Migalhas de Responsabilidade Civil

Reflexões sobre o valor jurídico dos instrumentos na perícia para avaliar os danos corporais: é desejável ou não?

Instrumentos jurídicos de perícia podem ser considerados soft law se visarem modificar comportamentos sem criar direitos ou obrigações legais diretas, apresentando estrutura formalizada e aplicável.

15/8/2024

Instrumentos jurídicos de perícia constituem soft law?

Um estudo precedido pelo Conseil d’État francês propôs uma definição droit souple (soft law), também conhecida como droit mou, ao mesmo tempo, três critérios cumulativos que permitem identificar os instrumentos jurídicos que se enquadram nesta categoria de Direito. A soft law é apresentada como todos os instrumentos que cumpram as três condições cumulativas seguintes1:

1ª condição: Estes instrumentos devem ter o propósito de modificar ou direcionar o comportamento de seus destinatários, incentivando, na medida do possível, sua adesão. Este é sem dúvida o caso dos instrumentos utilizados na perícia que conhecemos e da Association pour l’étude de la réparation du dommage corporel - AREDOC, cuja ideia é orientar os atores da compensação para uma melhor aplicação do princípio da reparação integral. A questão da adesão a esta base será examinada mais detalhadamente quando uma análise da natureza desejável ou indesejável do uso destes instrumentos.

2ª condição: Estas ferramentas não devem criar por si mesmas direitos ou obrigações dos seus destinatários. No que diz respeito à indenização por danos corporais, este assume, por exemplo, que a vítima não pode reivindicar com o juiz a utilização deste ou daquele barema de avaliação dos danos, assim como não pode exigir que lhe seja aplicada a base da AREDOC.

3ª condição: Para serem soft law, os instrumentos jurídicos devem finalmente apresentar, através do seu conteúdo e do seu método de desenvolvimento, um grau de formalização e estruturação que os relacione com as regras do direito.

Encontramos esses aspectos perfeitamente estruturados nos diferentes instrumentos utilizados diariamente na perícia por especialistas em avaliação do dano corporal. No que diz respeito a estes três critérios cumulativos estabelecidos no do referido estudo do Conseil d’État, é possível concluir que a grande maioria dos instrumentos utilizados no âmbito da perícia se enquadra bem na categoria de soft law.

Feita esta observação, e na sequência do estudo do Conseil d’État, é agora interessante perguntar se o recurso a estes instrumentos jurídicos se revela útil ou não. É desejável a utilização de instrumentos na perícia para avaliar os danos corporais? Para orientar as partes interessadas na utilização de instrumentos de soft law, o Conseil d’État esforçou-se por identificar critérios para avaliar se é ou não prudente utilizar os instrumentos na perícia para avaliar os danos corporais.

Aqui são propostos três critérios cumulativos2:

O instrumento jurídico deve, antes de mais, ser útil. Este é, sem dúvida, o caso dos diferentes instrumentos utilizados na avaliação dos danos corporais, necessitando de orientação dos peritos e dos assistentes técnicos para garantir uma maior equidade na indenização das vítimas. Assim, tendo obviamente em conta as especificidades das situações individuais, garantir um mínimo de harmonização na avaliação dos parâmetros de dano corporal.

Este critério de utilidade encontra-se na base da AREDOC na medida em que tende a uma aplicação mais respeitosa do princípio da reparação integral. Além disso, deve permitir às vítimas obter uma indenização mais justa porque é mais adequada à realidade das suas necessidades de remuneração.

Para que a utilização do instrumento de soft law seja considerada desejável, os instrumentos analisados também devem atender ao critério da efetividade. Para avaliar esta condição, o estudo do Conseil d’État fornece detalhes valiosos cuja aplicação pode ser verificada no que diz respeito à AREDOC.

