Migalhas de Responsabilidade Civil

Responsabilidade civil dos filhos pelo abandono dos pais idosos: Breve análise

Pelo texto constitucional antes transcrito, constata-se que nem pais nem filhos têm o dever de amar. Ambos têm, por lei, o dever de cuidar, o que é bem diferente.

7/12/2023

Dispõe o art. 229 da Constituição da República de 1988, que “pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”

Crianças e adolescentes de um lado e, pessoas idosas de outro, representam, na sociedade, os mais vulneráveis. Os dois primeiros, porque ainda estão crescendo física, psíquica e emocionalmente; os últimos, porque já viveram e se encontram muitas vezes fragilizados em razão das comorbidades que insistem em aparecer, prejudicando o autocuidado, bem como daquele que se encontra em situação de carência financeira.

Pelo texto constitucional antes transcrito, constata-se que nem pais nem filhos têm o dever de amar. Ambos têm, por lei, o dever de cuidar, o que é bem diferente. O fato é que o próprio STJ já decidiu nesse sentido, ao julgar em 24 de abril de 2012, o  REsp 1.159.242-SP,  de relatoria da Ministra Nancy Andrighi. Nesta decisão ela foi acompanhada pelos Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino, e Ricardo Villas Bôas Cueva, tendo sido voto vencido o Ministro Massami Uyeda. Consta, aliás, do Informativo do STJ:

(...) O cuidado, vislumbrado em suas diversas manifestações psicológicas, é um fator indispensável à criação e à formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica, capaz de conviver em sociedade, respeitando seus limites, buscando seus direitos, exercendo plenamente sua cidadania. A Min. Relatora salientou que, na hipótese, não se discute o amar - que é uma faculdade - mas sim a imposição biológica e constitucional de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos. (...)Ressaltou que os sentimentos de mágoa e tristeza causados pela negligência paterna e o tratamento como filha de segunda classe, que a recorrida levará ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurgem das omissões do pai (recorrente) no exercício de seu dever de cuidado em relação à filha e também de suas ações que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação. (Grifos Nossos)1

Diferentemente do que muitos pensam, portanto, nada tem a ver com o afeto que se esperaria que um pai teria por um filho, o fato de ele ser obrigado a dele cuidar. São duas coisas que deveriam andar lado a lado, mas que se sabe não acontece desse jeito.

Transportando-se a decisão do STJ para o campo da pessoa idosa, tem-se que filhos que abandonam pais idosos também devem ser responsabilizados pela prática de ato ilícito, conforme previsto nos arts. 1862 e 9273 da lei civil.4

É, pois, na esteira dessa responsabilidade prevista no Código Civil, que está sob análise no Congresso, o PL 3.145/2015. Por ele o legislador propõe alterar os arts. 1.962 e 1.963 do Código Civil, acrescentando em cada um deles um inciso V, pelo qual o ascendente poderá deserdar descendente e este poderá deserdar aquele, se houver abandono de um deles em “hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência e congêneres”. Na justificativa do citado Projeto, lê-se:

A presente proposta, portanto, pretende alterar o Código Civil para permitir a deserdação dos filhos quando eles cometerem abandono afetivo e moral em relação a seus pais. Não se usa o termo idoso, no projeto, apenas para conferir maior amplitude e generalidade ao dispositivo, embora se saiba que a larga maioria dos casos de abandono ocorre quando o pai já é idoso.5

Além desse Projeto, há um outro tramitando no Congresso, o de n. 4.229/20196, que dispõe sobre o direito da pessoa idosa à convivência familiar e comunitária, além de prever sanções para o abandono afetivo da pessoa idosa. Se aprovado, a lei 10.741/2003 - Estatuto da Pessoa Idosa - sofrerá mudança que será mais do que bem-vinda. Isto porque será possível responsabilizar o filho que abandona seus pais na velhice, na doença e/ou na carência. Muitos abusos que são vivenciados cotidianamente por todos os que militam na área do direito da pessoa idosa, poderão ser evitados.

Uma das introduções previstas, corresponderá à inserção do art. 42-B:

Aos filhos incumbe o dever de cuidado, amparo e proteção da pessoa idosa.

Observe-se que o teor do texto antes transcrito se encontra em inteira conformidade com o disposto no art. 229 da Constituição da República, citado logo no início deste escrito, além de ser consoante à decisão do STJ sobre o dever de cuidado, não de amor.

