de desenvolvimento devem estar sob a responsabilidade do fornecedor. Evoluir-se para essa certeza, é o que atende melhor aos direitos humanos, fundamentais e da personalidade inscritos em nossa carta magna, principalmente considerado o ideal de construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.