Migalhas de Responsabilidade Civil

Princípio da territorialidade e a responsabilidade civil na História: Juízes conservadores da Inglaterra no Brasil

O artigo discute a evolução histórica do princípio da territorialidade e sua influência na responsabilidade civil no Brasil, destacando o impacto dos tratados com a Inglaterra e a jurisdição privativa inglesa durante o século XIX.

20/6/2024

Um dos males na aprendizagem e na reflexão jurídica é saber sobre a fotografia que se vê, mas não saber em que condições ela foi tirada e em que momento estava o contexto em que ocorreu o fato fotografado. Isso prejudica tanto o acadêmico quanto o profissional jurídico, pois passamos a lidar com algo como se fosse uma verdade dada e não construída historicamente na formação de instituições. Isso ocorre com o princípio da territorialidade e seus influxos nas dimensões da responsabilidade civil, segundo o qual as normas brasileiras e jurisdição nacional devem ser aplicadas no Brasil ou em espaço de soberania brasileira, podendo variar em cada contorno de ramo jurídico.

O ponto aqui levantado para reflexão é a dimensão histórica de danos e responsabilidade contratual e extracontratual no Brasil, mas que por envolver cidadão ou interesse ingleses ficavam excluídos da jurisdição ordinária brasileira. Sim, uma época em que a responsabilidade civil no Brasil possuía uma jurisdição específica (dita conservadora inglesa) em virtude do lesante ou lesado, assim como em virtude do objeto ou interesse envolvido.

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro é um ponto inicial. Há uma série de regras relativas à aplicação ou não das normas brasileiras, independentemente da nacionalidade dos envolvidos. O artigo 12 da Lei afirma que é competente a autoridade judiciária brasileira quando for o réu domiciliado no Brasil ou aqui tiver de ser cumprida a obrigação. Igualmente, determina que só à autoridade judiciária brasileira compete conhecer das ações relativas a imóveis situados no Brasil. Lembremos aqui que a redação original é de 1942. Já o Código Penal, que é originalmente de 1940, afirma que se aplica a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional.

Mas por que há tanta preocupação nacional com a territorialidade? Por que o Brasil se envolveu tanto em proclamar algo que para os viventes do século XXI é tão óbvio? Talvez porque o óbvio nada mais é do que uma construção cultural e histórica que precedeu à formação de nossa compreensão de realidade jurídica atual. Não faltaram conflitos no passado quanto ao tema, inclusive relativos ao mito de que teria sido o pós-independência do Brasil um momento pacífico. Nessa linha é preciso descortinar. Nem sempre a análise da responsabilidade civil por danos ocorridos no Brasil esteve sujeita à jurisdição ordinária brasileira.

As primeiras décadas do século XIX são marcadas por conflitos entre brasileiros e ingleses no âmbito privado, embora fundados em acordos e fixações forjados entre os dois países. Esses conflitos envolviam interesses e situações de responsabilização contratual e extracontratual. Aqui se destaca o Tratado entre Brasil e Inglaterra de 1810, firmado logo após a vinda da família real. Seguiram-se a ele outros Tratados, como o de 1826, relativo à independência e seu reconhecimento.

Interligada a esses tratados, advém a Constituição do Império. A Constituição de 1824, em seu artigo 179, possuía dois incisos diretamente afetos ao tema da competência de julgamento. O inciso XVII designava que à exceção das causas que por sua natureza pertencem a Juízos particulares, na conformidade das Leis, não haverá foro privilegiado, nem Comissões especiais nas causas cíveis ou criminais. Já o inciso XXV determinou a abolição das Corporações de Ofícios, seus Juízes, Escrivães e Mestres. Havia assim, Juízes próprios das Corporações ou Juízes privados. Entretanto, em relação à Inglaterra, a situação não se procedeu integralmente, ou seja, não houve uma plena assunção de jurisdição relativa a conflitos envolvendo interesses ou cidadãos ingleses.

Após a independência, Brasil e Inglaterra firmaram o “Treaty of Amity and Commerce between Great Britain and Brazil”, ratificado em Londres em 1827. O Tratado, em razão da extinção das jurisdições particulares, manteve por vias transversas uma jurisdição privativa inglesa, nominada para ser ocupada pelos denominados Juízes Conservadores da Nação Inglesa. O artigo VI do Tratado assim dispunha: 

VI. Tendo a Constituição do Império abolido todas as jurisdições particulares, convém-se em que o lugar de Juiz Conservador da Nação Inglesa subsistirá só até que se estabeleça algum substituto satisfatório em lugar d’aquela jurisdição, que possa assegurar igualmente proteção às pessoas e à propriedade dos súditos de Sua Majestade Britânica. (British and Foreing: State Papers. 1826-1827. Great Britain and Brazil. London, Harrison and son, Lancaster Court, Strand, 1828, p. 1013. Access in: 23 fev. 2022) 

Estabeleceu-se, em fato, jurisdição inglesa em território brasileiro, sob o verniz de se tratar de jurisdição sob acordo do Império brasileiro. O Tratado excepcionou a Constituição da República até que, um dia, viesse a ser dito que haveria um “substituto satisfatório” para a jurisdição inglesa. Se de um lado há o ditado popular “para inglês ver”, de outro deveria haver o ditado popular “para brasileiro esperar”.

A sociedade brasileira passou a conviver com situações esdrúxulas. O Juiz Conservador inglês arrogava-se a decidir inclusive conflitos entre bêbados ingleses e cidadãos brasileiros. Celeumas e conflitos de responsabilidade civil afetos a interesses ingleses ou cidadão inglês possuíam jurisdição própria, provocando verdadeiro paralelismo normativo. Não se tratou bem de uma invenção nacional. Em verdade, o Brasil herdou o instituto já existente em Portugal e, também, na Espanha.

As causas e sentenças relativas aos ingleses eram firmadas a partir de estrutura paralela à jurisdição e às normas brasileiras. Portanto, se um dano ou violação de contrato ocorresse, o juízo competente variaria segundo os envolvidos. Os conflitos no Brasil foram intensos, com uma aversão nacional aos ingleses no século XIX. Há obra belíssima do Ministro Athos Gusmão Carneiro sobre o tema, nomeada “O Juiz conservador da Nação Britânica”. Vale aqui a referência: 

Anota Dias da Mota, entretanto, que em 1839 o governo inglês teria conseguido que seus súditos, residentes no Brasil, ‘que até então iam responder ao júri, tivessem um privilégio para não serem julgados senão pelo seu tribunal especial e não pelo júri’ (Atitudes Inglesas na História do Brasil, 1941, ed. Labor, p. 53) (Carneiro, Athos Gusmão. O juiz conservador da Nação Britânica. In: Revista Inf. Legisl., Brasília, vol. 14, n. 56, out/dez. 1977, p. 245) 

O Brasil manteve os Juízes Conservadores até 1844. Os efeitos e traumas sociais e culturais perseveraram durante décadas. O estabelecimento da prevalência das normas e jurisdição do Brasil não é, portanto, um evento fortuito no cenário jurídico, a desaguar no princípio da territorialidade. Talvez, inconscientemente, ainda tenhamos presente o cenário contextual no qual Tratados e interesses paralelos excepcionavam a própria Constituição Brasileira. A jurisdição brasileira somente galgou ser efetivamente competente para julgar matérias de responsabilidade civil, contratual e extracontratual, dentre outras, após vinte anos da primeira Constituição pátria.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.