Migalhas de Responsabilidade Civil

Reflexões sobre o contrato de seguro e o desastre climático no RS

O recente desastre climático no Rio Grande do Sul, com chuvas e alagamentos, destaca a importância de entender os sinistros em seguros. Sinistros podem ser imediatos ou contínuos, com efeitos prolongados.

22/8/2024

O desastre climático que recentemente se abateu sobre o Rio Grande do Sul compreendeu a ocorrência de chuvas excepcionais, alagamento, cheias de córregos e riachos e mesmo de lagoas, como a Lagoa dos Patos, que veio a transbordar com o escoamento da água acumulada das chuvas. Além de prejudicar a produção rural, as cheias atingiram a região metropolitana de Porto Alegre e inundaram cidades mais ao sul, como Rio Grande e Pelotas, num processo que foi avançando com o passar dos dias. Essa triste situação ilustra a importância de bem compreender o conceito de sinistro com que trabalham os contratos de seguro.

Há, com efeito, sinistros que correspondem a uma ocorrência imediata, instantânea ou de curta duração. Mas há também sinistros contínuos ou cujos efeitos danosos se prolongam no tempo. Nestes casos, podem surgir dúvidas sobre as apólices que respondem pelas perdas decorrentes desses sinistros, quando o evento coberto ou suas consequências se estendem por tempo superior ao da vigência dessas apólices. Ou ainda sobre a possibilidade de a seguradora que as emitiu, nessas situações, recusar a renovação do seguro, para novo período.

Com relação à primeira questão, é preciso ter em conta que os sinistros não são, necessariamente, ocorrências localizadas no tempo. Um sinistro pode ocorrer por tempo longo, ou resultar de causas que já há algum tempo despontavam, mas que só se revelam posteriormente, demorando a serem conhecidas. Muitas vezes, apenas quando sua manifestação danosa se explicita e pode ser conhecida pelo segurado, é que o sinistro se revelará, como sói acontecer no tocante a riscos de construção, ou riscos de produtos e contaminação.

Como sinistro, por definição, é a realização do risco coberto, haverá sinistro uma vez que ocorrido o evento descrito como risco. Risco não se confunde com dano. O risco de falha de montagem ou de fabricação, por exemplo, coberto pelo seguro de riscos de engenharia, pode se manifestar, em sua potencialidade danosa, tempo depois de o equipamento ser colocado em operação, quando já se encontrar vigente o seguro operacional.

Há sinistros, por outro lado, que geram danos que irão se protrair no tempo. O exemplo mais evidente é o de lucros cessantes, à medida que a perda de receita venha a repercutir por período de tempo que ultrapasse o da vigência da apólice em que ocorrido o risco. No seguro de responsabilidade civil, as perdas indenizáveis sofridas por terceiros, como os aluguéis a cargo do segurado até que seja reconstruída sua residência arrastada pela lama de uma barragem que rompeu, ou derrubada num evento de subsidência, podem perdurar por meses ou anos, sendo em regra indenizáveis por força das apólices vigentes à época do rompimento ou da subsidência.

Nesse sentido, vale ressaltar que, com enorme ganho de precisão em relação ao direito vigente, o PLC 29/17, na versão recentemente aprovada pelo Senado Federal, que pouco alterou a versão anteriormente aprovada pela Câmara dos Deputados, estabelece, no art. 70, que “a seguradora responde pelos efeitos do sinistro caracterizado na vigência do contrato, ainda que se manifestem ou perdurem após o término desta”. Importante, também, ressaltar o disposto no parágrafo 5º do art. 66 do mesmo texto, que estabelece a inexigibilidade pela seguradora, em caso de sinistro, de providências que possam “colocar em perigo interesses relevantes do segurado, do beneficiário ou de terceiros ou se implicarem sacrifício acima do razoável”.

Quanto à possibilidade de a seguradora recusar a renovação da apólice, tendo em vista a ocorrência de sinistro de longa duração, ou da possibilidade de sucessivos sinistros de mesma natureza, o primeiro ponto a considerar é que a nova apólice, em regra, não responde por sinistros cuja ocorrência se verificou ou se iniciou antes da renovação.

Entende-se, por outro lado, que a seguradora não pode recusar a renovação se continua a operar no ramo ou modalidade do seguro e não há óbice técnico à renovação. Assim por exemplo, se não ocorreu uma alteração objetiva no estado de risco, como uma mudança geológica impeditiva, a recolocação do seguro não haveria de ser recusada, ainda que cobrando a seguradora um prêmio superior ao do período anterior, fundado numa taxa justificadamente agravada.

