Migalhas de Responsabilidade Civil

O caso Eddy Jr e a exclusão do condômino antissocial na atualidade brasileira

O caso de Eddy Jr, ofendido racialmente pela vizinha, destaca o debate sobre a exclusão de condôminos antissociais no Brasil.

27/8/2024

Em 2022 ganhou notoriedade vídeo, compartilhado pelo humorista Eddy Jr, no qual a sua vizinha o ofendia reiteradamente de maneira racista. Para além da discussão acerca da responsabilidade civil pelos danos morais causados, tal atitude colou em voga o debate sobre a possibilidade de exclusão de condôminos antissociais.

Apesar de ser uma possibilidade aceita em diversos ordenamentos estrangeiros, esse tipo de sanção ainda encontra alguma resistência no Direito pátrio, devido à falta de previsão expressa no CC.1

Não obstante a falta de unanimidade sobre o tema no país, vem crescendo o número de decisões que entendem pela aplicação da penalidade2, tendo como exemplo mais recente a sentença da 29ª Vara Cível de São Paulo3, na qual a juíza determinou, após dois anos das agressões e ameaças sofridas por Eddy Jr, que sua vizinha seja removida do condomínio devido ao seu comportamento antissocial.

O caso em tela serve como excelente expoente para desmistificar algumas concepções equivocadas sobre assunto, bem como ilustrar alguns problemas de aplicação prática da medida pelos tribunais pátrios.

A começar, deve-se apontar que a referida sentença acertadamente reconheceu que o comportamento da condômina expulsa era, de fato, antissocial. Tal termo, apesar de previsto no art. 1.337 do CC, não tem sua definição bem elucidada pela lei.

Nessa senda, a doutrina define como sendo antissocial o condômino que, de forma reiterada, desrespeite os deveres condominiais, tornando sua convivência incompatível com a dos demais moradores.4

Além disso o caso concreto também apresenta observância do escalonamento das sanções aplicadas à condômina antissocial, de modo que lhe foram impostas sanções pecuniárias iniciais no valor de uma quota condominial, com a última alcançando o valor máximo legal de dez quotas devido ao comportamento reiterado e gravoso.

É justamente após este ponto que a doutrina brasileira se divide. Parte acredita que esta deve ser a punição máxima imposta ao condômino antissocial, uma vez que a sua exclusão, por não ter previsão legal expressa, violaria o ordenamento jurídica por representar forma de extinção do direito real de propriedade não previsto em lei.5

Tal corrente, porém, só mereceria ter razão caso a exclusão se traduzisse, de fato, na venda forçada da unidade autônoma, como previsto em alguns ordenamento alienígenas. Ocorre que, o defendido pela melhor doutrina, é a mera restrição do uso do imóvel, de modo que o proprietário reteria os direitos de fruir e dispor, como bem mencionado na sentença em tela.6

Tal construção se dá pela leitura conjunta da parte final do parágrafo único do art. 1.337 com o art. 1.277 do CC. Ou seja, a expressão “até ulterior decisão da assembleia”, constante naquele, daria permissão aos condôminos para que, uma vez insuficientes as sanções previstas no capítulo de condômino do CC, possam se socorrer da regra geral de direito de vizinhança, prevista neste.7

Assim, afastam-se as principais críticas à aplicação da sanção no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que: i) não há a extinção do direito de propriedade; e ii) o direito de vizinhança permite restrições do uso da propriedade para coibir abuso do direito, inexistindo, então, falta de base legal para a exclusão do condômino antissocial.

Se é verdade que o caso ora analisado representa a crescente aceitação da possibilidade de exclusão do condômino antissocial, como também pode se verificar pela existência de enunciado do 508 do CJF nesse sentido, bem como sua previsão expressa no anteprojeto de atualização do CC, também é inegável que ele ilustra um dos principais problemas de sua aplicação prática: A falta de unicidade nos critérios de aplicação pelos tribunais pátrios.

Tendo em mente a proteção conferida pelo direito constitucional à moradia, é imprescindível que seja conferido um prazo para que o condômino antissocial se mude. Ocorre que, ante a falta de norma expressa sobre o tema, a jurisprudência varia no seu arbitramento.8 A situação se torna ainda mais complexa quando percebe-se que os casos que chegam ao STJ não são apreciados pelo tribunal, que invoca o verbete de sua Súmula 7.

Reconhece-se a louvável intenção dos julgadores em buscar manter a axiologia constitucional ao determinarem tais prazos, porém, os números arbitrados com base em uma noção discricionária de razoabilidade acabam por causar inconsistências com a sistemática civilista.

Entende-se que o prazo concedido para o condômino expulso deve ser o mesmo de trinta dias, dado ao locatário para se retirar do imóvel locado após publicação de sentença de despejo (art. 63, lei 8.245/91).

Tal analogia se justifica pelo fato do prazo contido na ação de despejo e o que é disponibilizado ao condômino que foi removido da convivência condominial exercem a mesma função no ordenamento jurídico: São corolários concreção da tutela da moradia prevista na Constituição Federal.

