Migalhas de Responsabilidade Civil

Os meus dados são meus, OAB: Reflexões sobre a violação de dados pessoais em eleições do Quinto Constitucional

Em 2024, advogados da Paraíba votarão pela primeira vez no processo eleitoral do Quinto Constitucional, que ampliou o número de vagas no Tribunal de Justiça.

5/9/2024

Muitos advogados serão, em 2024, pela primeira vez, eleitores no processo eleitoral do Quinto Constitucional. No Estado da Paraíba, por exemplo, houve um aumento de 19 para 26 vagas de desembargador no Tribunal de Justiça, razão pela qual uma das vagas novas será destinada para advogado.

Naquele Estado, no curso do processo eleitoral, 22 advogados/advogadas se inscreveram almejando integrar a lista sêxtupla paritária para futura submissão ao Governador do Estado para escolha do futuro desembargador.

Um dos desafios deste pleito é o fato de que diversas mensagens, incluindo texto, vídeo e fotos, estarem sendo enviadas por diversos candidatos sem que houvesse autorização prévia para o recebimento dessas comunicações. Mas como os candidatos obtiveram os dados dos advogados/eleitores para envio das mensagens? A própria OAB disponibilizou estes dados pessoais para os candidatos com base no art. 22 do provimento 222/23 do CFOAB:

Art. 22. Após o protocolo do requerimento de registro, a chapa tem direito ao acesso à listagem atualizada contendo nome, nome social, se houver (conforme o disposto no parágrafo único do art. 33 do Regulamento Geral), telefone e endereços postal profissional e eletrônico dos(as) advogados(as) inscritos(as) no Conselho Seccional ou, se for o caso, na Subseção, mediante:

I - protocolização de requerimento escrito, formulado pelo(a) candidato(a) a presidente, dirigido ao(à) Presidente da Comissão Eleitoral Seccional;

II - comprovação do pagamento da taxa fixada pela Diretoria para seu fornecimento, a qual não pode exceder o valor correspondente a 10 anuidades vigentes no respectivo Conselho Seccional.
§ 1º No prazo de 03 dias, a contar do protocolo do requerimento, a Comissão Eleitoral Seccional faz a entrega da listagem ao(à) requerente.

§ 2º Cada chapa tem direito a 01 listagem, impressa ou em meio eletrônico, a seu critério, não se admitindo mais de um requerimento por chapa concorrente.

§ 3º A relação de advogados(as) não pode ser utilizada para fins diversos dos concernentes ao processo eleitoral em curso, e o(a) candidato(a) a presidente da chapa requisitante deve assinar termo de compromisso no sentido de não fornecer a terceiros quaisquer dados recebidos, individuais ou coletivos, sob as penas disciplinares e responsabilidade civil e criminal.

§ 4º O fornecimento da listagem tratada neste artigo deverá ser precedido da identificação do membro da Comissão Eleitoral Seccional a repassar os dados pessoais dos(as) advogados(as) eleitores(as), bem como do(a) candidato(a) a presidente da chapa a recebê-los, na qualidade de operador(a), com as precauções e advertências contidas no art. 47 da lei 13.709, de 2018 (LGPD), devendo ficar cientes de que, no caso de desvio de finalidade ou vazamento, responderão nos termos da legislação vigente.

O grande ponto de debate é que, a despeito de a OAB possuir banco de dados informações pessoais e profissionais dos seus inscritos, aparentemente inexiste autorização legal para a OAB disponibilizar o acesso a terceiros.

No contexto da LGPD, o compartilhamento de dados pessoais deve ser guiado por princípios fundamentais que assegurem a proteção dos direitos dos titulares. Entre esses princípios, destaca-se o da necessidade, conforme disposto no art. 6º, inciso III da lei, que determina que o tratamento de dados pessoais deve ser limitado ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, abrangendo apenas os dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades pretendidas. Essa diretriz é particularmente relevante ao considerar a disponibilização de dados pessoais dos advogados para candidatos eleitorais, questionando a adequação e proporcionalidade dessa prática em relação aos direitos dos titulares.

A suposta autorização criada por intermédio de um mero provimento, não fundamentada em qualquer das hipóteses do art. 7º da LGPD representa uma grave violação aos direitos de todos os advogados. A existência de um processo eleitoral não seria elemento autorizativo para disponibilização de tais dados. É incontroverso que os candidatos têm o direito de se comunicar com os seus eleitores e os eleitores têm o direito de saber quem são os candidatos, porém esses direitos não podem ser exercidos mediante violação dos dados pessoais.

Em sentido contrário ao estabelecido pela OAB, o Conselho Federal de Medicina regulamentou o recente processo eleitoral e estabeleceu que as mensagens de candidatos seriam intermediadas pelo próprio CFM, conforme a resolução 2.335/23:

Art. 56. A propaganda eleitoral poderá ser feita por mensagem, devendo ser remetida pelo CRM aos médicos nele inscritos que disponibilizaram endereço de e-mail, assegurando às chapas o envio de até 2 correios eletrônicos de interesse eleitoral e com dimensão razoável.

§ 1º A mensagem de que trata o caput deste artigo deverá ser entregue na secretaria do CRM, em mídia apropriada ou enviada por correio eletrônico, em até 48 horas da data prevista para a remessa, a ser acertada entre a(s) chapa(s), não sendo permitido o envio de correspondência no dia da votação.

