As técnicas de reprodução humana assistida, na atualidade, se consolidaram como importantes alternativas para a constituição de famílias com diferentes formatos, quais sejam as que mantém o vínculo biológico, se houver uso de gametas oriundos dos demandantes do projeto parental, ou as que não são concretizadas por tal vínculo, quando houver decisão por uso de gametas ou embriões doados por pessoas que não possuem a intenção de procriação.
É justamente na doação de gametas, realizada sob distintas circunstâncias, que está o cerne dessa reflexão. A doação de células procriativas é, sem nenhuma dúvida, alternativa essencial à constituição de projetos parentais que vão desde a opção pela monoparentalidade programada (procriação por pessoas sozinhas), passando pela reprodução por casais do mesmo sexo, e chegam aos casos de diagnósticos relacionados à infertilidade, originados do homem ou da mulher, ou, ainda, de ambos.
A primeira premissa jurídica que se deve atentar diante desse cenário é a ausência de legislação ordinária específica sobre reprodução humana no Brasil, ao contrário do que optou a maioria dos países europeus ocidentais por exemplo. Registre-se que o Código Civil apenas conferiu previsão à reprodução heteróloga (a constituída por doação de gametas) para estabelecer as regras de presunção de filiação, não apontando qualquer disciplina jurídica sobre as tantas questões que orbitam a sua realização. Cumpre-se, então, atentar para as consequências desse vácuo normativo ordinário: as constantes discussões que se originam da falta de disciplina legal especializada (e, portanto, com força normativa obrigatória) e da regulamentação deontológica pelo Conselho Federal de Medicina - CFM, que, por meio de suas câmaras técnicas, edita resoluções sobre temas de interesse dos seus profissionais.
Os últimos 15 anos culminaram em variadas e constantes resoluções do CFM sobre reprodução assistida, onde, em muitas delas, constaram (e constam) previsões que expõem tensões com o ordenamento jurídico como um todo, já que comandos deontológicos não podem restringir direitos e são estritamente destinados à classe dos seus profissionais.
A doação de gametas é recepcionada pelo Código Civil, que apenas preocupou-se em estabelecer regras para a presunção de paternidade decorrente. O uso de gametas doados foi regulamentado pela resolução CFM 2.320/221, que manteve inovação prevista pela resolução que a antecedeu, em 2021, qual seja a possibilidade de doação de gametas entre parentes, respeitadas as relações prévias de consanguinidade (irmão e irmã não poderão, por exemplo, gerar um embrião).
Ressalvamos, então, que a doação de gametas pode ocorrer entre parentes; na modalidade compartilhada (quando uma mulher, em tratamento, doa óvulos excedentes à outra, também em tratamento, que contribuirá financeiramente com os custos da doadora); entre amigos, que contou com o silêncio do comando deontológico, mas que também acontece em muitos contextos, e, por fim, na modalidade de doação anônima. Fincamos a reflexão na doação anônima, ou seja, aquela que acontece mediante o uso de sêmen e de óvulos originados por doadores e doadoras cadastrados em centros de reprodução humana assistida, que podem ser bancos de gametas, exclusivamente fornecedores de material germinativo, ou clínicas de reprodução assistida, quando detém, também, a função de coleta de sêmen e/ou óvulos para fins de doação.
Na doação anônima, a relação jurídica que se constitui envolve os demandantes da procriação (pacientes), a clínica de reprodução humana assistida e o banco de gametas, caso a clínica onde ocorrerá o procedimento não tenha seu próprio banco ou os pacientes queiram utilizar um outro em específico. Não há na legislação ordinária em vigência qualquer previsão sobre o procedimento do uso de banco de gametas (apartado ou pertencente à clínica de reprodução), tampouco a dimensão das obrigações e responsabilidades que podem envolver os sujeitos. O tema restou abordado pela Resolução de Direção Colegiada - RDC 771/22 da ANVISA e, em parte, pelo regramento deontológico CFM 2.320/22.
