Migalhas de Responsabilidade Civil

Reforma do Código Civil na quantificação do dano moral: Comentários sobre o art. 944-A

Anteprojeto de lei propõe atualizações no Código Civil, destacando o art. 944-A sobre dano moral, com critérios para sua quantificação, buscando suprir lacunas legais e inspirando-se em dispositivos similares, como os da reforma trabalhista.

14/5/2024

Tendo em vista o anteprojeto de lei em tramitação no Senado, que visa atualizar dispositivos do Código Civil (Lei n. 10.406/2002), torna-se importante apresentar para a comunidade jurídica o significado das novidades trazidas na parte da responsabilidade civil. Tive a felicidade de, em conjunto com o Prof. Nelson Rosenvald, desenvolver e cunhar o art. 944-A da referida proposta, resultado de ideias próprias e de pesquisadores que já se dedicaram sobre o tema[1], o qual discorre sobre a quantificação do dano moral, estando assim disposto: 

Art. 944-A. A indenização compreende também todas as consequências da violação da esfera moral da pessoa natural ou jurídica.

§ 1º Na quantificação do dano extrapatrimonial, o juiz observará os seguintes critérios, sem prejuízo de outros:

I - quanto à valoração do dano, a natureza do bem jurídico violado e os parâmetros de indenização adotados pelos Tribunais, se houver, em casos semelhantes;

II - quanto à extensão do dano, as peculiaridades do caso concreto, em confronto com outros julgamentos que possam justificar a majoração ou a redução do valor da indenização.

§ 2º No caso do inciso II do parágrafo anterior, podem ser observados os seguintes parâmetros:

I - nível de afetação em projetos de vida relativos ao trabalho, lazer, âmbito familiar ou social;

II - grau de reversibilidade do dano; e

III - grau de ofensa ao bem jurídico. 

Antes de discorrer sobre os parágrafos e incisos acima, salutar destacar que tanto a CF/88 (art. 5º, V e X) quanto o CC/2002 (art. 944) não possui parâmetros para a quantificação do dano moral, se limitando a aduzir “extensão do dano”, no caso do diploma civil. Nesta senda, a reforma trabalhista, em seu art. 223-G, foi o diploma legal que mais se aproximou da tentativa de definir balizas. Contudo, enfrentou algumas críticas por parte da doutrina civilista, embora tenha sido louvável a inclusão de algumas molduras, como a avaliação da “natureza do bem jurídico tutelado”, dos “reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão”, da “a intensidade do sofrimento ou da humilhação”, da “extensão e a duração dos efeitos da ofensa”, do “grau de publicidade da ofensa” e da “possibilidade de superação física ou psicológica”. 

Os incisos mais problemáticos foram o “grau de culpabilidade e da capacidade econômica do ofensor”, a “ocorrência de retratação espontânea”, o “esforço efetivo para minimizar a ofensa” e o “perdão, tácito ou expresso”, visto que a perspectiva eminentemente compensatória olha apenas para a vítima e o seu menoscabo e o elemento nuclear do direito de danos é a recomposição do equilíbrio - de forma perfeita ou aproximada – da vida da vítima, em nada tendo importância a capacidade econômica do ofensor ou tentativas de minimizar a ofensa. Ou seja, se o dano foi consumado, o juiz precisa se debruçar sobre todas as nuances do dano injusto para fixar uma indenização proporcional. 

Neste aspecto, a mensuração do quantum indenizatório deve ter harmonia com a magnitude do dano sofrido pela vítima, de modo a realizar a justiça corretiva propugnada pela responsabilidade civil, eliminando o dano imerecido, tarefa esta que no dano material corresponde ao desfalque patrimonial e não demanda maiores digressões, mas em se tratando de dano moral a “anulação” da perda imerecida se dá de modo aproximativo, compensando-a. 

Contudo, em se tratando do dano moral, tal tarefa se mostra muito discricionária e subjetiva se os únicos parâmetros que o julgador tiver forem os valores abstratos da chamada “extensão do dano”, sendo imperiosa a sedimentação de bases (mínimas e não máximas) para que o valor da indenização por dano moral cumpra com maior grau de justiça o papel de eliminar o dano injusto, para, inclusive, viabilizar o controle a nível recursal e acadêmico do des (acerto) da mensuração, prestigiando o contraditório, a fundamentação das decisões judiciais e a segurança jurídica. 

