Uma das diversas inovações propostas pelo anteprojeto de reforma do Código Civil1 diz respeito ao conceito de dano para a responsabilidade civil. “A indenização será concedida”, explicita o art. 944-C do texto, “se os danos forem certos, ainda que diretos, indiretos, atuais ou futuros”.
Como fica evidente, a proposta eleva a certeza ao patamar de elemento central da noção de dano reparável. Afinal, se são reparáveis os danos diretos ou indiretos; atuais ou futuros, isso significa que esses valores não são relevantes para a delimitação do que é dano. Trata-se apenas de critérios de classificação desse conceito. O único elemento trazido pelo art. 944-C e que efetivamente compõe a estrutura conceitual do dano é a certeza.
Nesse aspecto, o anteprojeto acompanha o entendimento da literatura jurídica, que com frequência afirma que a certeza é ao elemento mais importante do dano2. E as razões desta proeminência são facilmente compreensíveis. A responsabilidade é um instrumento para a reparação de danos sofridos. Ora, a reparação de um dano incerto poderia levar ao enriquecimento da vítima, em detrimento do indivíduo condenado a indenizá-la. A exigência da certeza do dano é uma garantia contra a reparação excessiva, evitando que a função reparatória da responsabilidade civil seja corrompida.
Elemento consensual, a certeza do dano nem por isso é uma ideia menos misteriosa. Pelo contrário; sem recorrer a tautologias, é extremamente difícil desmembrar ou explicar um conceito tão elementar quanto a certeza.
Certeza, interesse e reparação integral
Uma pista para se construir um conceito de “certeza” pode ser encontrada na ideia de interesse. Tradicionalmente, o dano é definido como uma lesão a um interesse da vítima3. Por se reportar diretamente a esta noção, a certeza de dano pode ser analisada como um elemento da lesão a um interesse.
A lesão a um interesse é certa quando o fato imputado ao responsável provoca a redução de uma utilidade que favorecia a vítima. Este é o caso quando a vítima perdeu de valores monetários, ou teve um de seus bens deteriorado. Há igualmente uma lesão certa nos casos de violação imaterial aos seus sentimentos ou aos seus direitos da personalidade. Nestas hipóteses, a perda basta para que esteja configurada a lesão a um interesse da vítima: ela possuía um bem, material ou imaterial, e este desapareceu ou foi deteriorado após o incidente. Aqui, a certeza da lesão foi constatada a partir da depreciação do status quo ante. Há um dano certo, pois a situação anterior da vítima foi degradada pela conduta.
Definir a certeza como uma decadência em relação ao status quo ante seria, contudo, uma conclusão prematura. Em primeiro lugar, nem toda deterioração implica uma lesão a um interesse de um indivíduo. Le Tourneau nos fornece um exemplo interessante: um caminhão em alta velocidade derrapa na pista, atingindo um edifício... em vias de demolição4. Temos aí uma perda, mas nem por isso uma lesão a um interesse do proprietário do prédio. Outro exemplo: o para-choque de um carro foi amassado após uma pequena colisão em um semáforo, a qual não trouxe maiores consequências. Algumas horas depois, e sem que houvesse tempo para o retoque na lataria, o veículo se incendeia, em razão de um problema elétrico que não guarda qualquer relação com o incidente anterior. Ora, nenhum proprietário honesto poderia sustentar ter interesse na integridade do veículo doravante inexistente. Tal como o carro, a lesão ao interesse foi consumida pelas chamas.
O que se nota nestes dois casos é que a perda provocada pela conduta do demandado foi neutralizada por outra perda, pela qual ele não é responsável. Não há lesão ao interesse do proprietário do veículo ou do imóvel visto que, para eles, a situação resultante do fato danoso não é diferente da situação que seria produzida na ausência deste fato.