A RDC mencionada define como Centro de Reprodução Humana Assistida - CRHA o “estabelecimento de saúde especializado, de natureza pública ou privada, destinado a selecionar, coletar, processar, armazenar, descartar, transportar e disponibilizar células, tecidos germinativos e embriões humanos para uso terapêutico, com vistas a uso próprio ou doação”. Conclui-se, dentro dessa perspectiva, que a norma chama de “centro” a instituição que fará a coleta de material germinativo, incluindo bancos especializados e clínicas que tenham o serviço. A mesma RDC afirma que empresa importadora de células e tecidos germinativos é o “estabelecimento habilitado pela Anvisa e licenciado pela vigilância sanitária competente estadual, municipal ou do Distrito Federal, responsável pela importação de células germinativas, tecidos germinativos e embriões humanos de doadores destinados a CRHA para uso terapêutico”2. Para fins de doação e mediante autorização da Anvisa, as células também podem ser importadas pelos Centros de Reprodução Humana Assistida.
Em julho de 2023, a Anvisa concedeu autorização ao banco de sêmen Criobrasil Serviços Ltda, para desempenhar atividades essenciais de importação, transporte e distribuição de células germinativas, tecidos e embriões humanos no território brasileiro. A empresa apresentou documentos que demonstraram o cumprimento das disposições da RDC 771/22, devendo a autorização ser renovada a cada dois anos3.
O cerne da reflexão começa pela complexidade dos procedimentos que acoberta o uso de gametas doados. No Brasil, conforme as leis 9.434/96 e 11.105/05, pessoas não podem comercializar gametas e embriões, mas bancos e clínicas habilitadas o fazem quando demandados, pagando pelos custos da aquisição, que envolve a importação em significativos casos.
Sêmen e óvulo são células doadas que não estão submetidas ao manuseio por pessoas físicas, já que, no Brasil, para que a doação ocorra no contexto da procriação medicamente assistida, há regras sanitárias e de biossegurança indispensáveis ao procedimento. Pode-se, assim, afirmar que os destinatários dos gametas (pacientes ou demandantes) não possuem ingerência no processo de manipulação, manuseio e transportes das células, o que deve descartar sua possível responsabilidade por atos dessa natureza.
A resolução CFM 2.320/22 determina, em seu item 10, que “a responsabilidade pela seleção dos doadores é exclusiva dos usuários quando da utilização de banco de gametas ou embriões”4. Ao que parece, a intenção do comando deontológico foi afastar possíveis responsabilidades da clínica e do profissional assistente nos casos em que o paciente tenha optado por utilizar um banco de gametas não pertencente aos serviços prestados pela clínica.
Pois bem. Retomemos a regra de que pessoas físicas não podem manusear, transportar e atuar no processo de avaliação de gametas germinativos, logo, não podem ser responsabilizadas por quaisquer danos decorrentes de condutas em que não tenham concorrido para o resultado.
Na prática, o(s) paciente(s) que tem(têm) qualquer demanda por procedimento assistido de procriação busca, de início, uma clínica para consulta com médico especialista em reprodução, que considerará os fundamentos que justificam a procura (relacionados à infertilidade biológica ou às circunstâncias pessoais). A possibilidade de realizar um projeto parental com gametas doados é, na grande maioria das vezes, uma sugestão orientada pelo profissional especialista em reprodução da clínica que o paciente procurou. Assim, ao profissional assistente, cabe a sugestão pelo uso de gametas doados, bem como a orientação sobre o acesso ao material germinativo. Disso resulta, que os próprios profissionais especializados nas clínicas de reprodução conferem sugestões aos pacientes sobre os bancos que indicam ou já trabalham por conhecerem as regras. Na grande maioria dos casos, é a confiança na indicação do profissional médico que será adotada como critério pelo paciente na escolha do banco que fornecerá os gametas.
É certo que podem existir situações em que pacientes queiram escolher bancos de gametas não indicados pela clínica em que o tratamento será realizado. Disso decorrem algumas considerações. Ainda que a indicação não tenha sido feita pelo profissional que acompanha o paciente, a relação com o banco de gametas também envolverá a clínica onde o procedimento será realizado, ou seja, não é o paciente, pessoa física, que vai manusear, preparar e transportar o material germinativo para a clínica em que o tratamento será efetivado. Tendo em vista as normas de biossegurança e de natureza sanitária, assim deve mesmo ser feito.