Segundo os autores deste estudo, um instrumento seria “eficaz” se “se constatar a probabilidade de uma dinâmica de adesão dos atores envolvidos e a capacidade dos instrumentos se tornarem um padrão de referência”. Enfim, para que o recurso ao instrumento de soft law (direito/regra flexível) possa ser recomendado, deve finalmente poder ser considerado como "legítimo".

A presença massiva do público nos painéis de avaliação do dano corporal na perícia médica, nos Congressos Brasileiros da Sociedade Brasileira de Medicina Legal e Perícias Médicas, parece um primeiro indicador desta dinâmica de adesão e ao longo da última década tornando-se uma "referência padrão".

Para que o uso da ferramenta de soft law seja recomendado, ele deve finalmente ser considerado “legítimo”. Essa legitimidade provavelmente dependerá principalmente avaliada através da legitimidade da própria instituição quem produziu o instrumento jurídico analisado.

O instrumento proposto pela Association pour l’étude de la réparation du dommage corporel (AREDOC), cuja legitimidade é incontestável, emana do mundo dos seguros. Portanto, dos atores cuja imparcialidade também pode ser discutida sem que isso possa pôr em causa a legitimidade da utilização do instrumento jurídico que propõem.

Esta rápida análise leva-nos a concluir que a base de dados AREDOC deverá ser capaz de cumprir os três critérios acima mencionados, uma vez que a sua eficácia seja estabelecida pela generalização do seu uso.3

O valor jurídico das normas técnicas utilizadas em perícia médica

A perícia só adquire o seu sentido pleno através da sua ligação com a decisão, porque é esta que traz à tona a sua função. Mas é a complexidade de conhecer a “factualité” que a torna uma função “technique” inevitável cada vez que se trata de compensar danos corporais. Com efeito, esta complexidade exige o “know-how” de peritos especializados que são obrigados, em particular, a aplicar dados científicos e a utilizar ferramentas técnicas. Isso em um contexto distinto da ciência e da abstração induzindo a ideia de domínio pragmático dedicado a um propósito específico, que em última análise, fornecer informações úteis ao juiz. Com isso é possível observar que as normas técnicas têm diversas formas.4

Mais particularmente, no que diz respeito às normas técnicas avaliação de danos corporais, existem, em particular, escalas, guias e escalas de valores. Assim é possível citar: “le barème invalidité (dans la sphère professionnelle), le barème médico-légal des incapacités, les barèmes « droit commun » (en l’absence d’un barème « officiel »), les différents barèmes établis dans le cadre des assurances individuelles, le barème d’évaluation des taux d’incapacité des victimes d’accidents médicaux, d’affections iatrogènes ou d’infections nosocomiales, le guide barème européen d’évaluation des atteintes à l’intégrité physique et psychique”.5

Algumas escalas possuem uma análise mais anatômica do sequelas, como a do Concours médical, e outros, mais funcionais, como le barème d’évaluation médico-légale ou le barème d’évaluation médicale des accidents médicaux.

Sobre a variedade de denominações, não parece incomodar o Cour de Cassation, uma vez que tenta não retificar ou unificar as diversas formas pelas quais os promotores destes padrões indicativos os qualificaram. Assim, vários acórdãos utilizam os nomes de “barème”, “référentiel”, « nomenclature » e documentos técnicos podem ser designados como normas, coleção de práticas ou usos.6

Os demais baremas de valores médico-legais e de direito consuetudinário são essencialmente derivados da prática. Como tal, eles certamente podem ser qualificados como “normas”, uma vez que servem referência na avaliação de danos corporais, mas sua legalidade é questionável. O que, no entanto, pode argumentar pelo caráter jurídico destas normas técnicas é sua finalidade: Os baremas médico-legais visam permitir a avaliação do dano corporal que se enquadre no âmbito da ordem jurídica. Além disso, estas normas técnicas são utilizadas e validadas pelos avaliadores (peritos) e juiz, na determinação da indenização, tendo assim em conta essas normas técnicas na esfera do direito. Mas, embora adquiram valor legal devido a sua contribuição para a decisão de compensar os danos corporais, eles não podem ser qualificados como “normas jurídicas" por causa de sua multiplicidade, sua falta de coerência e de sua origem.4