No mais, é possível que a vítima seja atingida em um de seus interesses, sem que haja uma depreciação equivalente de seu status quo ante. É assim quando a vítima se queixa de que a conduta do responsável o teria impedido de auferir lucros, ou de obter outra vantagem qualquer – os chamados lucros cessantes. Nesse sentido, a Corte de Cassação francesa5 em diversas ocasiões reconheceu que as perdas de rendimentos sofridas pelos dependentes da vítima de um acidente fatal são reparáveis ainda que, depois do acidente (e, muitas vezes, em razão dele), estes dependentes tenham iniciado uma profissão, evitando que sua situação econômica fosse rebaixada. Por certo, agora assalariada, a viúva não teve seu sustento reduzido, mas com a ajuda de seu marido ela se encontraria em uma situação ainda mais confortável.
Nestas hipóteses, não há degradação em relação ao status quo ante. A lesão torna-se abstrata, desvencilhando-se das amarras primitivas do dano físico, para se aproximar de uma concepção econômica de perda. É o chamado de custo de oportunidade: a não obtenção de uma vantagem também é uma lesão certa.
A partir destas observações é possível concluir que a lesão a um interesse é certa todas as vezes que a vítima se encontraria em uma situação mais vantajosa, sem o evento imputável ao responsável6. Pouco importa se há ou não uma depreciação em relação ao passado da vítima, bastando simplesmente que a situação decorrente do evento danoso lhe seja desfavorável, se comparada à situação hipotética na qual essa vítima se encontraria. Esta diferença entre a situação hipotética e a realidade é uma condição necessária, mas também suficiente, à constatação de uma lesão certa a um interesse da vítima. O elemento certeza existe se e somente se este desvio é constatado.
A certeza do dano decorre, assim, do desnível entre estes dois parâmetros: o primeiro, a situação real, na qual se encontra a vítima após o dano. O segundo, a situação hipotética, na qual se encontraria a vítima sem este dano. Em outras palavras, a certeza é obtida a partir do confronte das situações, fatual e contrafatual.
É por essa razão que acreditamos que a redação do art. 947 do anteprojeto, que trata da reparação integral do dano, deveria ser revista. Segundo esse dispositivo, “a reparação dos danos deve ser integral com a finalidade de restituir o lesado ao estado anterior ao fato danoso”.
Na verdade, reparação só será verdadeiramente integral se seu objetivo for recolocar a vítima na situação em que ela se encontraria sem o fato danoso, e não na situação em que ela se encontrava antes deste. Reduzida ao reequilíbrio da situação anterior ao acidente, a reparação não incluiria diversas espécies de danos que não implicam a depreciação do status quo ante, como, por exemplo, os lucros cessantes ou a privação do uso de um bem.
Certeza e perda de uma chance
Questão correlata ao tema da certeza do dano é a reparação da perda de uma chance. Não por acaso, o anteprojeto aborda a perda de uma chance nos dois primeiros parágrafos do art. 944-C: “§ 1º A perda de uma chance, desde que séria e real, constitui dano reparável; §2º A indenização relativa à perda de uma chance deve ser calculada levando-se em conta a fração dos interesses que essa chance proporcionaria, caso concretizada, de acordo com as probabilidades envolvidas”.
Esse texto nos é bastante familiar. Por intermédio do professor Nelson Rosenvald, tivemos a honra de encaminhar o esboço de sua redação à subcomissão de Responsabilidade Civil7.
O que há de peculiar aos casos de perda de uma chance é que eles dizem respeito a situações em que o interesse vítima versava sobre um evento aleatório. A vítima tinha uma expectativa, incerta, de obter uma determinada vantagem ou de evitar um mal maior. E essa expectativa foi frustrada ou dificultada em razão fato imputável ao responsável.
Os exemplos já analisados pelos nossos tribunais são bastante conhecidos: o advogado que perdeu um prazo processual é acionado judicialmente por seu antigo cliente, que requer a reparação dos prejuízos decorrentes de sua falha8. Em razão do erro médico, o paciente foi privado de um tratamento adequado, que poderia eventualmente ter evitado sua morte. Por este motivo, a família da vítima ajuíza demanda reparatória em face do profissional negligente ou do hospital9. Impedido de participar de um concurso ou competição, o candidato volta-se contra o responsável pela exclusão injusta10.
