Migalhas de Responsabilidade Civil

Aconselhamento genético em oncologia, ética e responsabilidade

O aconselhamento oncogenético, baseado em avanços em Oncologia e Genética, é crucial para personalizar a prevenção do câncer, guiando testes genéticos e estratégias de saúde.

13/6/2024

Os avanços científicos nas áreas da Oncologia e da Genética culminaram na consolidação do aconselhamento oncogenético como importante estratégia personalizada de rastreamento e prevenção diante da possibilidade de surgimento da doença oncológica.

Como premissa dessa consolidação, recomenda-se que tal aconselhamento deva ser realizado por um especialista, tendo em vista que ele é o mais capaz tecnicamente de solicitar o teste genético mais adequado e interpretar os resultados advindos da leitura do conteúdo de natureza genética.

O aconselhamento genético em Oncologia é, antes de tudo, uma revisão criteriosa do histórico familiar e pessoal de câncer de cada paciente. O primeiro passo do aconselhamento consiste na construção do heredograma (representação gráfica capaz de detalhar o histórico familiar), que, através da descoberta de padrões de acometimento de câncer, permite identificar aqueles indivíduos que necessitam de testagem genética1. Esses padrões, como o diagnóstico de câncer em idade mais precoce que a habitual e a identificação de diversos casos da mesma neoplasia em parentes próximos, sugerem predisposição hereditária a esta doença.3

Caso seja recomendado seguir com a testagem, o seu resultado pode identificar variantes genéticas, também conhecidas como mutações, que colocam o aconselhado em um patamar de risco mais elevado para desenvolver determinadas neoplasias, o que afetaria sobremaneira a sua saúde.2 Assim, algumas pessoas com mutações podem ter benefícios significativos com o aconselhamento e a testagem genética, uma vez que se tornam candidatas a protocolos personalizados de rastreamento e prevenção de câncer que, em última análise, podem reduzir drasticamente (90% em alguns cenários) o desenvolvimento de determinadas neoplasias ao longo da vida.4

É importante salientar que os testes permitem a identificação de mutações genéticas relacionadas a um aumento da probabilidade do aparecimento da doença neoplásica e motivam a elaboração de estratégias adequadas a cada caso. É justamente essa característica hereditária do câncer, alcançada pela avaliação feita pelo especialista, que pode justificar a opção por estratégicas profiláticas ou de prevenção, como cirurgias para retirada de órgãos ou uso de medicamentos redutores de risco, além de exames apropriados mais precoces e mais frequentes para fins de rastreamento.3

A popularização dos testes genéticos (voltados para Oncologia e para outras finalidades) é cada vez mais identificada como um fenômeno global, de modo que, em alguns países, pessoas buscam sua realização sem qualquer tipo de orientação especializada. Esse cenário conduz à uma reflexão sobre as consequências (pessoais e sociais) que o acesso desorientado à informação genética pode trazer.

No Brasil, não contamos com lei específica disciplinando criteriosamente o acesso, o uso e o manejo desse tipo de informação, em especial, com foco no problema da discriminação genética. A lei 13.709/18 (LGPD) estipulou regras sobre uso, proteção e transferência de dados pessoais, o que abrange, também, os dados genéticos, categorizados como sensíveis. A norma estabeleceu que o uso de dados dessa natureza está condicionado à chamada autodeterminação informativa, ou seja, à autorização expressa do seu titular, mas não trouxe disposições específicas sobre a informação genética.

As motivações para o aumento do interesse social pelos testes genéticos parecem ser a incessante busca do ser humano por desvendar o que não conhece; o medo de ser surpreendido pelo que possa não ter controle e, ainda, a possibilidade real de ter acesso a mecanismos que possam prever/conter o desenvolvimento de doenças no futuro.

Não há, de fato, nenhum problema nessas motivações. Compete mesmo à ciência propiciar alternativas para o alargamento e a qualidade de vida, buscando promover a saúde e o bem-estar de todas as pessoas.  