Esta compreensão, que não tem amparo expresso no direito atual, também encontra guarida no referido PLC 29/17. Assim, por exemplo, o art. 51 estipula que a recusa da seguradora a uma proposta de seguro – e tanto mais uma de renovação do seguro – tem de ser justificada operacional e tecnicamente, sendo que “os critérios comerciais e técnicos de subscrição ou aceitação de riscos devem promover a solidariedade e o desenvolvimento econômico e social, sendo vedadas políticas técnicas e comerciais conducentes à discriminação social ou prejudiciais à livre iniciativa empresarial”.

Muitas vezes, no entanto, surgem conflitos sobre o tema em torno de cláusulas inseridas nas condições de determinados seguros pelas seguradoras. É o que se verifica, por vezes, em relação às coberturas de falta de suprimento de energia e de alagamento. Há apólices que estabelecem que se danos múltiplos e sucessivos ocorrerem no período de 72h, todo o conjunto será entendido como uma só ocorrência. Se a ocorrência ultrapassar 72 horas, será considerado um outro sinistro, diverso do anterior.1

Isto significa que a seguradora irá considerar incidentes duas ou mais franquias (a participação obrigatória do segurado em parte das perdas verificadas) em vez de computar o desconto, da indenização a ser paga por ela, de apenas uma franquia. As apólices que trazem essa previsão, aliás, não costumam estabelecer a reintegração automática da importância segurada ou do limite máximo de indenização, nessas situações. Assim, o valor do seguro poderá esgotar-se mais rapidamente.

Sem adentrar na discussão da validade de cláusulas como essa, ou seja, no que tange ao tema da renovação do seguro, ora em pauta, poderão surgir conflitos entre segurado e seguradora quando a vigência da apólice em que se iniciou o sinistro terminar logo depois ao primeiro período de 72 horas. Persistindo as mesmas condições que deram causa aos prejuízos reclamados, a exemplo das chuvas excepcionais – ainda que elas parem e voltem –, a seguradora terá de responder por um sinistro, no âmbito da nova apólice, isto é, da apólice renovada, cuja ocorrência pode ser tida como certa.

Presumindo-se que o segurado tenha, em tempo hábil, antes do término da vigência da apólice, proposto à seguradora sua renovação, não parece fazer sentido sua recusa, simplesmente em razão disto. Primeiro, porque o sinistro teve início na apólice a ser renovada – e a continuidade do sinistro ou o prolongamento das perdas dele resultantes, seriam por ela indenizáveis, até o limite ou importância máxima prevista, não fossem disposições como a citada.

Segundo, porque a qualificação da ocorrência que perdurou por mais de 72 horas como um novo sinistro, ou daquela cujos efeitos continuam se manifestando para além dele, é meramente artificial, criada pela própria seguradora. Não tem o condão de implicar óbice técnico, à medida que, pela apólice original, o risco foi garantido normalmente. Nessas condições, frente ao artifício de dividir um mesmo sinistro em dois ou mais, sem que ele tenha de fato ocorrido mais de uma vez, não caberá a alegação de óbice técnico.

Espera-se que a experiência haurida com eventos como o ora discutido, que infelizmente tendem a se reproduzir no futuro, possa impulsionar a realização de estudos técnicos voltados à garantia de interesses presentemente não cobertos pelo mercado segurador, o aperfeiçoamento das coberturas, com melhor redação de clausulados, e interpretações contratuais consentâneas com a função social do contrato, particularmente diante de um sinistro e, especialmente, de sinistro no seguro de responsabilidade civil, modalidade de seguro cuja importância, nas sociedades contemporâneas, se faz cada vez mais notória.

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1 A título de exemplo, trata-se de uma cláusula com redação semelhante a: “Todas as perdas seguradas que ocorram durante um período de 72 horas consecutivas, causadas por: a) terremoto, tremor de terra, maremoto, ou qualquer outro risco decorrente de atividade sísmica segurado sob esta apólice; b) erupção vulcânica; c) furacão, tufão, tornado, vendaval, água direcionada por vento (‘wind driven water') ou qualquer outro risco de vento sob esta apólice; d) alagamento. Serão consideradas como única ocorrência de sinistro, para fins deste seguro. Qualquer um dos eventos acima relacionados que perdurem por mais do que 72 horas consecutivas, será considerado como duas ou mais ocorrências de sinistro. O segurado poderá eleger a data e hora do início de cada período de 72 horas, condicionado a que: I. essa data e hora não seja anterior à primeira perda registrada sofrida pelo segurado; II. a data de início esteja dentro do prazo de vigência deste seguro; III. não haja sobreposição de dois ou mais períodos de 72 horas.”

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.