Migalhas de Responsabilidade Civil

Resolução CFM 2.336/23: Liberdade, libertinagem e responsabilidade na publicidade médica

A resolução CFM 2.336/23 autoriza médicos a mostrar antes e depois de pacientes, desde que com transparência e consentimento. Esta liberdade demanda responsabilidade e aponta dilemas.

14/3/2024

A nova Resolução de Publicidade Médica (Resolução CFM n.º 2.336/2023) entrou em vigor em 11/03/2024, mas desde o dia de sua divulgação causou inúmeros burburinhos sobre aquela que é dita como a maior mudança: a autorização dada pelo CFM para que médicos e médicas demonstrem, publiquem e postem o antes e depois de seus pacientes1, os quais se submetem a cirurgias ou procedimentos estritamente estéticos, ou também conhecidas como embelezadoras e cosméticas2.

Os burburinhos dão-se principalmente pela confusão entre liberdade e libertinagem. A chancela dada pelo Conselho Federal de Medicina está amparada no reconhecimento da autonomia do profissional no exercício da medicina e também na urgência de aceitar que as redes sociais são importantes ferramentas de divulgação do trabalho médico – isso é a liberdade.

Já a libertinagem consiste em achismos e opiniões rasas de que agora “liberou geral” e que não haverá mais punibilidade sobre atos inconsequentes, sensacionalistas ou de autopromoção, o que não é verdade, pois tais atos continuam sendo vedado, conforme o artigo 112 do Código de Ética Médica - CEM (Resolução CFM n.º 22/2018), passíveis de sanção ética-profissional.

Em razão disso, é salutar que os(as) médicos(as) compreendam o texto de forma sistêmica, considerando não apenas partes isoladas, mas também o contexto e a intenção geral da resolução, levando em conta a relação entre os diferentes artigos e como se complementam para formar um conjunto coerente de diretrizes, alinhada a todas as outras normas jurídicas que regulamentam a publicidade e propaganda.

Vale lembrar que o artigo 4º do CEM é cirúrgico ao afirmar que é vedado ao médico “deixar de assumir a responsabilidade de qualquer ato profissional que tenha praticado ou indicado, ainda que solicitado ou consentido pelo paciente ou por seu representante legal”. Dantas e Coltri (2020, p. 128) comentam que “ao assumir riscos, seja por conta própria, seja para atender a uma solicitação de seu paciente, não pode o médico tentar se eximir de suas responsabilidades”.

Com isso, torna-se compreensível que conferir maior liberdade na propaganda médica tornará o médico ainda mais responsável pelos seus atos – e agora, ainda mais, pelos seus posts – tanto na esfera ética, administrativa em razão da Lei geral de Proteção de Dados (lei 13.709/2018, alterada pela lei 13.853/2019), como também na esfera cível.

No contexto da publicidade de procedimentos estéticos no meio digital, é importante esclarecer que o problema de imagens de antes e depois está relacionado à questão da veracidade, transparência e vinculação de expectativas do resultado aos consumidores. O artigo 6º, inciso IV e o art. 37, §1º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que se aplicam à relação médico-paciente, estabelecem que a publicidade não pode ser enganosa, abusiva ou capaz de induzir o consumidor a erro.

Portanto, embora haja autorização pelo CFM para a utilização de imagens de antes e depois em cirurgias estéticas, este tipo de publicidade no meio digital pode apresentar os seguintes problemas caso não seja utilizada de forma educativa, sendo elas:

a) Engano ou falsa expectativa: as imagens de antes e depois que demonstram resultados bem-sucedidos sem explicar suas peculiaridades, e a manipulação excessiva dessas imagens, com filtros e utilização de Photoshop, para fins de publicidade, podem criar expectativas irreais nos consumidores sobre os procedimentos estéticos, podendo caracterizar propaganda enganosa, além de vincular o resultado a utilização da técnica ou procedimento cirúrgico estético.

b) Indução ao erro: a utilização de imagens de antes e depois pode induzir os consumidores a acreditarem que todos os pacientes alcançarão resultados semelhantes, desconsiderando a álea terapêutica. Isso pode levar os consumidores a tomarem decisões precipitadas ou baseadas em informações incompletas.

c) Falta de transparência: se as imagens de antes e depois não forem claramente identificadas como representações individuais de casos específicos e não forem acompanhadas de informações relevantes sobre os resultados típicos e possíveis complicações, isso pode ser considerado falta de transparência e publicidade enganosa.

Consequentemente, a divulgação do antes e depois de procedimentos ou cirurgias estritamente estéticas poderá vincular o médico a uma evidente e inquestionável promessa de resultado, haja vista que as imagens de antes e depois postadas são sempre bem-sucedidas e exitosas. As expectativas desproporcionais dos pacientes ou não alinhadas corretamente entre o médico e seu paciente podem gerar insatisfações com reflexos diretos na esfera da responsabilidade civil. Com isso, estará o médico inserido na obrigação de resultado, a qual presume a culpa do médico pela simples frustração da finalidade a que se vinculava o profissional (KFOURI NETO, 2018, p. 241).