Esta reflexão sobre a qualificação jurídica das normas técnicas permaneceria incompletas se a questão do seu alcance não foi considerada. Com efeito, qual é a influência das normas técnicas sobre avaliação dos danos corporais?4

O papel das normas técnicas na avaliação dos danos corporais

Segundo o epidemiologista M. Thuriaux “para agir é preciso compreender, para compreender é preciso saber; para saber, você tem que nomear e às vezes mensurar”.4 Medir significa avaliar e determinar o valor ou estabelecer um número fixando a intensidade ou estado do objeto.7 Alguns autores acreditam que medir não é uma necessidade, como na Inglaterra que não existe um sistema de baremação.4

O legislador inglês optou por uma metodologia descritiva, cabendo ao perito descrever os efeitos posteriores e o seu impacto na vida da vítima do dano. Na França, por outro lado, os danos corporais são medidos pelo perito usando ferramentas periciais que se apresentam na forma de edital ou ficha técnica. Certamente, o advogado não é competente para realizar tal avaliação, mas ele não deve, no entanto, desviar sua atenção dessas ferramentas porque a perícia médica é uma fase crucial dentro do processo de indenização por danos corporais.4

O papel das normas técnicas pode, assim, ser entendido através das três perguntas a seguir4:

1) Em primeiro lugar, por que medir danos corporais com ajuda de ferramentas médico-legais?

A avaliação médica dos danos corporais é uma pré-requisito essencial para avaliação jurídica (financeira) de dano corporal pelo julgador. Contudo, em princípio, para ser capaz de conceder à vítima uma indenização justa no respeito pelo princípio da reparação integral dos danos, o perito deve ser capaz de saber:

2) Em seguida, como são mensurados os danos corporais?

Esta questão diz respeito aos meios disponibilizados especialistas médicos para cumprir sua missão: tabelas/baremas médicos (avaliação em porcentagem/pontos do déficit funcional permanente - DFP), escalas em graus (de 1 a 7).

3) O que é medido exatamente usando as ferramentas médico-legais existentes?

Conclusão

A coluna de hoje ilustra perfeitamente a necessidade de organizar um verdadeiro debate contraditório – incluindo todas as partes interessadas – e multidisciplinar sobre a questão das normas técnicas de medição dos danos corporais, a fim de harmonizar a metodologia da perícia médica. Ademais, a variedade de fontes e alcance das normas técnicas em perícia médica não permite reconhecer uniformemente o seu valor jurídico. Na verdade, isto difere essencialmente dependendo do modo de produção destas normas e do quadro em que são solicitadas.

_________

Etude annuelle 2013 du Conseil d’État, Le droit souple. p. 61. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa)

Etude annuelle 2013 du Conseil d’État, Le droit souple. p. 136-9. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa)

MORLET-HAÏDARA Lydia. Réflexions sur la Valeur juridique des outils d’expertise et de la base ANADOC. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa)

4 GHOZIA Amel, La valeur juridique et le rôle des normes techniques en expertise, Journal du Droit de la Santé et de l’Assurance - Maladie (JDSAM), 2020/2 (N° 26), p. 16-23. DOI : 10.3917/jdsam.202.0016. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa)

Ce barème a vu le jour en 2003 et a été réalisé sous l’égide de la Conférence Européenne d’Experts en Évaluation et en Réparation du Dommage Corporel – CEREDOC. Il s’agissait d’harmoniser au sein de l’Union européenne les systèmes nationaux d’indemnisation du dommage corporel.

Cour de cassation. Le rôle normatif de la Cour de cassation. p. 197. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2024. (tradução nossa)

7 Le Robert. Petit Robert: dicionário da língua francesa. Montreal: Le Robert; 1990. p.1582.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.