Migalhas de Responsabilidade Civil

Desistência da adoção e devolução de crianças adotadas – uma reflexão sobre suas consequências à luz de decisões do STJ

As professoras fazem uma breve análise sobre eventuais danos decorrentes de tais atos, à luz de decisões do STJ.

19/12/2023

Em muitos aspectos, a temática do Direito de Família interliga-se com a da Responsabilidade Civil. O que se busca neste ensaio é analisar o tema da adoção, em especial a desistência ou devolução da criança/adolescente, se ela gera ou não algum tipo de dano a quem perdeu a chance de ser adotado.

O tema foi escolhido porque, além de uma necessária reflexão, no dia 21 de novembro de 2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que, caso a desistência da adoção ocorra na fase do estágio de convivência, mesmo após significativo lapso temporal e com as ressalvas do caso apresentado, não configuraria abuso de direito.

Assim, analisaremos aqui alguns aspectos a respeito da adoção, como a proteção da criança e do adolescente, o princípio da paternidade responsável e as recentes alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para então adentrarmos na questão da responsabilidade civil pela desistência da adoção ou devolução do adotado.

A Constituição Federal traz uma tríplice proteção à criança e ao adolescente no Brasil, cabendo à família, sociedade e Estado zelarem por direitos básicos para seu desenvolvimento. Esses cuidados especiais decorrem do princípio do melhor interesse que a criança e o adolescente possuem, assegurados tanto em âmbito nacional como internacional.

O referido princípio está previsto no artigo inaugural do ECA que, em suas disposições preliminares, afirma que o Estatuto dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. No mesmo sentido, o Código Civil trata, em seu Capítulo XI sobre “a proteção da pessoa dos filhos” – referindo-se à guarda nos Arts. 1583 – 1590. 

Em âmbito internacional, esta proteção teve início em 1924 com a Declaração de Genebra (“necessidade de se dar proteção especial à criança”); em 1948 com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que prevê o direito a cuidados e assistência especiais às crianças; em 1959, com a Declaração Universal dos Direitos da Criança – determinando os “melhores interesses da criança”; em 1989 com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU).

Com essa evolução, criança e adolescente passaram a ser considerados titulares de direitos, considerados em suas peculiaridades, tendo proteção integral e o princípio do melhor interesse passou a ser vetor em diversas decisões do tema.

Ademais, cabe destacar outros princípios, também vetores de interpretação: o da paternidade responsável e o do livre planejamento familiar, previstos no Art. 226, § 7 º. da Constituição Federal e Art. 1565, § 2º do Código Civil.

Verifica-se que o Código Civil atual deu liberdade às famílias para tomarem decisões em seus atos de gestão, ao buscarem a comunhão plena de vida (Art. 1511) e o da mínima intervenção (Art. 1513).

Porém, tal liberdade foi dada para ser usada de modo responsável, existindo mecanismos a serem acionados quando a paternidade responsável não for respeitada, ou seja, temos direito à liberdade de escolha nas relações familiares, porém, com responsabilidades e consequências dessas decisões tomadas.

Sobre a adoção, Rubens Limongi França a conceitua como “(...) um instituto de proteção à personalidade, em que essa proteção se leva a efeito através do estabelecimento, entre duas pessoas – o adotante e o protegido adotado – de um vínculo civil de paternidade (ou maternidade) e de filiação.”

É o ato pelo qual se estabelece o parentesco civil (Art. 1593, CC), trazendo alguém para sua família e estabelecendo vínculos de filiação. Está regulamentada no ECA e deve ser deferida quando apresentar reais vantagens ao adotado e fundar-se em motivos legítimos (Art. 43, ECA).

Para que ela seja efetivada, a criança ou o adolescente devem ser destituídos do poder familiar (salvo situações que envolvam multiparentalidade) e estar aptas a serem recebidas por uma nova família, via adoção. Por outro lado, a família também precisa estar habilitada para que possa recebê-lo.

O ponto central deste trabalho é saber se, caso a família não mais aceite este pretenso filho ou resolva devolvê-lo, quais seriam as consequências e se existiria algum tipo de dano.

Inicialmente cabe destacar a diferença entre desistência da adoção e devolução do adotado. A desistência ocorre durante o período do processo de adoção, enquanto a devolução ocorre após sua finalização (seria um novo ato de destituição de poder familiar).  Em regra, a devolução não poderia ocorrer, já que o Art. 39, § 1º. do ECA menciona que a adoção é medida irrevogável.

No ano de 2017, no entanto, o ECA foi alterado e trouxe o Art. 197-E que trata sobre a habilitação dos pretendentes. Em seu § 5º, dispõe que: “A desistência do pretendente em relação à guarda para fins de adoção ou a devolução da criança ou do adolescente depois do trânsito em julgado da sentença de adoção importará na sua exclusão dos cadastros de adoção e na vedação de renovação da habilitação, salvo decisão judicial fundamentada, sem prejuízo das demais sanções previstas na legislação vigente.”

