Em 15/12/2023 a comissão de responsabilidade civil, composta pelo sub-relator, Procurador de Justiça de Minas Gerais, Nelson Rosenvald, pela Ministra do STJ Isabel Gallotti e pela juíza do Tribunal de Justiça de Goiás Patrícia Carrijo, encaminha aos Relatores da Comissão de Reforma do Código Civil, o conjunto de sugestões referentes às alterações do Título IX do Código Civil de 2002.
Ao longo de três meses de trabalho, os integrantes da comissão se dedicaram a um constante intercâmbio de ideias, tendo por base propostas discutidas com experts na temática da responsabilidade civil - doutrinadores, professores e magistrados. Cada diálogo ou seminário serviu como reflexão e aprendizado. Jamais ostentamos certezas ou um desenho apriorístico do projeto. Pelo contrário, iniciamos apenas com pistas e, paulatinamente, esboçamos uma sistematização da responsabilidade civil, tendo em vista o estágio atual da sociedade brasileira e aquilo que se pretende para os próximos anos, consolidando avanços jurisprudenciais e doutrinários do direito brasileiro e das melhores contribuições do direito comparado.
A responsabilidade civil de 2023 se encontra em um momento muito distante do estado da arte dos anos setenta do século XX, época em que foi forjado o Código Civil. Não se trata apenas de um hiato de 50 anos, porém de meio século que transformou a vida humana e os seus costumes de modo mais significativo que os últimos 2.000 anos de civilização.
Como frisou Stefano Rodotá em um de seus últimos escritos, a responsabilidade civil atua como a campainha de um alarme. A final, ela exerce o importante papel de repositório de todas as disfuncionalidades de um certo ordenamento. O Código Civil de 2002 é a fotografia de uma responsabilidade civil exclusivamente atrelada às patologias da propriedade e do inadimplemento contratual. Contudo, hoje ela não apenas abraça múltiplas e complexas situações patrimoniais, recebendo também efeitos danosos da violação de direitos fundamentais e direitos da personalidade, da crise da parentalidade e conjugalidade e das recentes pressões oriundas das tecnologias digitais emergentes, cuja preocupação prioritária nos contextos europeu e norte-americano, volta-se às consequências lesivas do emprego das referidas tecnologias, em todos os níveis.
Ao mesmo tempo que a pressão sobre responsabilidade civil cresce exponencialmente, constata-se que os 27 artigos do Código Civil de 2022 (artigos 927 a 954) em muito se distanciam daquilo que um Código Civil requer para um nivelamento com os instrumentos europeus mais recentes e com o elogiado Código Civil da Argentina de 2015. Com efeito, outros sistemas jurídicos funcionam como espelhos – vendo-se os outros, percebe-se melhor o que somos.
Em acréscimo, a quase totalidade dos dispositivos do Código Reale projeta o conteúdo do Código Civil de 1916, apenas com pequenas alterações. Em cotejo com o seu antecessor, de relevante o CC/2002 tão somente inovou na cláusula geral do risco (parágrafo único do art. 927) e na redução equitativa da indenização (parágrafo único, art. 944). Acresça-se a isto que, diferentemente da fertilidade legislativa atuante sobre vários setores do direito civil nos últimos 20 anos, na temática da responsabilidade civil não houve sequer uma inovação legal. Em resumo, verifica-se um desajuste temporal de mais de 100 anos.
Um sintoma do descompasso entre a legislação e a realidade da responsabilidade civil é constatado nas salas de aula de todo o Brasil. Professores de responsabilidade civil não lecionam a matéria com base no Código Civil. Pelo contrário, seguem a doutrina e os tribunais, referenciando o Código Civil na maior parte das vezes com críticas sobre importantes lacunas e ausência de sistematicidade. Em verdade, um Código Civil que pretenda modernizar a responsabilidade civil não necessita de um exaurimento normativo, sendo suficiente que os dispositivos sirvam como ponto de partida, deferindo critérios objetivos e claros para o necessário caminhar da doutrina e aperfeiçoamento das decisões de juízes e tribunais.
Cada setor do Código Civil demanda um grau específico de reforma, maior ou menor, conforme as suas vicissitudes. Ao contrário do direito das obrigações, cujo traço é a permanência de normas técnicas e estáticas – com a necessidade de alterações minimalistas – a responsabilidade civil requer uma intervenção mais ampla, como condição necessária para que o Código Civil mantenha relevância normativa em nosso ordenamento.
Neste sentido, a sistematização da responsabilidade civil encontra origem em três justificativas.
Primeiro: É certo que de ponto de vista estilístico e linguístico, necessitamos de um Código Civil simples e compreensível a todos. Contudo, há uma particularidade na responsabilidade civil: o fato de ser um conjunto de normas precipuamente dirigida aos magistrados. A maior parte das demandas cíveis no Brasil - desde os juizados especiais até os tribunais – conecta-se ao tema da responsabilidade civil em sentido amplo. Se o que pretendemos é conceder segurança jurídica e mitigar a discricionariedade judicial, o primeiro passo consiste em oferecer critérios objetivos e claros para a contenção de ilícitos e reparação de danos.
