Migalhas de Responsabilidade Civil

A reforma do Código Civil e o art. 931

O art. 931 do Código Civil de 2002, que responsabiliza empresários e empresas por danos causados por produtos, foi criticado e substituído em proposta de reforma.

13/8/2024

Um dos dispositivos do Código Civil de 2002 que sempre gerou controvérsia doutrinária é o art. 931, que afirma: “Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação”. Em verdade, por força da própria ressalva à existência de um regime especial, – a saber, a “responsabilidade pelo fato do produto” contida no CDC –, o dispositivo teve questionada a sua própria pertinência, sendo afirmado que “qualquer tentativa de salvar o dispositivo estaria fadada ao fracasso”.1

Talvez por essa razão tenha, de fato, sido proposta a sua revogação pela primeira versão do anteprojeto de reforma do Código Civil submetida à votação dos membros da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal. Contudo, no “Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil”, efetivamente entregue ao Senado Federal, o dispositivo constante do anteprojeto, anexo ao citado “Relatório2, apresenta a seguinte redação:

Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, o fabricante responde independentemente de culpa pelos danos causados por defeitos nos produtos postos em circulação. Parágrafo único. O produto é considerado defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera no momento em que é posto em circulação.”  

O presente artigo, portanto, tem por escopo analisar as alterações propostas na redação do dispositivo acreditando, por certo, que o mesmo possa ser, ao final do longo processo legislativo, convertido em norma vigente. Nesse sentido, a primeira observação que deve ser feita é a substituição da referência aos “empresários individuais e as empresas” pela previsão da responsabilidade do “fabricante”. A alteração não é meramente terminológica, mas acarreta importante repercussão prática. De fato, representa o reconhecimento de que o “verdadeiro introdutor da coisa perigosa no mercado é o fabricante e não o distribuidor”.3

Ao mesmo tempo, afasta a possibilidade de responsabilização do “comerciante”, o qual, por não ter nenhum controle sobre o produto, é igualmente surpreendido pela existência de um defeito no mesmo. Esta realidade já justificava o tratamento dado pelo CDC ao comerciante – o qual somente pode ser responsabilizado pelo “fato do produto” nos casos do art. 13 – e serve de fundamento para a alteração do Código Civil. Em consequência, passa a ser necessária uma leitura mais cuidadosa do enunciado 42 da “I Jornada de Direito Civil” na parte que se refere “à empresa e aos empresários individuais vinculados à circulação dos produtos” (grifou-se). Esta “vinculação à circulação”, com a nova redação proposta, não deve, de fato, ser capaz de gerar, pelas razões já apontadas, a responsabilidade do comerciante.

Outra importante alteração é a referência expressa à existência de um “defeito” no produto como elemento deflagrador do dano, sendo o defeito entendido, na forma do parágrafo único da norma projetada, como violação da legítima expectativa de segurança existente ao tempo da entrada em circulação do produto. É inegável que a nova redação proposta para o dispositivo buscou inspiração no art. 12, § 1º, do CDC, mas não com o intuito de, simplesmente, repetir um sistema já consagrado em nosso ordenamento jurídico, – levando a uma duplicidade talvez inútil –, mas sim com o nobre intuito de evitar a “ruptura do sistema”, afastando a possibilidade de se reconhecer uma responsabilidade sem excludentes do fabricante.4

De fato, a previsão, ainda em vigor, do Código Civil, imputando uma responsabilidade objetiva aos “empresários individuais e às empresas” sem qualquer excludente expressa, sempre foi motivo de grande apreensão doutrinária. Não foi por outra razão que, na VI Jornada de Direito Civil, foi aprovado o enunciado 5625, o qual é corroborado pelo enunciado 661, da IX Jornada de Direito Civil.6 O claro objetivo dos dois enunciados é evitar a possível interpretação de que o art. 931, indo além do sistema protetivo inaugurado pelo CDC, teria consagrado uma responsabilidade civil objetiva fundada no chamado “risco integral”, isto é, sem excludentes.

