Migalhas de Responsabilidade Civil

A responsabilidade civil das lawtechs por apropriação das petições jurídicas*

A verdade é que, ao comercializar peças processuais editáveis de terceiros, a lawtech promove verdadeira captura da atividade intelectual do profissional da advocacia, sistematiza tal entendimento e depois cobra para que outros juristas tenham acesso a tais documentos.

5/10/2023

Recentemente eu identifiquei mais de -incríveis - trezentos acessos feitos, em sua maioria, por uma advogada a um processo judicial em que eu e minha sócia defendemos os interesses de 3 dos 4 médicos acusados por erro profissional. Intrigado da razão de tantos acessos, pesquisei no Google quem seria a advogada tão interessada nesta causa e fui surpreendido com seguinte autodescrição da advogada consultora: “atuo na maior lawtech do Brasil, vivendo a fronteira do Direito com a Tecnologia, na missão de conectar todos os cidadãos à justiça”.

Posteriormente, percebi que as petições relativas a este processo eram disponibilizadas por esta lawtech de forma onerosa, mediante a assinatura de planos. E mais, que os assinantes conseguem obter acesso não apenas à petição original, mas também à petição editável em word com a supressão dos nomes das partes para -  de acordo com a lawtech - promover o reforço argumentativo de suas próprias peças.

Ou seja, advogados não integrantes do processo conseguem ter acesso às petições feitas de outros profissionais, remunerando a lawtech, e não há qualquer discussão acerca de eventual violação de direitos dos profissionais da advocacia responsáveis pela construção das peças.

Como forma de afastar uma suposta responsabilidade na prática de auferir lucros com o trabalho intelectual de terceiros, a referida lawtech cita, em seu próprio site, a decisão do STJ de 2002 que estabelece que:

Por seu caráter utilitário, a petição inicial somente estará protegida pela legislação sobre direito autoral se constituir criação literária, fato negado pelas instâncias ordinárias. Súmula 7/STJ. Recurso não conhecido. (REsp 351.358/DF, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 04/06/2002, DJ 16/09/2002, p. 192)

O presente autor sabe que este é o posicionamento do STJ, porém há uma diferença significativa entre o julgado de 2002, quando não havia um sistema de informatização consolidado, e caso aqui discutido de apropriação das petições em escala e disponibilizada mediante remuneração para um terceiro. O julgado de 2002 considerava um contexto fático, histórico, tecnológico e finalístico distinto à realidade atual, visto que antes a busca era utilitarista.

Ocorre que tal critério, sob a perspectiva da lawtech, é inexistente, posto que estas empresas usam as petições com o objetivo precípuo de aferir lucro. Não há, neste uso,  solidariedade ou atuação empática; há objetivo de enriquecimento, em larga escala.

A verdade é que, ao comercializar peças processuais editáveis de terceiros, a lawtech promove verdadeira captura da atividade intelectual do profissional da advocacia, sistematiza tal entendimento e depois cobra para que outros juristas tenham acesso a tais documentos.

Ressalte-se que as petições não estão excluídas da proteção jurídica ao direito autoral. O que houve, em dado momento histórico, foi a exclusão judicial desta proteção em análises casuísticas totalmente diferentes da situação em apreço. É importante, inclusive, notar que a própria reflexão sobre a natureza jurídica da petição judicial e a necessidade de proteção tem evoluído, conforme se observa de decisão da OAB/SP:

TRABALHOS FORENSES - CÓPIA DE PETIÇÕES SEM AUTORIZAÇÃO - ANÁLISE EM TESE - INFRAÇÃO ÉTICA

Advogado que copia petição de outrem, ipsis literis, sem indicação da fonte e sem autorização, ainda que tácita ou decorrente de comportamentos concludentes, comete a infração ética prevista no art. 34, V, do CED e afronta princípios imemoriais do direito e da moral, quais sejam: honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuere. A reprodução parcial, se desbordar os limites análogos aos do direito de citação, também pode, em tese, ensejar o cometimento de infração disciplinar. Precedentes da Primeira Turma: E-2.391/01, E-3.075/04 e E-3.137/2005.
Proc. E-4.558/2015 - v.u., em 17/09/2015, do parecer e ementa do Rel. Dr. FÁBIO DE SOUZA RAMACCIOTTI - Rev. Dr. GUILHERME FLORINDO FIGUEIREDO - Presidente em exercício Dr. CLÁUDIO FELIPPE ZALAF

Se, antes da virtualização dos processos judiciais, um jurista em consultar o processos patrocinados por outros advogados tinha se deslocar ao fórum, consultar cada uma das varas e fazer um trabalho braçal - uma vez que não desejava fazer o intelectual -, , agora, esta virtualização – tão benéficas às partes, aos profissionais da advocacia, aos membro do Ministério Público, aos serventuários e Magistrados - promove o favorecimento da indolência: todos estão a um click da petição alheia. 

