Migalhas de Responsabilidade Civil

Anteprojeto de reforma do Código Civil e a previsão da teoria da perda de uma chance

A perda de uma chance enquanto séria e real ganha força no anteprojeto de reforma do Código Civil de 2002.

29/5/2024

Introdução 

O direito de danos como o nome revela por si só cuida especialmente do estudo dos mais diversos danos que o nosso ordenamento prevê: danos materiais, extrapatrimoniais e suas espécies, claro, dentre outros temas que cercam a responsabilidade civil.

O Código de Defesa do Consumidor1 e o Código Civil apresentam disposições sobre a necessidade de reparação integral dos danos.2 A legislação civil a título de exemplos apresenta os danos morais,3 perdas e danos,4 danos emergentes e lucros cessantes5 e a consequente obrigação de indenizar.6

Com o passar do tempo foi ganhando força em nosso Direito a aplicação da denominada teoria da perda de uma chance, ou perda da chance.

No estágio atual sua discussão ganha força eis que o Projeto de reforma do Código Civil inseriu a previsão daquela teoria expressamente por força do art. 944-B como a seguir iremos trazer. 

Perda de uma chance 

Tivemos a oportunidade de analisar a teoria da perda de uma chance à luz de alguns casos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça.7 Na ocasião a nossa pesquisa demonstrou que os pressupostos da responsabilidade civil também se aplicam à teoria da perda de uma chance, esta, no entanto, que deve ser séria, real, no sentido de impossibilidade de se obter uma vantagem ou de se evitar um prejuízo8 à luz dos interesses do lesado.

Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto aprofundando o tema ponderam se tratar a perda de uma chance de um dano autônomo na condição de bem imaterial justamente pela supressão da chance que o dano vem a ocasionar.9 De sorte que “[...] o valor econômico dessa chance será indenizado como uma espécie de dano emergente [...]”, pois de fato a vítima perdeu determinada chance. 

A previsão no anteprojeto

Eis a redação que consta no Anteprojeto: 

Art. 944-B. A indenização será concedida, se os danos forem certos, sejam eles diretos, indiretos, atuais ou futuros.

§ 1º A perda de uma chance, desde que séria e real, constitui dano reparável.

§ 2º A indenização relativa à perda de uma chance deve ser calculada levando-se em conta a fração dos interesses que essa chance proporcionaria, caso concretizada, de acordo com as probabilidades envolvidas.10 

Como dito na introdução destas linhas percebemos que o parágrafo primeiro e segundo, do art. 944-B acima transcrito é inédito no tocante à previsão da expressão da teoria da perda da chance. 

Conclusão

Em bom momento surge a proposta de positivação expressa da teoria da perda de uma chance e com os critérios La estabelecidos, pois, entendemos que sua inserção se assim se confirmar vai de encontro à Constituição Federal11 no sentido de um catálogo aberto dos danos a ser objeto de reparação justamente em atenção à dignidade da pessoa humana.12

O alerta que fica é o de que assim como a doutrina e a jurisprudência já vinham firmado bases é o de que não se trata de qualquer chance perdida que será objeto de indenização, e sim aquela séria, real, inclusive agora reforçada pelo parágrafo primeiro do art. 944-B, do Anteprojeto, de sorte a se constituir como suporte fático da regra sugerida na reforma. 

Referências 

ALMEIDA, Felipe Cunha de. Questões controvertidas em responsabilidade civil à luz do entendimento do STJ. 1 ed. Porto Alegre: Paixão Editores, 2018. 

BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível aqui. 

BRASIL. Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. DF, 11 de setembro de 1990. Disponível aqui. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível aqui. 

ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Responsabilidade civil: teoria geral. 1 ed. Indaiatuba: Foco, 2024.

__________

1 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

  VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

2 Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.

3 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

4 Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

5 Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.

6 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

7 Atualizando: Ementa: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL. COMPETIÇÃO AUTOMOBILÍSTICA. ACIDENTE ENVOLVENDO PILOTO. OMISSÃO DE SOCORRO. AUSÊNCIA DE ENVIO DE AMBULÂNCIA E EQUIPE MÉDICA PRESENTES NO LOCAL. FALTA COM DEVER DE CUIDADO. NEGLIGÊNCIA. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE. APLICABILIDADE.

1. Ação de indenização por danos morais, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 17/7/2023 e concluso ao gabinete em 16/11/2023.

2. O propósito recursal é decidir se há responsabilidade civil da empresa organizadora de competição automobilística por deixar de prestar socorro a piloto que sofreu acidente durante o percurso e morreu afogado, após certo período submerso.

3. A organizadora de competição automobilística, que dispõe de ambulâncias com equipe médica e deixa de enviá-las para socorrer piloto participante que sofreu acidente durante o percurso, pratica ato ilícito pela falta do dever de cuidado esperado, resultando em dano moral, ao frustrar a legítima expectativa de assistência e causar profundo sofrimento e desamparo.

4. De acordo com a teoria da perda de uma chance, a expectativa ou a chance de alcançar um resultado ou de evitar um prejuízo é um bem que merece proteção jurídica e deve, por isso, ser indenizado.

Assim, a simples privação indevida da chance de cura ou sobrevivência é passível de ser reparada. Precedentes.

5. O nexo causal que autoriza a responsabilidade pela aplicação da teoria da perda de uma chance é aquele entre a conduta omissiva ou comissiva do agente e a chance perdida, sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o dano final. Precedentes.

6. Hipótese em que existia chance séria e concreta de que a recorrida, se tivesse enviado a ambulância ao local do acidente de forma imediata, teria conseguido promover o resgate em menor tempo e prestar assistência médica, aumentando significativamente as chances de sobrevida do piloto (marido da recorrente).

7. Recurso especial conhecido e parcialmente provido para julgar parcialmente procedente o pedido formulado na inicial e condenar a recorrida a pagar à recorrente o valor de R$ 30.000,00, a título de danos morais. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 2.108.182/MG. Rel. Min: Nancy Andrighi. Terceira Turma. Julgado em: 16/04/2024. Disponível aqui. Acesso em: 22 mai. 2024).

8 ALMEIDA, Felipe Cunha de. Questões controvertidas em responsabilidade civil à luz do entendimento do STJ. 1 ed. Porto Alegre: Paixão Editores, 2018, p. 65.

9 ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Responsabilidade civil: teoria geral. 1 ed. Indaiatuba: Foco, 2024, p. 606.

10 Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. In: Atividade legislativa. Disponível aqui. Acesso em: 07 mai. 2024.

11 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

12 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.