As questões que ascendem a esse contexto estão, na verdade, na forma com que essa possibilidade pode ser manejada, já que o acesso e o uso não cuidadosos desse tipo de conhecimento podem criar leituras equivocadas, sentimentos de medo, desespero e vulnerabilidade quanto à proteção sobre as informações sensíveis do ser humano.

O aconselhamento genético também está submetido a regras éticas e jurídicas, ainda que no país não exista legislação especializada, mas previsões normativas pertinentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, a não discriminação genética é disciplinada por lei, que definiu as diversas situações em que a informação genética pode ser solicitada, acessada ou integrada a determinadas relações contratuais, como as de seguro, trabalho, prestação de serviços de saúde e outras.5

O direito à não discriminação genética no Brasil é advindo do sistema de proteção a garantias e direitos fundamentais, alicerçado pela dignidade da pessoa humana. Disso resulta que o processo de aconselhamento oncogenético (como em todas áreas do aconselhamento) é conduta especializada que deve ser guiada pela ética e pela responsabilidade, já que, se feito inadequadamente, pode causar dano ao paciente aconselhado.

Alguns desafios nesse cenário merecem destaque. São poucos profissionais habilitados a fazer aconselhamento genético no Brasil (e também em outras partes do mundo), de modo que a maioria trabalha em clínicas de Oncologia ou hospitais que tenham a especialidade e consultórios privados. Há alguns centros no SUS, normalmente, conectados a serviços prestados por universidades públicas. Recentemente, a permissão do uso da telemedicina possibilitou relevante mudança na forma de se poder realizar o aconselhamento genético. Isso tem propiciado o aumento do acesso ao aconselhamento por muitos pacientes, tendo em vista que a maioria dos especialistas está concentrada nos grandes centros urbanos. Se houver opção pela teleconsulta, será possível encaminhar o teste genético pelo correio para que o paciente possa fazer a coleta da saliva. A coleta é feita em casa pelo próprio paciente, que vai encaminhar de volta o recipiente com a saliva coletada para que o teste seja realizado.6

O uso da telemedicina é orientado pela perspectiva da ética e da responsabilidade do profissional, o que faz com que a teleconsulta para aconselhamento genético também deva ser guiada pelos mesmos cuidados que toda relação médico-paciente demanda.

A consulta de aconselhamento deve contar com o máximo possível de informações relacionadas ao histórico oncológico, tais como: Se já houve diagnóstico de câncer, o resultado da biópsia, o laudo anatomopatológico, o laudo da imuno-histoquímica e, se realizados, os exames genéticos, além das informações sobre os parentes. As informações mais importantes dos familiares se referem ao órgão acometido pela doença oncológica incialmente e, ainda que a doença tenha se espalhado, é importante informar onde ela começou, além de apontar, também, aproximadamente, a idade com que esse parente teve o diagnóstico.1

A obtenção do consentimento informado, assim como em toda relação médico-paciente, é parte integrante do aconselhamento genético. Compete ao aconselhador preservar as informações genéticas do aconselhado, resguardando sua privacidade, e conduzindo a consulta cuidadosamente, em especial, para acolher o indivíduo que possua diagnóstico de predisposição hereditária a câncer.

O manejo da informação obtida por meio do aconselhamento está diretamente relacionado à necessária garantia do cuidado, apregoado pelas conhecidas diretrizes da matriz bioética principialista.7 Lidar com o acesso ao conteúdo do DNA no processo de aconselhamento oncogenético é também não esquecer que a identidade de cada pessoa não pode ser, exclusivamente, contingenciada pelo conteúdo do seu código genético.

No âmbito da responsabilidade, cabe a observação sobre a natureza da obrigação envolvida. Estamos diante de uma obrigação de meio e não de resultado, já que a genética dialoga com o espectro das probabilidades, não se podendo, na maioria das situações, estabelecer um cálculo exato ou uma garantia inequívoca de que a doença vai se manifestar no futuro. Essa premissa deve ser expressamente esclarecida, pelo profissional aconselhador, durante a obtenção do consentimento.