Assim, caminhou bem o reformador ao incluir o “defeito” como um pressuposto para a responsabilidade objetiva do fabricante.7 Claro que, além deste requisito, também é indispensável a existência de um vínculo de necessariedade entre o defeito e o dano verificado, de forma que as demais excludentes do nexo causal também poderão ser validamente invocadas pelo fabricante.8 

Oportuno observar, porém, que, dentre estas excludentes, não se inclui aquela conhecida como “riscos do desenvolvimento”. Ao contrário, a referência expressa ao “defeito” como requisito para a responsabilidade também no regime do Código Civil serve para confirmar que os riscos presentes no produto, desde o momento de sua entrada em “circulação”, devem ser imputados ao fabricante, ainda que desconhecidos pelo mais avançado estado da ciência e da técnica então em vigor.9 Observa-se, assim, mais uma vez, uma aproximação entre o regime inaugurado pelo CDC e aquele constante do Código Civil.10   

Considerando a (reforçada) proximidade entre os regimes da responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista pelo CDC, e o que se pretende estabelecer com a reforma do art. 931 do Código Civil, deve ser respondida uma pergunta final: Qual a utilidade da manutenção deste último dispositivo? Certo é que não são conhecidos precedentes, na jurisprudência do STJ, que tenham sido fundamentados exclusivamente no disposto no Código Civil.11 A resposta parece residir no fato de que o regime do CDC é caracterizado por sua capacidade expansiva, em especial se for recordado que, para fins do “fato do produto”, consumidor não deve ser entendido somente como “destinatário final” (art. 2º, caput), e sim como qualquer “vítima do evento danoso” (art. 17), o chamado bystander (expectador).12

Assim, o espaço reservado à incidência do art. 931 apresenta-se, de fato, restrito, ficando reservado às hipóteses em que não se mostra possível a aplicação do regime especial.13 Mas parece inquestionável que a aplicação do Código Civil poderá ocorrer em situações em que não se consegue reconhecer a figura do “destinatário final”, e tampouco a figura do bystander, uma vez que se considere inexistente prévia relação de consumo.14 Exemplo pode ser encontrado na venda de elevada quantidade de determinado produto (como, por exemplo, combustível) de um fabricante (pessoa jurídica) para ser utilizado como insumo pela pessoa jurídica adquirente, a qual é dotada de grande porte econômico. No ato da entrega do produto ocorre uma explosão destruindo os caminhões da empresa transportadora, sendo tal explosão decorrente de um defeito presente no produto transportado, o que foi confirmado por prova pericial.15

Para estas situações, ainda que, aparentemente, pouco numerosas, é sim recomendável a existência de norma específica consagradora de uma responsabilidade civil objetiva fundamentada na existência de um defeito no produto causador do dano.

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1 CARNAÚBA, Daniel Amaral. “Para que serve o art. 931 do Código Civil? Considerações críticas sobre um dispositivo inútil”, in Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 7, n. 22, pp. 203-239, jan./mar. 2020.

2 As questões relativas à atuação da Comissão de Juristas, até a apresentação do “Relatório Final”, podem ser acessadas no seguinte endereço eletrônico: “CJCODCIVIL - Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil - Atividade Legislativa - Senado Federal”, acesso em 28.06.2024.

3 Esta conhecida afirmação é de Fábio Konder COMPARATO, "A proteção do consumidor: importante capítulo do direito econômico", in Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial, Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 491. No mesmo sentido pode ser recordada a doutrina de João Calvão da SILVA (Responsabilidade Civil do Produtor, Coimbra, Almedina, 1990, p. 24), segundo o qual é inegável que houve uma "desfuncionalização do comércio", a traduzir uma "alteração da função ou do papel do comerciante: de especialista e conselheiro do adquirente passa a simples distribuidor, a entreposto ou "estação intermédia", mero elo de ligação entre o produtor e o consumidor e cuja função principal, quase exclusiva, está na armazenagem e distribuição dos produtos".

4 O perigo da “ruptura do sistema” foi corretamente apontado por Gustavo TEPEDINO em “Editorial” intitulado “O art. 931 do Código Civil e a antijuridicidade do dano injusto” publicado na Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, Forum, v. 22, pp. 11-13, out./dez. 2019.

5 Afirma o Enunciado 562: “Aos casos do art. 931 do Código Civil aplicam-se as excludentes da responsabilidade objetiva”.  

6 Eis o teor do Enunciado 661: “A aplicação do art. 931 do Código Civil para a responsabilização dos empresários individuais e das empresas pelos danos causados pelos produtos postos em circulação não prescinde da verificação da antijuridicidade do ato”. Para um aprofundamento da “antijuridicidade” como pressuposto da responsabilidade civil extracontratual pode ser vista a doutrina de PETTEFI DA SILVA, Rafael. “Antijuridicidade como pressuposto da responsabilidade civil extracontratual: amplitude conceitual e mecanismos de aferição”, in Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 18, ano 6, pp. 169-214. São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2019. 

