Resumo: Discute-se o uso inovador da biometria facial em eventos esportivos, com foco nas recentes implementações exigidas pela Lei Geral do Esporte (lei 14.597/2023). Explora-se como a substituição de métodos tradicionais de ingresso por sistemas de reconhecimento facial tem impactado a eficiência e segurança dos eventos, em cotejo com as exigências da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lei 13.709/2018) para o tratamento de dados pessoais sensíveis e quanto aos regramentos de responsabilidade civil definidos. No mais, o artigo aborda as preocupações éticas relacionadas à privacidade e ao uso indevido de dados biométricos.
A crescente integração de tecnologias emergentes de reconhecimento facial em diferentes setores tem estimulado discussões a respeito de seus benefícios e dilemas éticos1. No contexto dos eventos esportivos, a adoção da biometria facial como meio de acesso a estádios tem demonstrado vantagens significativas, incluindo agilização do processo de entrada e combate ao cambismo. No entanto, essa mudança não vem sem questionamentos sobre a proteção de dados pessoais e a utilização responsável de dados biométricos2.
Recentemente promulgada, a lei 14.597, de 14 de junho de 2023 (Lei Geral do Esporte – LGE), visa aprimorar e regular diversos aspectos relacionados à organização e administração de eventos esportivos. Um dos pontos tratados na lei diz respeito à obrigatoriedade de implementação de sistemas de controle e fiscalização do acesso do público a arenas esportivas com capacidade para mais de 20.000 pessoas. Tal monitoramento deve incluir o uso de tecnologias de imagens para a supervisão das catracas, bem como a adoção de identificação biométrica dos espectadores por técnica de reconhecimento facial (art. 148). Ademais, o texto também prevê a obrigatoriedade da implementação de centrais técnicas de informações com a infraestrutura necessária para viabilizar a supervisão por imagem do público presente e a realização do cadastramento biométrico dos espectadores.
Sabe-se que dados biométricos são considerados dados pessoais sensíveis3 pelo artigo 5º, inciso II, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (lei 13.709/2018)4, de modo que toda operação de tratamento (que envolve, por exemplo, a coleta, o processamento e o armazenamento) deve se embasar em alguma das hipóteses (“bases legais”) do artigo 11 da lei, com a proteção do livre desenvolvimento da personalidade e do princípio da não discriminação, pois, “além de se realizar uma proteção mais ampla dos dados sensíveis, tal proteção também deverá ser observada nos casos em que houver tratamento sensível de dados pessoais”5, a denotar regime que se coaduna com o entendimento firmado no Enunciado 690, aprovado por ocasião da IX Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, em maio de 2022, com os seguintes dizeres: “a proteção ampliada conferida pela LGPD aos dados sensíveis deverá ser também aplicada aos casos em que houver tratamento sensível de dados pessoais, tal como observado no §1º do art. 11 da LGPD”.
Havendo previsão expressa na Lei Geral do Esporte para a operação de tratamento de dados pessoais sensíveis pela coleta de biometria facial em estádios, é inegável a licitude da atividade, com lastro no cumprimento de obrigação legal (art. 11, II, “a”, da LGPD). Eventual excesso, contudo, poderá acarretar eventual responsabilização (art. 42 da LGPD) e sanção administrativa (art. 52 da LGPD) aos controladores, que, no caso, são a organização esportiva diretamente responsável pela realização do evento esportivo e seus dirigentes (art. 149 da LGE).
Embora o debate sobre a segurança nas arenas esportivas não seja novo, fato é que, três semanas depois da promulgação da nova lei, um fatídico óbito reacendeu as discussões em torno da responsabilização civil por atos de violência em estádios. A tragédia ocorreu enquanto Gabriela Anelli Marchiano, de 23 anos, aguardava na fila para entrar no Allianz Parque, estádio da Sociedade Esportiva Palmeiras, em São Paulo/SP. Um confronto entre torcedores de torcidas organizadas do time local e do Clube de Regatas do Flamengo eclodiu, levando à intervenção da polícia militar com o uso de gás de pimenta para conter a situação. Durante a briga, Gabriela foi atingida no pescoço por estilhaços de uma garrafa de vidro, resultando em ferimentos graves e, apesar de ter sido levada para o hospital e de ter passado por tentativas de reanimação, infelizmente, não sobreviveu. A confusão teve início nas cercanias do portão "A" do estádio, quando torcedores do Palmeiras perceberam a presença de torcedores flamenguistas6.