Em casos de violação (não justificada por previsão legal ou decisão judicial) da confidencialidade e da privacidade da informação acessada, é possível falar em responsabilidade do profissional. Dados genéticos são dados pessoais sensíveis e não podem ser cedidos a terceiros, mantendo-se, conforme a LGPD, a regra da autodeterminação informativa.

Atualmente, indivíduos podem ter acesso aos testes genéticos desenvolvidos para investigar predisposição hereditária a câncer em 2 contextos distintos: contexto clínico  - durante uma consulta médica na qual se deseja realizar o diagnóstico de alguma síndrome genética de predisposição a neoplasias, demandando, portanto, um pedido médico; contexto recreativo – através da realização de um teste desenvolvido diretamente ao consumidor, que dispensa a solicitação por um profissional médico, já que está disponível para compra em farmácias e supermercados.

Os testes utilizados dentro do contexto clínico são, em sua maioria, realizados dentro de laboratórios de análises clínicas com certificações nacionais e internacionais de qualidade. Neles, os testes são desenvolvidos seguindo protocolos rigorosos de validação clínico-laboratoriais, avaliando genes que sabidamente estão associados ao risco de desenvolvimento de câncer e os resultados são reportados com base em diretrizes internacionais de classificação de variantes genéticas. Portanto, os laudos são padronizados e permite a reprodutibilidade e compreensão dos achados genéticos em qualquer parte do mundo, trazendo informações valiosas para a cuidado dos pacientes e seus familiares.  

Por outro lado, a maioria dos testes diretos ao consumidor tem objetivo recreativo, analisando de forma superficial diversas características do indivíduo, como ancestralidade, metabolismo e predisposição a determinadas doenças, incluindo o câncer. Em geral, não realizam o sequenciamento completo de todos os genes envolvidos na predisposição hereditária ao câncer e, portanto, não podem ser utilizados como substitutos dos testes realizados dentro do contexto clínico.

Por fim, reitera-se que o aconselhamento genético em Oncologia é estratégia essencial para o contexto familiar e pessoal de determinados pacientes, cabendo sempre ao profissional aconselhador agir com ética, atentando-se aos cuidados que devem ser direcionados a cada caso concreto; alteridade, guiando-se pelo sentimento de empatia; e responsabilidade, mantendo-se alinhado à construção adequada da relação médico-paciente.

__________

1 Guindalini, R. Como é a consulta de aconselhamento genético? Vídeo. Youtube.

2 Meirelles, AT; Guindalini R. Oncogenética e dimensão preditiva do direito à saúde: a relevância da informação genética na prevenção e tratamento do câncer. In: Freire de Sá MF; Meirelles AT; Souza IA; Nogueira RHP; Naves BTO, editores. Direito e medicina: interseções científicas. Belo Horizonte: Conhecimento; 2021. p.155-178.

3 Meirelles, AT; Guindalini R. Oncogenética e Estatuto da Pessoa com Câncer: fundamentos bioético-jurídicos. Revista Bioética, v.30 n.4 Brasília Out./Dez. 2022.

4 Dancey JE; Bedard PL; Onetto N; Hudson TJ. The genetic basis for cancer treatment decisions. Cell. 2012 148(3):409-20. DOI: 10.1016/j.cell.2012.01.014.

5 United States. The genetic information nondiscrimination act of 2008. U.S. Equal Employment Opportunity Commission. 2008 Disponível aquiAcesso em: 15 jan. 2024.

6 Guindalini, R. Onde encontro um profissional para realizar aconselhamento genético? Vídeo. Youtube.

7 Beauchamp TL; Childress JF. Principles of biomedical ethics. New York: Oxford University Press; 1979.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.