Assim, o estabelecimento de alguns critérios para tal tarefa envolve a investigação da gravidade, intensidade, duração do dano e a compreensão da efetiva repercussão do dano dentro dos complexos projetos, valores e relacionamentos de cada pessoa, pelo que o STJ já teve oportunidade de perfilar que a tarifação pré-fabricada de quantificação do dano moral é ilegal (súmula 281). O fato é que nunca pode ser perder de vista que a tarefa de arbitrar a indenização por dano moral deve ser um trabalho individualizado para a vida da vítima, haja vista que cada pessoa é um ser único e irrepetível, e as intercorrências danosas reverberam de forma particularizada. 

Por esta razão, caminhou bem a virtuosa teoria do método bifásico, desenvolvida na tese de doutoramento (UFRG) do saudoso professor e Ministro Paulo de Tarso Sanseverino e encampada majoritariamente nas turmas do STJ, no sentido de buscar equilíbrio entre o interesse jurídico lesado e a média de indenizações fixadas em casos semelhantes com as especificidades do caso concreto: 

Na primeira etapa, deve-se estabelecer um valor básico para a indenização, considerando o interesse jurídico lesado, com base em grupo de precedentes jurisprudenciais que apreciaram casos semelhantes. Na segunda etapa, devem ser consideradas as circunstâncias do caso, para fixação definitiva do valor da indenização, atendendo à determinação legal de arbitramento equitativo pelo juiz (Resp 1152541/RS) 

Outro aspecto inarredável, antes de adentrar nas justificativas do art. 944-A, diz respeito a cumulação entre dano moral e estético. Em que pese a súmula 387 do Superior Tribunal de Justiça estabelecer que são cumuláveis o dano moral e o dano estético, a proposta busca superar tal proposição, visto que o interesse na integridade física externa ou interna, ligada à anatomia ou à saúde, é apenas mais um dos inúmeros aspectos que possibilitam avaliar a magnitude danosa. Assim, tendo em vista que o dano estético possui outros desdobramentos danosos, o dano estético pode ser compensado sob a alcunha de moral porque é uma espécie do gênero dano moral, como explica Antônio Jeová Santos: 

Em mais de 25 anos de exercício da magistratura, o autor deste trabalho jamais conseguiu estremar as causas do dano moral e do estético, nem viu em algum caso sob julgamento ser possível a apuração dessas causas de forma autônoma. Pense-se em caso grave, qual seja, a amputação de ambas as pernas. Para efeitos de indenização, o dano é moral e material tão somente. Basta que o juiz aumente o valor da indenização, dada a gravidade da lesão, e fixe o montante indenizatório em valor alto, a título de dano moral, para a questão ser solucionada, sem que seja necessária a indesejada repetição (SANTOS, ANTÔNIO JEOVÁ. Dano moral indenizável. 5º ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 363). 

Se, por exemplo, a vítima de um acidente de trânsito perde sua perna direita, deve ser relevado para fins de quantificação do dano moral a privação do membro em si (de parte do corpo); a vergonha que afligirá a vítima em suas relações sociais; a dor e o sofrimento que o ofendido sentiu no momento do acidente e posteriormente; as complicações de medicamentos e cirurgias advindas do evento danos, dentre outros. Ou seja, a questão puramente estética/anatômica/saúde, em si mesma, é talvez o mais importante parâmetro para quantificar a indenização nestes casos, mas que se soma a outros fatores para uma quantificação justa. Além do mais, do ponto de vista teórico nenhuma diferença conceitual existe entre os outros interesses extrapatrimoniais (afetação nos projetos de vida, prejuízo aos afazeres domésticos) e o direito à integridade física. Todos, neste ínterim, são dimensões danosas que representam o menoscabo sofrido pela vítima. 

Diante da multiplicidade de bens jurídicos envolvidos no cabimento do dano moral e das infinitas hipóteses distintas de configuração do mesmo, é inequívoco que não existe e jamais vai existir um rol de parâmetros fechados para que o jurista possa refletir sobre qual o valor adequado para compensar o dano sofrido pela vítima. Contudo, a proposta legislativa buscou algumas balizas de modo a não abandonar a tentativa de imprimir maior racionalidade e menos subjetividade na quantificação do dano moral, pelo que logo no parágrafo 1º prevê a possibilidade de o juiz desbravar outras dimensões danosas, com a expressão “sem prejuízo de outros”. 