Ademais, diante do giro repersonalizante promovido pela Constituição Federal de 19889, não se é possível conceder maior proteção ao interesse patrimonial do locador – que teria que esperar apenas trinta dias para reaver o imóvel – do que à dignidade da pessoa humana dos vizinhos ordeiros, que vão se submeter ao martírio de continuar convivendo com o morador antissocial por meses.

Por fim, reafirma-se a necessidade da aplicação da exclusão como forma de garantir a sistemática do ordenamento jurídico, sob pena do seu não reconhecimento transformar a tolerabilidade do abuso do direito de propriedade em uma questão de preço, com os condôminos que possuem condições financeiros de arcar as sucessivas multas recebendo verdadeiro passe livre para desrespeitarem as normas de vizinhança.

Nesta senda, a exclusão representa ponto de intercessão entre a responsabilidade civil e o direito de vizinhança. Tomando como exemplo as lições de San Tiago Dantas10, assim como o proprietário de uma pedreira pode ser obrigado, além de restituir vizinhos pelos danos causados pelo uso de sua propriedade, a restringir determinado uso do seu imóvel, o condômino antissocial, como visto no caso em tela, também pode se ver afastado do seu lar, independentemente de ter que arcar com eventual indenização aos seus vizinhos.

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1 VIANA, Marco Aurélio S. Comentários ao Novo Código Civil: dos direitos reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 566. v. 16. 

2 Cf.: TJSP, 36 ª CDP, AC 1001406-13.2020.8.26.0366. Rel. Des. Milton Carvalho. Julg. em: 22/04/2021;  TJSP, 36 ª CDP, AC 1009323-33.2019.8.26.0006. Rel. Des. Lidia Conceição. Julg. em: 12/12/2022. 

3 TJ/SP. 29ª Vara Cível de São Paulo. Processo no 1007991-98.2023.8.26.0100. Juíza Laura de Mattos Almeida. Julg. em: 30/04/2024.

4 Cf: ABELHA, André. Abuso do direito no condomínio edilício. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013. p. 131-132; FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 726-727. NADER, Paulo. Curso de direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 247. v. 4 

5 LOPES, João Batista. Condomínio. 7 ed. São Paulo: RT, 2000. p 149. 

6 Cf: TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; RENTERIA, Pablo. Fundamentos do direito civil: direitos reais. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 261. v. 5;  MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado: Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 176. v. 5.; LOUREIRO, Francisco Eduardo. Coisas. In: PELUSO, Cezar (coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 15. ed. Santana de Parnaíba: Manole, 2021. p. 1.338; ANGÉLICO, Américo Izidoro. Exclusão do condômino por reiterado comportamento antissocial à luz do novo Código Civil – Atualidades. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024; VIEIRA, Fernando Borges. A exclusão do condômino antissocial. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024; GARCIA, Thyyago. Exclusão de condômino antissocial: é possível? Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024.

7 ABELHA, André. op cit. p. 156. 

8 A sentença analisada concedeu prazo de 90 dias para que a moradora e seu filho deixassem o apartamento. Tomando como exemplo o próprio TJSP, é possível também encontrar decisões cujo prazo foi de 60 dias, como, por exemplo: TJSP, 36 ª CDP, AC 1001406-13.2020.8.26.0366. Rel. Des. Milton Carvalho. Julg. em: 22/04/2021;  TJSP, 36 ª CDP, AC 1009323-33.2019.8.26.0006. Rel. Des. Lidia Conceição. Julg. em: 12/12/2022. 

9 FACHIN, Luiz Edson. O Giro repersonalizante: singrar, a viagem do redescobrimento, In: Estatuto jurídico do patrimônio mínimo: à luz do novo Código Civil brasileiro e da Constituição Federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 231-281. 

10 DANTAS, San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. p. 22.

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ABELHA, André. Abuso do direito no condomínio edilício. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013.

ANGÉLICO, Américo Izidoro. Exclusão do condômino por reiterado comportamento antissocial à luz do novo Código Civil – Atualidades. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024.

DANTAS, San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. p. 22.

FACHIN, Luiz Edson. O Giro repersonalizante: singrar, a viagem do redescobrimento, In: Estatuto jurídico do patrimônio mínimo: à luz do novo Código Civil brasileiro e da Constituição Federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

GARCIA, Thyyago. Exclusão de condômino antissocial: é possível? Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024.

LOPES, João Batista. Condomínio. 7 ed. São Paulo: RT, 2000.

LOUREIRO, Francisco Eduardo. Coisas. In: PELUSO, Cezar (coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 15. ed. Santana de Parnaíba: Manole, 2021.

MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado: Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. v. 5.

NADER, Paulo. Curso de direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. v. 4.

TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; RENTERIA, Pablo. Fundamentos do direito civil: direitos reais. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. v. 5.

VIANA, Marco Aurélio S. Comentários ao Novo Código Civil: dos direitos reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. v. 16. 

VIEIRA, Fernando Borges. A exclusão do condômino antissocial. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2024.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.