É importante ressaltar que a responsabilidade civil no campo da cirurgia estética atinge maiores proporções, isso porque o Superior Tribunal de Justiça e os Tribunais Estaduais brasileiros, possuem o entendimento consolidado de que o médico tem culpa presumida ao assumir a obrigação de resultado, ou seja, basta que o paciente demonstre dano – que o médico não alcançou o resultado prometido e contratado – para que a culpa se presuma (STJ, REsp 985.888/SP e REsp 236.708/MG), o que torna a fase probatória desfavorável à defesa do(a) médico(a) nas ações de responsabilidade civil, pois nesses casos é possível a inversão do ônus probatório, cabendo ao médico o ônus de comprovar motivo de força maior, caso fortuito ou mesmo de culpa exclusiva da ‘vítima’ (paciente). (TARTUCE; ASSUMPÇÃO NEVES, 2021, P. 132).

O uso deliberado de antes e depois, sem a devida cautela alinhada ao uso de termos de consentimentos genéricos, poderá ensejar eventuais condenações por danos morais fundamentados pela violação do dever de informação (art. 6º, inc. III, do CDC), pois o(a) médico(a) comete uma falha profissional ao não informar adequadamente o paciente sobre os riscos da cirurgia e do procedimento estético, e o resultado advindo fora do que o paciente esperava e da expectativa criada através das imagens promovidas, poderá dar causa aos pressupostos da responsabilidade civil (art. 186 e 924, do CC).

É fundamental que as demonstrações de imagens de antes e depois sejam o mais transparente possível, objetivando em primeiro plano a obtenção do consentimento explícito do paciente. Isso significa que o paciente deve ser informado de como as imagens serão coletadas, armazenadas, utilizadas na publicidade e compartilhadas em quais meios de comunicação, e o mesmo deve autorizar expressamente sua utilização para fins de publicidade e propaganda.

Ainda, ao utilizar essas imagens como meio de publicidade e propaganda, os(as) médicos(as) devem seguir rigorosamente as recomendações do CFM, com caráter educativo, “contendo indicações, evoluções satisfatórias, insatisfatórias e complicações decorrentes da intervenção”. Tais medidas viabilizarão que os pacientes possam tomar decisões motivadas e substancialmente informadas a fim de que suas expectativas sejam realistas;  assim o(a) médica poderá exercer sua liberdade por meio da utilização de seus bancos de imagens de maneira responsável, evitando exagero ou sensacionalismo, bem como direcionando uma promoção pautada na educação e na ética informação, contribuindo para a informação clara e adequada aos consumidores quantos aos serviços estéticos antes de sua contratação, evitando-se assim maiores desdobramentos na esfera civil. 

Ademais, recomenda-se a utilização de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE para cada cirurgia ou procedimento estritamente estéticos, pois além de garantir que o paciente esteja plenamente informado sobre os riscos, benefícios, alternativas e expectativas realistas relacionadas aos procedimentos em questão, também auxiliará na segurança jurídica do profissional, fornecendo uma evidência clara e documentada do consentimento informado do paciente quanto aos serviços contratos.

Portanto, é fundamental que o(a) profissional médico(a) compreenda que sua autonomia não significa liberdade absoluta, mas sim uma responsabilidade ampliada (DANTAS, 2020). Dessa forma, quanto menos restritivas forem as normas do CFM em relação à publicidade e propaganda médica, maior será a responsabilidade ética-profissional, administrativa e civil a que o médico estará sujeito. É importante rejeitar categoricamente a ideia de que a publicidade e propaganda médica se tornará "terra de ninguém" a partir da vigência da nova resolução, até porque a leitura desta resolução deve ser feita de forma sistemática (utilizando o diálogo entre as fontes com o Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Código de Ética Médica, entre outros) e, jamais isolada.

Referências bibliográficas 

COLTRI, Marcos Vinicius; DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. Comentários ao Código de Ética Médica. 3. ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivum, 2020. 

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.336/2023. Disponível aqui. Acesso em 23 jan. 2024. 

FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 14 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2017. 

KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 9 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2018. 

TARTUCE, Flávio. Assumpção Neves, Daniel Amorim Assumpção.  Manual de Direito do Consumidor: direito material e processual. Volume único. 10. ed. Rio de Janeiro: Editora Método, 2021.

__________

1 Art. 14. Fica permitido o uso da imagem de pacientes ou de bancos de imagens com finalidade educativa, voltado a: (...) b) demonstrações de antes e depois devem ser apresentadas em um conjunto de imagens contendo indicações, evoluções satisfatórias, insatisfatórias e complicações decorrentes da intervenção, sendo vedada a demonstração e ensino de técnicas que devem limitar-se ao ambiente médico;

2 [...] “cirurgia estética chamada cosmética (cosmetic surgery), que não visa nenhuma ação curativa, revelando-se quase sempre duvidosa e cercada de certa ambiguidade, impregnada de modismo e de efeito superficial”. FRANÇA, 2017, p. 336.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.