7 Para uma defesa do “defeito” como requisito da responsabilidade objetiva também no regime do Código Civil seja consentido remeter a Marcelo Junqueira CALIXTO, “O art. 931 do Código Civil de 2002 e os riscos do desenvolvimento”, in Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, PADMA, v. 21, pp. 53-93, jan./mar. de 2005.     

8 Esta afirmação foi precisamente sintetizada por Gustavo TEPEDINO, “O art. 931 do Código Civil e a antijuridicidade do dano injusto”, cit., p. 13, ao afirmar: “Por esse motivo, também em homenagem à coerência do sistema, as excludentes do dever de reparar previstas no Código de Defesa do Consumidor devem incidir na busca de causalidade necessária entre o dano e o defeito que o produziu”.

9 Sobre o tema dos “riscos do desenvolvimento” seja consentido remeter a obra específica: CALIXTO, Marcelo Junqueira. A Responsabilidade Civil do Fornecedor de Produtos pelos Riscos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, Renovar, 2004. Quanto ao tema, é oportuno recordar que, já na I Jornada de Direito Civil, foi elaborado o Enunciado 43 que afirma: “A responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento”.  

10 Nesse sentido, deve ser recordado que a afirmação de que o CDC não reconhece os “riscos do desenvolvimento” como uma possível excludente da responsabilidade do fornecedor deixou de ser uma questão meramente doutrinária, mas ganhou a adesão judicial. De fato, ao julgar, em 05 de maio de 2020, o Recurso Especial 1.774.372/RS, a Min. Relatora (Nancy Andrighi), acompanhada pelos demais integrantes da Terceira Turma, asseverou, em seu voto, o seguinte: “Ainda que se pudesse cogitar de risco do desenvolvimento, entendido como aquele que não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o medicamento foi colocado em circulação, tratar-se-ia de defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno” (grifou-se).

11 De fato, o precedente “mais próximo’ que se encontra na jurisprudência do STJ é relativo à contrafação de produtos em ação movida pelos titulares das marcas em face de “administradora de centro comercial” situado em área de comércio popular de São Paulo. No caso, a administradora foi solidariamente condenada por ser a locadora de “stands” e “boxes” nos quais eram comercializados os produtos considerados “violadores do direito de propriedade industrial” dos titulares das marcas (Recurso Especial 1.125.739/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 03 de março de 2011). A solução da controvérsia, em verdade, não parece encontrar fundamento no art. 931 do Código Civil, mas o dispositivo havia sido citado pelo TJSP, juntamente com o art. 927 do mesmo diploma, e não houve provimento do Recurso Especial, quanto ao ponto, por força do óbice da Súmula 7 do STJ.   

12 Oportuno recordar os dispositivos do CDC: “Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final; Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento”.

13 Dessa forma, não se mostra correto o Enunciado 378 da IV Jornada de Direito Civil, que afirma: “Aplica-se o art. 931 do Código Civil, haja ou não relação de consumo”. Como visto, o pressuposto para a aplicação do regime do Código Civil é que, efetivamente, inexista relação de consumo, pois, presente esta, o tratamento da controvérsia deve encontrar fundamento no previsto na lei especial.

14 O STJ, de fato, tem precedentes reconhecendo que a aplicação do art. 17 do CDC, reconhecendo o bystander como “vítima do evento danoso”, exige a demonstração de “prévia relação de consumo”. Assim, por exemplo, o taxista não é responsável, como fornecedor de serviços, se, no momento da colisão de seu carro com o de terceiro, não estivesse transportando nenhum passageiro. Este terceiro não será considerado “vítima” de um serviço defeituoso pelo fato de “inexistir prévia relação de consumo” (veja-se, nesse sentido, o julgamento do Recurso Especial 1.125.276/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 28 de fevereiro de 2012).    

15 Outro interessante exemplo é dado por Gustavo TEPEDINO, “O art. 931 do Código Civil e a antijuridicidade do dano injusto”, cit., p. 12, ao afirmar: “Em outras palavras, incide o art. 931, fora das relações de consumo, mas respondendo à mesma dinâmica objetiva de incidência, subordinada à presença de antijuridicidade estabelecida por vício de segurança que o legislador pretendeu coibir como um desvalor. Significa dizer que, em certa atividade lícita, há fato incidental que, independentemente de culpa ou de má utilização pelo destinatário, altera os efeitos legitimamente esperados do produto (imagine-se, a título ilustrativo, o vazamento de certo produto químico no ato de entrega à empresa destinatária)”.  

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.