Diante disso, os torcedores palmeirenses começaram a perseguir os torcedores rivais com a intenção de agredi-los. A ação da Polícia Militar, que utilizou gás de pimenta, acabou afetando não apenas os torcedores, mas também os jogadores em campo, resultando em interrupções na partida. A morte trágica de Gabriela Anelli e os eventos que a cercam suscitam questões cruciais sobre a segurança em eventos esportivos e a atuação das forças de segurança.
A Polícia Civil, por meio da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), efetuou a prisão de um suspeito após utilizar imagens capturadas por uma emissora de televisão e pelo sistema de reconhecimento facial do Allianz Parque7, implementado em conformidade com a nova exigência do artigo 148 da Lei Geral do Esporte.
O software utilizado no local8 foi desenvolvido por uma startup brasileira e é operado por sistemas algorítmicos que processam imagens a ponto de identificar até 80 pontos do rosto humano para obter alta precisão, mas jamais de modo infalível. Isso porque, via de regra, o reconhecimento facial é realizado por técnicas sofisticadas de captura de imagens em tempo real, com processamento algorítmico para a extração de recursos faciais relevantes e comparação com bancos de dados de rostos conhecidos (a denotar a razão peal qual a LGE determina a existência de infraestrutura para cadastramento prévio dos torcedores que ingressam nas dependências do estádio), mas, ainda assim, é possível que haja falhas.
A título exemplificativo, pode-se categorizar as técnicas mais comuns de reconhecimento facial em quatro grandes grupos: (i) métodos baseados em características, pelos quais são extraídos traços do rosto, como olhos, nariz, boca etc. para comparação com um conjunto de características conhecidas a partir de métodos como Eigenfaces e Fisherfaces9; (ii) métodos baseados em modelos 3D, que utilizam informações tridimensionais do rosto para realizar o reconhecimento facial, com resultados mais robustos em relação a variações de pose e iluminação10, sendo geralmente baseados em Modelos Deformáveis de Superfície (SDM) e nos Volumetric Hierarchical Density-Adaptive Models (VHDAM); (iii) métodos baseados em aprendizado de máquina (machine learning), pelos quais se emprega algoritmos para treinar um modelo que pode identificar e reconhecer rostos a partir de Redes Neurais Convolucionais11 (CNNs) e Support Vector Machines (SVMs); (iv) métodos baseados em deep learning12, que se valem de redes neurais profundas para analisar representações faciais complexas e realizar o reconhecimento facial por modelos como FaceNet13 e as Multi-task Cascaded Convolutional Networks (MTCNN).
A despeito da sofisticação técnica desses métodos, trata-se de situação preocupante, como anota Eduardo Tomasevicius Filho, pois “os algoritmos de inteligência artificial voltados ao reconhecimento facial trabalham com mecanismos de semelhança e não de exatidão, posto que se precisa encontrar a resposta com a máxima rapidez possível. Devido às experiências anteriores acumuladas pelo uso contínuo do software, no sentido de eliminarem-se as “pistas” erradas, chega-se ao resultado correto”14.
No entanto, a questão da segurança dos dados permanece duvidosa, especialmente com a incerteza sobre os níveis de segurança informacional adotados para cumprimento dos deveres estabelecidos nos artigos 46 e 49 da LGPD, uma vez que, “devido ao fato de que algoritmos de inteligência artificial não são dotados da sensibilidade humana, decorrente das inteligências múltiplas, é possível a ocorrência de aprendizados equivocados a partir de dados mal coletados ou mal interpretados, gerando análises preconceituosas ou equivocadas, as quais podem levar a severas limitações de liberdades da pessoa e violações por danos patrimoniais e extrapatrimoniais, configurando violações ao direito à honra”15.