Esse cenário nos remete à conclusão de que bancos de gametas e clínicas de reprodução (onde o procedimento será realizado) possuem responsabilidade no que concerne à coleta, manuseio, preparação, transporte e todas as condutas que envolvam a suas respectivas atuações em prol de que as células possam ser utilizadas para fins de procriação.
O uso de banco de gametas, indicado ou não pela clínica assistente, deve ser minuciosamente disciplinado no Termo de Consentimento Livre de Esclarecido - TCLE. O documento deve cumprir a sua real função, não apenas em prol de reduzir conflitos jurídicos futuros, mas como instrumento para concretizar a informação. O diálogo e a comunicação, bem como a clareza do conteúdo do TCLE, são fundamentais para que o paciente compreenda as regras que orientam o uso da doação anônima de gametas. Nesse diálogo, cabe ao profissional expor ao paciente as motivações que conduzem à indicação de determinados bancos de gametas, certamente, orientadas pela confiança em trabalhos previamente desenvolvidos e pelo conhecimento sobre o atendimento às regras sanitárias, tão importantes a esse tipo de relação. Uma das justificativas mais plausíveis é o alinhamento entre as tarefas e as responsabilidades que envolvem bancos e clínicas de reprodução, o que pode ensejar a construção de TCLE’s não conflitivos (o TCLE entre clínica e paciente e o TCLE entre banco de gametas e paciente).
Juridicamente, sabe-se que o conteúdo do TCLE pode ser afastado, quando evidenciado flagrante violação de direito dos sujeitos envolvidos ou quando a conduta não encontrar respaldo pelo Direito. Aqui, é importante considerar que, independentemente de ter existido indicação pela clínica, trata-se de duas relações jurídicas distintas, o que demanda a construção de dois termos de consentimento livre e esclarecido também diferentes.
Cada TCLE (o assinado na clínica e o assinado no banco) deve aportar a medida de atuação das partes envolvidas, explicando o que compete a cada uma, considerando, inclusive, os limites do conhecimento científico. As questões que envolvem a seleção do fenótipo do doador, por exemplo, precisam ser minuciosamente explicadas, já que, mesmo que a semelhança entre doadores e receptores seja a priori observada, conforme os critérios de ancestralidade, cor da pele, cabelo e olhos, traços e outros, se a genética é probabilidade, não há qualquer obrigação em se garantir a semelhança exata entre quem doa e quem tem a intenção de procriar.
Uma das questões mais conflitivas que envolve a doação anônima de gametas são as doenças detectáveis, por exames específicos, originadas dos doadores e que, a partir da genética, podem ser transmitidas à futura prole. Somente a comunicação dialógica e o TCLE podem revelar com clareza quais patologias são detectáveis por exames (do ponto de vista das limitações da Ciência) e quais exames serão feitos (considerando os que são obrigatórios pela norma, como, recentemente, o cariótipo, e os que englobam a prestação daquele serviço de fornecimento dos gametas).
A negligência informacional culmina na responsabilidade dos bancos e/ou das clínicas, na medida em que não tenham observado, como obrigação decorrente desse tipo de contrato, o protagonismo da informação. Somente de posse do conteúdo informativo adequado, pacientes terão autonomia para decidir usar gametas doados e escolher bancos e clínicas para concretizarem o almejado projeto parental.
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1 CFM. Resolução CFM n. 2.320/2022. Adota normas éticas para a utilização de técnicas de reprodução assistida. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2022/2320_
2022.pdf. Acesso em: 13 fev. 2024.
2 ANVISA. Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) n. 771. 22 de dezembro de 2022. Disponível em: http://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/5141698/RDC_771_2022_.pdf/816aa15e-ceba-4e12-b6669affe9d 66957 Acesso em: em: 14 fev 2024.
3 ANVISA. Anvisa habilita primeira empresa importadora de células germinativas e embriões no Brasil. Out. 2023. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202310/anvisa-habilita-primeira-empresa-importadora-de-celulas-germinativas-e-embrioes-no-brasil. Acesso em: 14 fev. 2024.
4 CFM. Resolução CFM n. 2.320/2022. Adota normas éticas para a utilização de técnicas de reprodução assistida. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2022/2320
_2022.pdf. Acesso em: 14 fev. 2024.