Mas a proposta legislativa formulada pelo Senador Lasier Martins prevê, ainda, um parágrafo único ao planejado art. 42-B:  

A violação do dever previsto no caput deste artigo constitui ato ilícito e sujeita o infrator à responsabilização civil por abandono afetivo, nos termos do art. 927 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).7

Observa-se, aqui, um eventual futuro fundamento legal para que pais idosos possam propor ação por dano moral em face dos filhos que os abandonam sem motivo. Afinal, o abandono, seja de filho pelo pai durante a menoridade, ou deste por aquele, a partir dos sessenta (60) anos corresponde a um dos tipos de violência contra a pessoa idosa. Esta violência pode causar depressão, isolamento social, enfim, danos psicológicos imensuráveis, os quais poderão levar a pessoa já vulnerável à morte. A saúde, muitas vezes já fragilizada pela idade, poderá sofrer um grande revés em razão do abandono afetivo. E, de acordo com a Organização Mundial da Saúde - OMS -, saúde é vista por uma perspectiva holística, abarcando tanto o físico quanto o mental e o social.  Trata-se de garantir à pessoa idosa um envelhecimento saudável.8 A pessoa tem de ser vista como um todo.

Interessante ainda mencionar, que o Estatuto da Pessoa Idosa, principalmente tendo em vista o princípio da dignidade humana, que rege todo ordenamento jurídico brasileiro, estabelece em seu artigo 3º., ser “obrigação da família, da comunidade e da sociedade e do Poder Público, assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde (...), à liberdade, à dignidade, ao respeito à convivência familiar e comunitária”. Sendo assim, não é de se esperar que filhos abandonem seus pais idosos material ou afetivamente.

Existe algo ínsito no ordenamento jurídico pátrio, que não tem sido muito explorado, mas que deveria, que é o Direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Quando ocorre o abandono afetivo reverso, isto é, o abandono da pessoa idosa pelo seu filho, ela deixa de ter garantido esse seu direito, uma vez que sua proteção como pessoa resta fragilizada. Não é à toa que Rodrigo Pereira Moreira, em brilhante monografia, sobre esse tema afirma:

O desenvolvimento da personalidade garante a autonomia para a determinação de uma personalidade livre, sem nenhum tipo de ingerência injustificada, perfazendo um direito à individualidade (...).9

O livre desenvolvimento da personalidade da pessoa idosa, neste sentido, só será possível se minorada sua vulnerabilidade. Para isto, entre outras coisas, imprescindível que ela não seja abandonada, especialmente por seus filhos.

Fato é que o Judiciário brasileiro tem garantido em vários casos o direito da pessoa idosa à reparação pelo abandono afetivo, por parte de seus descendentes. Mas, mais do que isso, essencial que os projetos de lei aqui referidos sejam aprovados pelo Congresso e, sancionados, entrando em vigor, imediatamente. Só assim, com leis protetivas em relação à pessoa idosa, poder-se-á buscar sua integral proteção.

__________

1 Disponível aqui. Acesso em: 27 nov. 2023.

2 “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

3 “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”

4 Além disso, faz-se necessário trazer à baila que o Estatuto da Pessoa Idosa –  lei 10.741/2003, em seu art. 98, já disciplina sobre o crime de abandono do idoso, mas desta feita, especificamente em “hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres, ou não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado.” Este não é o ponto central do presente texto, por isso não se faz menção ao dispositivo ora citado.

5 Disponível aqui. Acesso em: 26 nov. 2023.

6 Disponível aqui. Acesso em: 28 nov. 2023.

7 Na justificativa do Projeto lê-se: “A alusão ao art. 927 do Código Civil tem por finalidade permitir que juízes apreciem, no caso concreto, os pressupostos que configuram a responsabilidade civil subjetiva, a saber, o descumprimento do dever de cuidado, o dano gerado no idoso (sentimento de isolamento, de solidão, quadros depressivos, entre outros), o nexo de causalidade e a existência de excludentes de ilicitude.” Disponível aqui. Acesso em: 28 nov. 2023. 

8 Disponível aqui. Acesso em: 29 nov. 2023.

9 MOREIRA, Rodrigo Pereira. Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade: Proteção e Promoção da Pessoa Humana. Curitiba: Juruá, 2016, p. 107.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.