Além disso, a utilização de outras tecnologias – como drones e scanners 3D – para a reconstituição do incidente destaca a importância de métodos investigativos modernos para esclarecer os detalhes dos acontecimentos16. Isso porque, inegavelmente, a triste ocorrência levanta preocupações sobre a violência associada a torcidas organizadas e a necessidade de medidas que promovam a segurança e o bem-estar dos torcedores nos estádios.
No mais, convém registrar que a LGE define as condições de acesso e permanência dos espectadores no recinto esportivo, independentemente da modalidade de ingresso utilizada e, dentre as diversas condições especificadas, o inciso XII do artigo 158 estabelece a obrigatoriedade do cadastro no sistema de controle biométrico previsto no artigo 148 para espectadores com idade superior a 16 anos. Além disso, o parágrafo único do artigo 158 estipula que o descumprimento das condições estabelecidas no mencionado artigo implicará a impossibilidade de acesso do espectador ao local do evento esportivo ou, caso já esteja presente, o seu afastamento imediato do recinto. Esse cadastro é fundamental para assegurar a identificação e autenticação dos indivíduos presentes no evento esportivo e tem clara conotação de reforço da segurança e do controle do ambiente, mas a que custo? Não há dúvidas de que o impedimento de acesso do torcedor restringe seu direito social ao lazer (art. 6º, caput, CF) e limita o exercício de sua autodeterminação informativa (art. 2º, II, LGPD) em prol da almejada segurança.
O §5º do artigo 178 estabelece uma disposição importante relacionada às torcidas organizadas17, pois prevê de forma categoria a responsabilidade civil objetiva e solidária pelos danos causados por qualquer um de seus associados ou membros no local do evento esportivo, em seus arredores ou no trajeto de ida e volta para o evento. Além disso, o §6º reforça o dever de reparação do dano estabelecido no parágrafo anterior, pois indica, explicitamente, que a responsabilidade pelo dano não recai somente sobre a torcida organizada, mas também sobre seus dirigentes e membros, solidariamente e com o próprio patrimônio.
Em conclusão, a exigência do fornecimento da biometria facial nos eventos esportivos representa uma significativa transformação no acesso e na segurança desses ambientes. Enquanto seus benefícios são inegáveis, as implicações éticas e jurídicas não podem ser subestimadas. A busca pelo equilíbrio entre a otimização da experiência do torcedor e a proteção de sua privacidade exige uma abordagem cuidadosa e ponderada18, sustentada por normas regulatórias sólidas e práticas transparentes de gerenciamento de dados.
A contínua discussão e a análise crítica dessas questões são essenciais para garantir que a adoção de tecnologias emergentes ocorra de maneira ética e responsável, e, nesse aspecto, o rigor das previsões da LGE em matéria de responsabilidade civil – que vai além das organizações responsáveis pelo evento e atinge diretamente dirigentes, torcidas organizadas e os membros dessas – revela a clara intenção de coibir a violência.
Será importante acompanhar o processo de adequação de outras organizações esportivas que possuem arenas e ginásios com a capacidade mínima exigida a fim de que se possa aferir a conformidade com a LGE e com a LGPD, que devem convergir para a propagação de uma cultura de prevenção de ilícitos e para a mitigação de danos.
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1 No Brasil, por exemplo, tem-se em tramitação os Projetos de Lei 12/2015, 9736/2018, 11140/2018 e 4612/2019 – apenas para citas alguns.
2 OLIVEIRA, Samuel Rodrigues de. Sorria, você está sendo filmado! Repensando direitos na era do reconhecimento facial. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 105-113.
3 Segundo Chiara de Teffé e Mario Viola: “Os dados sensíveis necessitam mais do que nunca de uma tutela diferenciada e especial, de forma a se evitar que informações dessa natureza sejam vazadas, usadas indevidamente, comercializadas ou sirvam para embasar preconceitos e discriminações ilícitas em relação ao titular. Todavia, a mera proibição do tratamento de dados sensíveis é inviável, pois, em alguns momentos, o uso de tais dados será legítimo e necessário, além do que existem determinados organismos cuja própria razão de ser estaria comprometida caso não pudessem obter informações desse gênero, como, por exemplo, algumas entidades de caráter político, religioso ou filosófico”. TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; VIOLA, Mario. Tratamento de dados pessoais na LGPD: estudo sobre as bases legais. Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 9, n. 1, 2020. p. 37.