Ou seja, o dispositivo traz uma consequência para os pretendentes/pais no que se refere ao procedimento da adoção, de excluí-los do procedimento e vedá-los de nova habilitação. Porém, a reforma não trouxe nenhuma consequência com relação às crianças/adolescentes! Pecou em não avançar, talvez a parte mais importante da reforma.

Atualmente, o período de convivência é de no máximo 90 dias (Art. 46, ECA). Se nesse período ocorrer a desistência, entendeu o STJ que este ato, por si só, não configura ato ilícito e que, portanto, não cabe nenhuma sanção para os pretendentes habilitados (STJ, Informativo 795).

O caso analisado referia-se a uma desistência de adoção na fase do estágio de convivência, após significativo lapso temporal, porém, quando não havia ainda a previsão de 90 dias (que veio na reforma de 2017). Afirmou o STJ que a desistência da adoção nesse período do estágio de convivência não configura ato ilícito e não impõe sanção aos pretendentes.

Analisando o caso, a corte entendeu que a criança sofria de uma doença grave incurável, os pretensos pais eram pessoas extremamente simples, sem condições financeiras, moravam longe de centros urbanos e a mãe biológica contestava o processo de adoção e pretendia ter seu filho de volta ou que lhe fosse concedido direito de visita. Diante do contexto trazido, entendeu-se pela justificativa da desistência e a não configuração do abuso de direito, considerando que a criança havia sido bem tratada durante o período do estágio de convivência, não havendo nada que desabonasse a conduta dos pretendentes.

É importante ressaltar a finalidade do estágio de convivência, qual seja aferir se os pretendentes e o pretenso filho se adaptam para então estabelecer o parentesco entre eles. É justamente para isso, para se conhecerem. Por vezes, essa adaptação não ocorre. Por isso a adoção não deve se concretizar e, como consequência, isso não acarreta, por si só, um ato ilícito, conforme destacou a decisão do STJ.

Em outra decisão (REsp n. 1689728/MS) julgada em 04/05/2021, o STJ entendeu que, devido às peculiaridades do caso (pais idosos de 55 e 85 anos e criança à época com 9 anos), os pais adotivos deveriam ter a destituição do poder familiar. Aqui foi um caso de insucesso da adoção em virtude da diferença geracional entre pais e filho. Houve uma falha nas instituições de controle que não se deram conta da peculiaridade do caso. Tal fato não eximiu a responsabilidade civil dos pais pelos danos efetivamente causados à criança ao insistir em devolvê-la ao acolhimento.  E, mesmo com a destituição do poder familiar e maioridade civil do filho, não isentou os pais do pagamento de pensão alimentícia ao filho devolvido.

Em síntese, a recente decisão do STJ nos mostra que a desistência da adoção em fase de estágio de convivência não configura ato ilícito e não cabe indenização porque a finalidade do estágio de convivência é aferir o entrosamento e adaptação entre as partes, no período de 90 dias.

Contudo, quando o ato ocorre após a sentença de adoção, dá-se a devolução da criança adotada, que pode ocorrer por diversos motivos – falha dos órgãos envolvidos ou por conta dos pais e filhos que não tenham se adaptado à nova família. O ato de receber um filho em sua família e depois “desistir” dele gera dano extrapatrimonial ao filho que, novamente, vai ter a destituição do poder familiar e, caso não tenha alcançado a maioridade, terá que ser acolhido institucionalmente. Cabe, ainda, o dever de prestar alimentos ao filho devolvido.

Deste modo, o ordenamento jurídico, ao conferir liberdade e mínima intervenção nas relações familiares, traz a responsabilidade de estarmos atentos e protegermos os vulneráveis, destacando-se, aqui, a criança ou o adolescente que deixa de ser adotado ou que é devolvido. Como consequência da inobservância desses deveres, resta o cabimento do dever de indenizar e pagar alimentos ao filho devolvido após adoção.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: Constituição (planalto.gov.br)

BRASIL. Lei 8069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível em: L8069 (planalto.gov.br)

SILVA, Fernando Moreira Freitas da; MALINOWSKI, Carlos Eduardo. A responsabilidade civil pela devolução do filho adotivo. In: SENA, Michel Canuto de. Responsabilidade civil: aspectos gerais e temas contemporâneos. Campo Grande: Contemplar: 2020. p. 265-276.

STJ. Informativo 795 de 21 de novembro de 2023. Disponível em: STJ - Informativo de Jurisprudência.

STJ. REsp n. 1698728/MS, julgado em 04/05/2021. Disponível em: STJ - Jurisprudência do STJ.

PAIANO, Daniela Braga. A família atual e as espécies de filiação: da possibilidade jurídica a multiparentalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

PAIANO, Daniela Braga; PAVIANI, Gabriela Amorin; Pavão, Juliana Carvalho. Estatuto da Criança e do Adolescente: uma homenagem aos seus 30 anos. Londrina: Thoth, 2021.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.