Nesses casos, o critério da certeza do dano se revela particularmente problemático, pois é impossível determinar qual é a situação em que vítima estaria sem o ato imputado ao responsável. Como o interesse em questão é aleatório, o litígio comporta uma dúvida irredutível sobre a sorte da vítima. Não fosse pelo incidente, teria ela alcançado o resultado desejado? O paciente estaria curado? O jurisdicionado ou o candidato saíram vitoriosos? Não se sabe e nunca se saberá. Essa dúvida impede que se estabeleça um parâmetro contrafatual e, consequentemente, afasta a certeza do dano.
Recusar a reparação à vítima seria, todavia, uma solução injusta. A despeito de seu caráter aleatório, esses interesses podem se revestir de grande relevância para a vítima. Quem seria capaz de negar, por exemplo, que o tratamento que ofereceria 30% de chances de sobrevida a um paciente com câncer representava o seu bem mais valioso em meio a um prognóstico sombrio? Que, a apesar da incerteza do resultado, realizar o exame vestibular era algo de extrema importância para a estudante que vinha se preparando ele ao longo do ano?
Para resolver esse empasse, forjou-se uma solução tanto mais engenhosa quanto evidente, a saber, a reparação das chances perdidas. Nesse tipo de situação, não é o resultado aleatório que deve ser reparado pelo responsável, mas sim a chance de obtê-lo. Existe uma certeza em todos esses conflitos; a certeza de que a vítima tinha uma chance de alcançar o resultado que desejava, e que essa oportunidade desapareceu, em razão do fato imputável ao responsável. O montante da reparação não corresponderá ao valor da vantagem desejada, mas a uma porcentagem desta, de acordo com as probabilidades efetivamente perdidas pela vítima.
Essa técnica para resolver os conflitos que envolvem a lesão a interesses aleatórios é hoje amplamente aceita no Direito brasileiro, principalmente após a célebre decisão do caso Show do Milhão, proferida pelo STJ em 200511. A proposta encampada pelo anteprojeto de reforma visa consolidar esse conceito, assentando três questões relevantes sobre ele.
Em primeiro lugar, o texto ressalta que a chance, para ser reparável, deve ostentar um mínimo de importância. Recorrendo a uma expressão já consagrada na literatura, a chance passível de indenização precisa ser “real e séria”.
O requisito é de grande relevância para barrar o abuso do conceito de perda de uma chance. A chance é um objeto abstrato; ela não tem uma dimensão material. Por essa razão, sua reparação constitui uma porta aberta aos pedidos oportunistas, pois a vítima pode, sempre, inventar supostas chances perdidas em razão de um acidente. Ao condicionar a reparação das chances ao seu caráter “real e sério”, a proposta evidencia que a reparação de chances não pode ser vulgarizada.
Nesse aspecto, o texto conscientemente não impõe um parâmetro rígido para a determinação do que constitui uma chance real e séria, recusando, em especial, o critério matemático segundo o qual a chance seria relevante apenas se atingisse um patamar mínimo de probabilidades12. Delimitar o que constitui uma chance real e séria é uma questão que há de ser resolvida pela jurisprudência e pela doutrina13.
Em segundo lugar, a redação proposta consolida a forma de calcular da indenização das chances perdidas, a qual leva em conta dois elementos: as probabilidades representadas pela chance e o valor do interesse que essa chance proporcionaria, caso concretizada. O valor da chance perdida nada mais é do que a expectativa matemática representada por essa chance; que grosso modo envolve a multiplicação desses dois fatores.
Esse método de cálculo tem uma implicação importante, a saber, o fato de que o montante da indenização concedida à vítima em razão da chance perdida será sempre menor do que o valor vantagem aleatória que ela desejava. Trata-se de uma exigência lógica: a chance de obter uma vantagem jamais poderia ter o mesmo valor que a própria vantagem. É exatamente o que ocorreu no já mencionado precedente do Show do Milhão, no qual o STJ concedeu à vítima uma indenização de R$ 125.000,00, por ter sido injustamente impedida de responder à pergunta final em uma competição de um programa televisivo. Esse montante inferior ao valor do prêmio almejado por ela, equivalente a R$ 500.00,00, pois o tribunal considerou que a concorrente tinha apenas ¼ de se sagrar vitoriosa.
