Migalhas de Responsabilidade Civil

O organicismo mitigado na sistematização da reforma do Código Civil

A responsabilidade civil dos entes coletivos por atos praticados por seus gestores com ofensa à lei ou aos seus atos constitutivos é tema que atrai profundas controvérsias no Direito Privado brasileiro. O art. 933-A proposto pela Comissão de reforma do CC propõe regular o problema e reduzir externalidades suportadas pelas vítimas.

2/5/2024

A Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de lei para revisão e atualização da lei 10.406/02 (Código Civil) apresentou relatório final, contendo várias propostas de alterações e sistematização do estatuto civil brasileiro.

Dentre tais propostas de alteração, consta no Título que sistematiza as normas da Responsabilidade Civil, o seguinte artigo:

Art. 933-A. A pessoa jurídica é responsável por danos causados por aqueles que a dirigem ou administram no exercício de suas funções.

Parágrafo único. O administrador responde regressivamente nos casos em que agir:

  1. no exercício de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;
  2. em violação legal ou estatutária.

Essa sugestão traz como pano de fundo aspecto da dogmática do Direito Privado que pode ser elucidado por intermédio da Teoria Orgânica (ou organicismo), que fornece um quadro jurídico mais apropriado para explicar e normatizar as relações jurídicas existentes entre os membros dos órgãos sociais, o ente coletivo e terceiros.1

Os entes coletivos atuam por meio de órgãos.2 Ou de outra forma, atuam por intermédio de centros institucionalizados de poderes funcionais com o objetivo de formar e/ou exprimir vontade juridicamente a eles imputável.3

A distinção dos órgãos sociais pode se dá segundo a competência. Tratando especificamente das sociedades, os órgãos de formação de vontade ou deliberativos-internos (tomam decisões expressando a vontade social, mas quase nunca a manifestam para o exterior – não tratam com terceiros: a assembleia de sócios é um exemplo), órgãos de administração e representação (gerem as atividades sociais e presentam as sociedades perante terceiros, a quem fazem e de quem recebem declarações de vontade (a Diretoria, nas companhias, o Administrador, nas Ltdas., são órgãos de representação social. A gestão interna cabe a eles e, quando houver, ao Conselho de Administração) e órgãos de fiscalização ou controle (fiscalizam sobretudo a atuação dos membros do órgão de administração – o Conselho Fiscal).4

Partindo-se da compreensão da pessoa jurídica como realidade jurídica, compreende-se que a administração é exercida pelos órgãos competentes. Esses órgãos não representariam a sociedade, mas a presentariam. Nas palavras de Pontes de Miranda, a pessoa jurídica tem capacidade de direito. Pois que não precisa de representação… Há nestas passagens uma contraposição à Teoria da Representação Legal e Voluntária da pessoa jurídica (mais apropriadas às Teorias da Ficção): quem pratica os atos são os órgãos componentes da estrutura da pessoa jurídica. Órgão é órgão, não é representante voluntário, nem legal.5 Esse pensamento do positivismo jurídico fundamenta a posição majoritária existente na doutrina brasileira que adota o organicismo. No entanto, Pontes de Miranda, também, afirmava se a pessoa ou pessoas que compõem o órgão atuam fora dos limites da competência, o ato não é ato do órgão; portanto, não é ato da pessoa jurídica.Essa afirmação poderia nos conduzir em matéria de responsabilidade à defesa da doutrina Ultra Vires Societatis, eximindo a pessoa jurídica de responsabilidade nos casos de gestão fora do seu objeto social.

E, aqui, o problema se agravaria: a questão da responsabilidade das pessoas jurídicas pelos atos de seus administradores que causam prejuízos a seus membros ou a terceiros é de fundamental importância, posto que, muito comumente, os gestores não podem suportar os ônus financeiros decorrentes de sua responsabilidade civil, tornando-a, assim, ineficaz.7

Portanto, a teoria organicista é mitigada:

  1. considerando que em sede extracontratual a lesão prescinde de um contato prévio entre as partes e que desse modo, as características individuais do lesante são desconhecidas no trafego jurídico, as especificidades da conduta do agente constituem em regra fatos inoponíveis ao lesado, pois “todo indivíduo deve assumir na gestão de sua vivência em sociedade – onde o risco de gerar perigos é constrangedor – a assumpção de uma atitude de cautela, ponderação e razoabilidade”.8
  2. tendo-se em mira que o contato prévio ocorre na relação havida entre a sociedade e os seus gestores, em que o elemento fidúcia9 é presente (a nomenclatura dos deveres fiduciários devidos pelos administradores deve-se à analogia histórica entre os Trusts e as sociedades), o dispositivo tratado neste texto e presente na reforma do Código Civil vem para regular as situações em que os gestores praticam atos com violação da lei ou dos atos constitutivos das pessoas jurídicas, eliminando do Direito Privado brasileiro oportunidades para a defesa da Teoria dos Atos Ultra Vires. Nota-se que, em que pese a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do Código Civil pela lei 14.195, de 26/8/21, há intensa discussão, principalmente no Direito das Companhias, sobre a possibilidade ou não de responsabilização da sociedade por atos ilegais praticados por seus gestores.
  3. Argumentos contrários à responsabilização das S/As por atos não autorizados por Lei ou estatutos podem ser sintetizados assim: a) numa perspectiva teórica, o gestor que assim o fizesse não atuaria como órgão da companhia; b) terceiros não poderiam invocar o argumento da ignorância da ilicitude do ato do administrador, em virtude do regime de publicidade dos atos constitutivos e posteriores alterações.10
  4. Entretanto, o dispositivo legal proposto pela Comissão de reforma tutela a aparência nas relações e a boa-fé. O ônus da prova da má-fé do terceiro caberá à pessoa jurídica que pretende se eximir da responsabilização. A segurança jurídica é modulada para preservar os interesses da vítima, desse modo.

Esse percurso justifica a mitigação do organicismo na reforma do Código Civil, bem como explica a estruturação da cabeça do dispositivo legal. Contudo, o seu parágrafo único merece alguma reflexão.

Os órgãos não se confundem com os seus membros orgânicos. A nomenclatura pode até ser coincidente, como ocorre no caso das Sociedades Limitadas. Há o órgão Administrador e há o membro orgânico a ele correlato: o Administrador. Nas companhias, não há essa coincidência nas nomenclaturas: há a Diretoria e há os Diretores. Os últimos, membros orgânicos.

Pois, o parágrafo único do dispositivo legal cuida da ação de regresso da pessoa jurídica contra os membros orgânicos. Essa ação é justificada nos casos em que o gestor, utilizando-se de sua discricionariedade, viola, formalmente, disposições legais ou normas privadas constantes dos atos constitutivos dos entes coletivos, ou, em relação ao conteúdo, ofende o objeto ou os interesses sociais.

__________

1 DA ROCHA, Glauco. A teoria do órgão de fato e sua aplicação ao Direito brasileiro. Editora Dialética, 2023. p. 20.

2 Os entes coletivos se valem de órgãos para superar sua incapacidade psíquico-biológica de formar, manifestar, administrar ou fiscalizar sua própria vontade. In DA ROCHA, Glauco. A teoria do órgão de fato e sua aplicação ao Direito brasileiro. Editora Dialética, 2023. p. 20.

3 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Curso de direito comercial. Vol. II, Coimbra: Almedina, 2024. p. 72.

4 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Curso de direito comercial. Vol. II, Coimbra: Almedina, 2024. p. 72.

5 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. P. 280-286.

6 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. P. 290.

7 EIZIRIK, Nelson, et al. Mercado de capitais: regime jurídico. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 645.

8 Rosenvald, Nelson; Netto, Felipe Braga. Responsabilidade Civil Teoria Geral (Portuguese Edition) (p. 810). Editora Foco. Edição do Kindle.

9 Existem deveres fiduciários e obrigações orgânicas próprias, decorrentes de uma relação de confiança (...). In DA ROCHA, Glauco. A teoria do órgão de fato e sua aplicação ao Direito brasileiro. Editora Dialética, 2023. p. 22.

10 EIZIRIK, Nelson, et al. Mercado de capitais: regime jurídico. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 645. O diretor só é órgão da sociedade na medida em que atua como tal, ou seja, subordinado ao equacionamento de suas atribuições, dentro dos limites de representação que dimanam da literalidade do objeto social estatutário, e sob o enfoque finalístico do interesse social. E ainda mais. Os poderes concretos para a prática de atos determinados devem ser aferidos por referência às disposições estatutárias, que os graduam e hierarquizam, consoante um ordenamento específico. In GURREIRO, José Alexandre Tavares. Responsabilidade dos Administradores de Sociedades Anônimas. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 42 abr-jun.1981, p. 76.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.