Neste contexto, o trabalho intelectual é do profissional da advocacia probo, mas os ganhos são capturados pelas lawtech. Uma socialização às avessas, afinal, sob a pretensa alegação de fomentar e dar robustez às petições elaboradas por seus clientes, as lawtechs disponibilizam de forma onerosa as petições editáveis elaboradas por terceiros.

Ora, se as petições são disponibilizadas de forma editável, então não há uma função utilitária, visto que não se propõe a reforçar argumentos ou de consultar a argumentação desenvolvida pelo jurista expropriado. Em verdade, esta disponibilização facilita e permite  que uma peça jurídica - que, por vezes, representa um trabalho intelectual árduo, precedido de horas de estudo e pesquisas - seja simplesmente copiada por um terceiro. E mais, essa facilitação e permissão são feitas por uma lawtech que nada contribuiu para o desenvolvimento da tese e que, ao monetizar em cima do trabalho intelectual alheio, em nada contribui para o exercício ético da advocacia.

É importante evidenciar, ainda, que o caso aqui discutido é distinto dos inúmeros bancos de petições disponibilizados gratuitamente por advogados ou mediante remuneração dos próprios autores das peças: enquanto neste o próprio autor da peça decide autonomamente vender seu trabalho intelectual, naquele, um terceiro se apropria do trabalho alheio e aufere ganhos com ele. Exemplificativamente, aceitar esta prática das lawtechs seria a mesma coisa que aceitar que um terceiro poderia “comprar” um banco de petições e depois revende-las a preço módico, tolhendo o próprio autor da peça de ser remunerado por ela.

Diante disso, há a necessidade de repensar a natureza jurídica da petição jurídica, notadamente, para proteger o profissional da advocacia dos interesses meramente financistas das lawtechs.

Está-se, portanto, diante da flagrante vulnerabilidade imposta pela tecnologia. E, neste contexto, é imperioso que se reconheça a necessidade de remuneração do produto do trabalho/estudo do profissional da advocacia pois, a despeito da advocacia não ser considerada atividade mercantil, os honorários possuem natureza alimentar.

Saliente-se, ademais, que o trabalho do profissional da advocacia não pode ser considerado uma mera junção de ideias ou um conjunto de frases soltas. O próprio estatuto da OAB estabelece que:

Art.  3º-A.  Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei.

Parágrafo único. Considera-se notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.

Ou seja, de acordo com a norma deontológica da advocacia, o trabalho do advogado é técnico e singular, baseado em experiências, estudos, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica e outros requisitos relacionados. Por detrás de todas estas variáveis está o custo financeiro e o tempo de trabalho/vida, fatos ignorados quando uma lawtech simplesmente se apropria e cobra pelo acesso às referidas petições editáveis.

Curioso notar que, recentemente, o STJ firmou posicionamento acerca da ilicitude da prática do clipping por desestimular a aquisição dos veículos de comunicação tradicionais (Informativo STJ nº 785, REsp 2.008.122-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, por maioria, julgado em 22/8/2023, DJe 28/8/2023). Analogamente, é possível estender tal entendimento para petições situação aqui analisada, pois a venda – por lawtechs -  de petições editáveis capturadas desestimula a contratação dos reais autores das obras; afinal, estar-se-ia diante de uma atuação parasitária dos usuários das lawtechs que oferecem este serviço pois estes, assim como os consumidores de clippings, objetivam receber um benefício em face do desestímulo do trabalho de outrem.

De certa forma, tem-se, aqui, um comportamento típico de um free-rider, ou seja, um caroneiro que obtém ganhos não proporcionais a contribuição formalizada pelo efetivo autor da obra; pois,ois, em resumo, um jurista pode estabelecer que o valor da sua petição é de R$5.000,00 (cinco mil reais), enquanto o caroneiro pagará risíveis R$69,90 para um terceiro e obterá um benefício econômico desproporcional, antiético e imoral.

Verifica-se, assim, que a aceitação de tal prática significaria aceitar que a proteção jurídica ao trabalho do advogado – profissional cuja função é, por expressa previsão constitucional,  indispensável à administração da justiça –, está condicionada à submissão destes profissionais ao arbítrio de empresas que se escondem atrás do mote da inovação para perpetuar uma prática milenar do capitalismo selvagem.

Em conclusão: não se pretende, aqui, limitar a discussão jurídica ou defender a vedação de que advogados consultem petições de outros profissionais da advocacia. O que se pretende é o reconhecimento de que os contornos específicos trazidos pela exposição concatenada de fatos, doutrina, jurisprudência e do próprio uso da linguagem se traduzem como manifestação autoral cuja apropriação e venda por terceiros se mostra ilícita e caracterizam um enriquecimento sem causa.

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*Agradeço ao professor Filipe Medon por ter compartilhado algumas de suas reflexões sobre o tema e contribuído, a partir dos debates, do desenvolvimento das ideias trazidas no presente texto.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.