Existe, com relação a esse ponto, um problema de redação do texto do anteprojeto, mais precisamente no trecho em que afirma que a indenização da chance deve ser calculada “levando-se em conta a fração dos interesses que essa chance proporcionaria, caso concretizada”. Na verdade, se a chance fosse concretizada, ela não proporcionaria fração alguma: a vítima teria então obtido a própria vantagem aleatória que pretendia14. O esboço do texto, encaminhado à subcomissão, previa que a “chance deve ser calculada ‘como’ fração dos interesses”, enfatizando que o valor da indenização representará apenas uma parcela da vantagem aleatória pretendida pela vítima.
Um terceiro aspecto do texto projetado diz respeito à natureza, patrimonial ou extrapatrimonial, do dano representado pela chance perdida. Ao mencionar que a chance deve ser entendida como uma “fração” da vantagem aleatória que a vítima pretendia obter, o texto ressalta a ligação estreita existente entre esses dois interesses. É por essa razão que a chance se reveste da mesma natureza dessa vantagem aleatória.
Assim, por exemplo, se a vítima foi privada da chance de obter um prêmio em dinheiro, essa chance a ser reparada terá natureza de dano patrimonial. Por outro lado, se o concurso em questão tinha caráter puramente honorífico, o dano terá natureza extrapatrimonial. E há hipóteses em que a chance ostentará natureza dúplice. Basta analisar os casos de perda de uma chance médica, em que o paciente foi impedido de receber um tratamento adequado para a sua doença. O interesse do paciente na eventual cura envolve tanto questões patrimoniais quanto extrapatrimoniais, o que se reflete também na chance a ser reparada.
Esse elemento do texto é grande importância para uniformizar o entendimento sobre a perda da chance. Evita-se uma confusão encontrada na jurisprudência, que por vezes trata a perda da chance simplesmente como uma nova espécie de dano moral.
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1 Faz-se referência ao relatório final da Comissão de Reforma, entregue ao Senado.
2 Cf. SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Princípio da reparação integral. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 164.
3 Por todos: SILVA, Rafael Peteffi da. Conceito normativo de dano: em busca de um conteúdo eficacial próprio. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 38, 2024, p. 33-107.
4 LE TOURNEAU, Philippe ; Droit de la Responsabilité et des Contrats. 6. ed. Paris: Dalloz, 2006, n° 1305, p. 364.
5 Crim., 3 março 1993, RTD civ. 1995, p. 128, nota P. Jourdain; Civ. 2a, 2 nov. 1994, RTD civ. 1995, p. 128, nota P. Jourdain; Crim., 13 dez. 1995, Bull. crim. 1995, n° 377, p. 1101.
6 “Ao exigir que o prejuízo seja certo, quer-se afirmar simplesmente que ele não deve ser hipotético, eventual. É necessário que o juiz tenha a convicção de que o demandante estaria em uma situação melhor se o réu não tivesse praticado o fato que lhe é imputado”, MAZEAUD, Henry; MAZEAUD, Léon; e TUNC, André, Traité théorique et pratique de la responsabilité civile. 6. ed. t. I. Paris: Montchéstien, 1965, n° 216, p. 268.
7 Cf. também nossa monografia sobre o tema: CARNAÚBA, Daniel. Responsabilidade civil pela perda de uma chance: a álea e a técnica. Rio de Janeiro: GenMétodo, 2013.
8 STJ, AgInt no AREsp 1.737.042/RJ, 3ª Turma, 09/05/2022.
9 STJ, AgInt no AREsp 2.397.705/SP, 2ª Turma, 27/05/2024.
10 STJ, AgRg no REsp. 1.220.911/RS, 2ª Turma, 17/03/2011.
11 STJ, REsp 788.459/BA, 4ª Turma, 08/11/2005.
12 Cf. Enunciado 444 da V Jornada de Direito Civil: A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também a natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos.
13 Para uma análise aprofundada do conceito de chance "real e séria": HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade civil: a perda de uma chance no Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 82-103.
14 O problema já havia sido apontado por Rafael Peteffi: Responsabilidade civil por fato da coisa na alteração do Código Civil.