4 Prevê a LGPD: “Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se: (...) II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural”. Por tratar-se de norma que influenciou diretamente a LGPD brasileira, é sempre conveniente a transcrição de conceitos específicos do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da União Europeia (Regulamento 2016/679/EU), e, sobre o tema, os europeus cuidaram de estabelecer definição específica para “dados biométricos” no artigo 4º, item 14, do RGPD: “dados pessoais resultantes de um tratamento técnico específico relativo às características físicas, fisiológicas ou comportamentais de uma pessoa singular que permitam ou confirmem a identificação única dessa pessoa singular, nomeadamente imagens faciais ou dados dactiloscópicos”.
5 TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Dados pessoais sensíveis: qualificação, tratamento e boas práticas. Indaiatuba: Foco, 2022. p. 39.
6 STABILE, Arthur. Palmeirense ferida em confusão de torcedores foi socorrida por ambulância do estádio e teve duas paradas cardíacas. G1, 10 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023.
7 ESPN. Como imagens da ESPN e sistema de reconhecimento facial do Allianz foram decisivos para prender suspeito de matar Gabriella Anelli. ESPN.com.br – Redação, 25 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023.
8 CAPELO, Rodrigo. Reconhecimento facial no estádio do Palmeiras abre debate sobre benefícios e perda de privacidade. Globo Esporte, 17 jan. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023.
9 WECHSLER, Harry. Reliable face recognition methods: system design, implementation and evaluation. Cham: Springer, 2006, passim.
10 PROESMANS, Marc; VAN GOOL, Luc. Getting facial features and gestures in 3D. In: WECHSLER, Harry; PHILLIPS, P. Jonathon; SOULIÉ, Françoise Fogelman et al (Ed.). Face recognition: from theory to applications. Cham: Springer, 1998, p. 287-309.
11 LAWRENCE, Steve; GILES, C. Lee; TSOI, Ah Chung; BACK, Andrew D. Face recognition: a convolutional neural-network approach. In: IEEE Transactions on Neural Networks, [S.l], v. 8, n. 1, p. 98-113, jan. 1997. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023.
12 ROSEBROCK, Adrian. Face recognition with OpenCV, Python, and deep learning. PYimagesearch, 18 jun. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023.
13 SCHROFF, Florian; KALENICHENKO, Dmitry; PHILBIN, James. FaceNet: A Unified Embedding for Face Recognition and Clustering. In: Proceedings of the IEEE Computer Society Conference on Computer Vision and Pattern Recognition 2015. Boston, MA, USA, 7-12 jun. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023.
14 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Reconhecimento facial e lesões aos direitos da personalidade. In: BARBOSA, Mafalda Miranda et al. (coord.). Direito digital e inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 136.
15 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Reconhecimento facial e lesões aos direitos da personalidade. In: BARBOSA, Mafalda Miranda et al. (coord.). Direito digital e inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 136-137.
16 MAGATTI, Ricardo. Polícia reconstitui morte de Gabriela Anelli, com drones e scanners 3D, e ouve novas testemunhas. Terra, 18 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023.
17 O §2º do mesmo dispositivo traz o conceito de “torcida organizada”: “(...) §2º Considera-se torcida organizada, para os efeitos desta Lei, a pessoa jurídica de direito privado ou existente de fato que se organiza para fins lícitos, especialmente torcer por organização esportiva de qualquer natureza ou modalidade”.
18 A esse respeito, permanece atual a lúcida ponderação de David Lyon: “(...) the reality is that ‘privacy’ often remains a privilege. Expressed within data protection law it stands as a necessary minimum requirement, but that hardly touches the deeper problem. Today’s surveillance is carried out not only by government but also by large corporations, not only within the nation-state but in networks that transcend humanly created boundaries”. LYON, David. The electronic eye: the rise of surveillance society. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994, p. 195.