O inciso “I” tem por objetivo prestigiar a isonomia, ou seja, o direito de o jurisdicionado ser tratado de igual forma pelo Poder Judiciário: “quanto à valoração do dano, a natureza do bem jurídico violado e os parâmetros de indenização adotados pelos Tribunais, se houver, em casos semelhantes”, na esteira do método bifásico. Portanto, a vida, a integridade física, a integridade psíquica, a privacidade, a honra, a imagem, etecetera, possuem, dentro dos diversos ramos do direito, uma média de quantificação (atraso na entrega do imóvel, extravio de bagagem, calúnia em redes sociais, morte de ente querido, acidentes, assédio moral), a qual deve servir de ponto de partida. 

Essa média de casos semelhantes, para que não fulmine a individualização da magnitude danosa, precisa, para atender o espírito da responsabilidade civil particularizada, adentrar nas peculiaridades do caso concreto, podendo, nessa seara, o valor indenizatório aumentar ou diminuir, conforme o inciso “II” do art. 944-A, tendo em vista as situações do parágrafo 2º: 

I - nível de afetação em projetos de vida relativos ao trabalho, lazer, âmbito familiar ou social;

II - grau de reversibilidade do dano; e

III - grau de ofensa ao bem jurídico. 

Em outras palavras, a perda dos dedos para um professor ou locutor pode representar uma magnitude danosa menor do que o mesmo dano para um pianista ou um pedreiro que necessita cuidar de um filho com deficiência (inciso I), visto que nesses últimos há um atingimento agigantado dos níveis familiares, sociais e de trabalho, por exemplo.  Nessa linha, a própria CLT possui disposição semelhante com os “reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão”, a “extensão e a duração dos efeitos da ofensa” e o “grau de publicidade da ofensa”. 

De igual modo, a violação da honra em um grupo de WhatsApp pode representar uma magnitude danosa inferior ao descalabro da reputação a nível regional ou nacional, sendo, neste último caso, mais irreversível; o estupro de uma mulher é mais irreversível do que pequenas escoriações em acidente de consumo ou trabalho; um corte profundo com cicatriz permanente no rosto é mais irreversível do que pequenas escoriações (inciso II). Assim, a possibilidade de superação da vítima deve servir de critério para uma mensuração justa. A CLT também prevê parâmetro semelhante: “possibilidade de superação física ou psicológica”. 

Deve-se ter em vista também o grau de ofensa ao bem jurídico (inciso III), posto que todos os bens extrapatrimoniais juridicamente protegidos (nome, imagem, honra, integridade física, integridade psíquica, liberdade, igualdade, privacidade, dentre outros – cláusula aberta de tutela da pessoa humana) podem ser lesados em diferentes intensidades e graus. Ou seja, o extravio de bagagem atinge a integridade psíquica em nível menos do que o bullying ou assédio moral; a prisão ilegal viola a liberdade em grau mais intenso do que a detenção por alguns minutos de consumidor em restaurante que não pagou a conta; a transgressão à privacidade com divulgação de número de telefone é diminuta se comparada ao vazamento de dados de saúde. 

Em todas essas balizas constantes nos incisos supracitados, viabiliza-se que o julgador aumente ou diminua o valor indenizatório tendo em vista as nuances do caso concreto, mergulhando de forma séria e comprometida nas camadas danosas que atingiram a vítima. Com a proposta legislativa, tentou-se escapar dos deslizes de alguns incisos da reforma trabalhista, congregando o que houve de acerto dela, com a necessidade definir critérios mínimos para a quantificação do dano moral, permitindo a busca aproximativa do desequilíbrio injusto, abrindo margem para que o Judiciário analise a magnitude danosa em todo o seu plexo, porém com menos subjetivismo e aleatoriedade.  

__________

1 COUTO, Igor Costa; SILVA, Isaura Salgado. Os critérios quantitativos do dano moral segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Orientação da Prof. Maria Celina Bodin de Moraes. Departamento de Direito da PUC/RJ, 2011; SANTANA, Héctor Valverde. A fixação do valor da indenização por dano moral Revista da Informação Legislativa. Brasília a. 44 n. 175 jul./set. 2007; SANTOS, ANTÔNIO JEOVÁ. Dano moral indenizável. 5º ed. Salvador: JusPodivm, 2015; SANTOS, Romualdo Baptista dos. Critérios para a fixação da indenização por dano moral; Bolesina, Iuri. Danos: um guia sobre a tipologia dos danos em responsabilidade civil. 1ª edição. Editora FI, 2020; SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.