Segundo: Sem negar a centralidade da Constituição Federal em nosso ordenamento jurídico, é imperioso resgatar o papel de coordenação exercitado pelo Código Civil, no diálogo com outros sistemas de direito privado, como, ilustrativamente, o CDC, CLT, LGPD e um conjunto de leis que encontram referência nas cláusulas gerais e preceitos alocados ao longo dos livros do Código Reale. As leis mais recentes trazem aspectos que não são abordados no Código Civil, sobremaneira no que concerne ao direito de danos e a multifuncionalidade da responsabilidade civil. A reforma do Código Civil é um momento apropriado para consolidar de forma madura e criteriosa as transformações da responsabilidade civil e preservar a sua centralidade no direito privado. Inclusive, esse é o propósito da reforma da responsabilidade civil no Código Civil da França.
Terceiro: Os que defendem uma reforma pontual e minimalista da responsabilidade civil argumentam que a jurisprudência caminhou bastante, atualizando as defasagens normativas e consolidando interpretações. Contudo, lembramos da primazia normativa dos sistemas das jurisdições do civil law. Não contamos com uma tradição de uma estabilidade de um sistema de precedentes, ao sabor do “chain novel” de Dworkin, no qual cada decisão remete a um diálogo com as que lhe precederam no trato de “hard cases”, em um paulatino aperfeiçoamento sistêmico. Diversamente, a nossa jurisprudência, por mais que bem aplicada, é sempre um retrato pendular de um dado normativo situado no tempo. Nada melhor para os agentes econômicos do que um conjunto de normas in abstrato que sinalize as regras do jogo, com firmes parâmetros de julgamento.
Diante de tais considerações, sugere-se uma reforma da responsabilidade civil concentrada em quatro grandes eixos, aqui brevemente apresentados:
Primeiro eixo: organização dos nexos de imputação da responsabilidade civil, concedendo-se racionalidade e coerência aos fatores de atribuição da obrigação de indenizar: ilícito, risco da atividade e responsabilidade pelo fato de terceiro ou da coisa. Some-se a isso a expressa inserção conceitual dos pressupostos da responsabilidade, tais como culpa e nexo causal.
Segundo eixo: Organização do sistema de danos, tendo em vista a necessidade de contenção normativa da proliferação de várias etiquetas de lesões a interesses merecedores de tutela. Sugere-se um aperfeiçoamento do trato do dano patrimonial, como também a expressa inclusão de critérios de aferição da perda de uma chance. Seguindo recentes diretivas europeias, investe-se ainda no private enforcement, de forma a deferir aos demandantes maior autonomia para eleger entre a reparação de danos, a restituição de ganhos indevidos ou o valor que seria pago pela obtenção do consentimento. Relativamente à violação a interesses existenciais, formata-se o gênero do dano extrapatrimonial, como uma espécie de guarda-chuvas apto a conceder ampla tutela aos bens da personalidade. Por fim, aperfeiçoa-se o critério bifásico de indenização de danos extrapatrimoniais - desenvolvido no STJ pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino -, dotando-o de base normativa.
Terceiro eixo: Mantém-se a primazia da função reparatória de danos da responsabilidade civil e do princípio da reparação integral. Todavia, na sociedade contemporânea – plural e complexa - danos não mais ostentam um perfil meramente individual e patrimonial, porém, manifestam-se como metaindividuais, extrapatrimoniais e por vezes anônimos e irreparáveis. Para evitar que prevaleça a aplicação jurisprudencial desordenada de respostas aos novos desafios que não são solucionados pela função compensatória, consideramos a necessidade de adequar a responsabilidade civil aos mais avançados ordenamentos, para que seja compreendida como um sistema de gestão de riscos e de restauração de um equilíbrio injustamente rompido. Assim, para além de uma contenção de danos, há a necessidade de uma contenção de comportamentos antijurídicos, mediante a introdução das funções preventiva e punitiva, com seguros parâmetros de aplicação para a moderação de poderes judiciais, contrabalançados por uma função promocional aos agentes econômicos que investirem em governança e accountability.
Quarto eixo: atualização da parte especial da responsabilidade civil, com hipóteses de incidência de danos que demandam especificidades, tais como aqueles relacionados à responsabilidade civil do Estado, pessoas jurídicas, médicos, proprietários e na fase pré-contratual. Simultaneamente, foram suprimidos dispositivos anacrônicos, com origem no Código Beviláqua, voltados a responsabilidade civil por esbulho, violação à honra e a liberdade pessoal, bens jurídicos já tutelados pelas regras gerais da responsabilidade civil.
As justificações colacionadas a cada dispositivo inserido no renovado Título IX minudenciam essa parte introdutória, em seus quatro grandes eixos. Por se tratar de uma reforma legislativa e não de um novo Código Civil, corroboramos as diretrizes da operabilidade, socialidade e eticidade, tão caras a Miguel Reale. Temos em mente que um sistema equilibrado de responsabilidade civil requer uma convergência entre a proteção da economia de mercado e a mais ampla tutela das vítimas de danos e da coletividade perante toda a sorte de ilícitos. Outrossim, reputamos essencial a harmonização entre as cláusulas gerais e critérios decisórios objetivos, parametrizando a atuação de juízes e tribunais.