§ 2º A mensagem deverá atender aos seguintes critérios técnicos: uma página, com margens (superior, inferior, direita e esquerda) de 2 cm, fonte Arial, tamanho 12 e entrelinhas com espaçamento simples.

§ 3º O teor da mensagem será analisado pela CRE quanto a sua compatibilidade com o Código de Ética Médica e com o art. 47 desta resolução. Havendo incompatibilidade ou infração de quaisquer das normas citadas neste parágrafo, a(s) chapa(s) será(ão) intimada(s) em até 48 horas para correção.

§ 4º O CRM não disponibilizará às chapas eleitorais e/ou aos candidatos a lista de e-mails dos médicos nele inscritos.

Ou seja, enquanto a OAB entrega os dados pessoais dos advogados inscritos aos candidatos sob o pretenso direito de garantir maior amplitude na comunicação entre candidatos-eleitores, o CFM protege o direito dos médicos ao fixar que as mensagens poderão ser enviadas, porém os dados pessoais não serão compartilhados pelo CFM com nenhum candidato.

Dois elementos se destacam e diferenciam as normativas sobre o tema do CFM e da OAB: a) fixação de limite de mensagens enviadas e b) não disponibilização de dados pessoais aos candidatos. Enquanto no regramento da OAB não há regra de quantas mensagens poderão ser enviadas diretamente pelos candidatos sem consentimento dos advogados/eleitores, o que se traduz em uma possibilidade de assédio informacional, o CFM restringe a duas mensagens a serem enviadas por intermédio do próprio Conselho de Classe. 

O ponto central é que não se trata de um acidente e consequente vazamento de dados, mas de entrega voluntária pela OAB, sob pretenso ar de legalidade, de dados pessoais e consequente bombardeio por candidatos em prejuízo dos eleitores/advogados.

A partir de uma releitura do direito ao sossego para tratar de relações não apenas consumeristas, mas também pautadas pelo Direito Administrativo, o envio de mensagens por determinados candidatos, com o respaldo da Ordem dos Advogados, pode ser visto como violação aos direitos da personalidade, como a intimidade, e passível de responsabilização.

Se a lista com os candidatos já é publicizada pela própria OAB, torna-se questionável, especialmente no contexto de vida de redes sociais/mundo digital, a necessidade de uma abordagem direta e individualizada dos advogados pelos próprios candidatos, a partir de dados pessoais tratados sem autorização legal.

A violação de dados pessoais em contextos eleitorais levanta questões sobre a responsabilidade das entidades que gerenciam esses dados. A OAB, ao disponibilizar informações pessoais de advogados para candidatos, parece estar atuando em desacordo com os princípios estabelecidos pela LGPD. Embora o provimento 222/23 da OAB preveja o compartilhamento de dados com candidatos, esta autorização não se alinha com as exigências da LGPD, que preveem um tratamento restrito e necessário dos dados pessoais. O compartilhamento, sem consentimento explícito dos titulares e sem uma base legal adequada, pode configurar violação aos direitos de privacidade dos advogados, trazendo à tona a discussão acerca da das responsabilidades envolvidas.

O art. 42 da LGPD prevê que controlador ou operador do tratamento de dados pessoais devem reparar os dados causados, sejam eles patrimoniais ou morais, individuais ou coletivos. A par das discussões jurídicas em torno da natureza jurídica da OAB, parece tranquila a posição de que, quanto ao serviço prestado, caracteriza-se como um serviço público. Daí a possibilidade de aplicação também do art. 31 da LGPD, com a atuação da autoridade nacional no sentido de adotar medidas cabíveis para fazer cessar a violação.

Daí também decorre que, se o compartilhamento de dados pela iniciativa privada é possível com base nas autorizações legais e consentimento, o compartilhamento de dados pela Administração Pública só é possível de ser realizado com a própria Administração, nos termos do art. 26 ou em hipóteses restritas previstas no art. 27 da LGPD.

Por outro lado, a abordagem adotada pelo CFM demonstra um modelo mais adequado de tratamento de dados. Ao intermediar o envio de mensagens eleitorais sem compartilhar os dados pessoais dos médicos, o CFM preserva a privacidade dos profissionais e limita o risco de assédio informacional. Essa prática reflete um compromisso com a proteção dos dados pessoais e destaca a importância de adotar mecanismos que garantam a segurança e a privacidade dos eleitores.

Paralelamente, candidatos que enviam mensagens quase como mecanismo de spam, em flagrante violação ao sossego, também poderão ser responsabilizados civilmente. Não pela violação de dados, mas pela abusividade com que acionam eleitores. Além do acesso aos dados ter sido baseado em norma flagrantemente ilegal, não é possível que, sob o pretexto da eleição, um advogado tenha seu celular e e-mail inundados com pedidos de voto, material de campanha e convites para ingressar em grupos de apoiadores.

A comparação entre as abordagens da OAB e do CFM evidencia a necessidade de revisão do provimento 222/23 da OAB, para não autorizar a divulgação de dados pessoais para candidatos, de modo a proteger as informações de mais de 1,4 milhão de advogados em futuras eleições da OAB ou processos de formação de listas para o Quinto Constitucional.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.