Migalhas de Responsabilidade Civil

Sociedade 6.0, privacidade e desafios da reparação de danos

Um caminho alvissareiro para tentar conter novos incidentes e trazer uma resposta à sociedade é o bom uso das tutelas coletivas, já que, como dito, a preservação da privacidade não resguarda apenas a esfera de um indivíduo, mas também protege a coletividade e, consequentemente, ampara a segurança democrática.

31/8/2023

Embora corra o risco da redundância, a atual tratativa da privacidade e suas implicações possui conexão direta com a enorme expressão da virtualização das relações jurídicas.

Uma parte significativa dos contratos migrou para plataformas digitais, onde o “aceite” está à curta distância de um clique, a um toque na tela ou a uma identificação facial. O reconhecimento de firmas desaparecerá logo mais, sendo substituído totalmente por assinaturas digitais. A burocrática ida ao banco, as cansativas filas de supermercado, de embarque, dos atendimentos a serviços públicos tendem a desaparecer.

As relações sociais, dentre elas se colocam as relações de trabalho, entre amigos e até mesmo familiares, em sua maioria, estão mediadas por plataformas que utilizam nas suas performances complexas aplicações de inteligência artificial.

O comércio mudou, o consumo mudou, a mercadoria mudou. E com isso, as visões de poder, de democracia, de relação entre pessoas e entre povos também se transfiguraram significativamente.

Por medidas de segurança, as câmeras se multiplicam por todos os lados, dentro e fora de casa. Mais do que isso, as câmeras acompanham as pessoas a todo tempo por utilização de smartphones, os quais passam quase a ser extensão do próprio corpo.

Obviamente que este movimento se acentuou, nos últimos anos, em razão das medidas de isolamento impostas pelas condições sanitárias advindas com a pandemia da COVID-19. Mas não é apenas isso, a praticidade e a “garantia de segurança” prometidas por tais mecanismos tecnológicos faz com que o consumo dos mesmos seja infinitamente mais célere e desproporcional comparativamente à discussão sobre as possíveis consequências que os envolve.

As empresas (e por que não organismos governamentais?) vendem a ideia de que, quando o indivíduo se depara com as “políticas de privacidade”, está entre escolher ser “bem servido” ou “mal servido”. Como se o significado de privacidade se restringisse a ter uma melhor ou pior experiência de consumo. Sobre esse aspecto, será mesmo confiável que a recusa promovida por uma pessoa seja acatada por quem está do outro lado, seja ela inteligência humana ou artificial? As inúmeras publicidades direcionadas parecem desmentir o tal sigilo de informações e compartilhamento de dados.

Está fora de questão duvidar do benefício que as novas tecnologias propiciam à proteção ao meio ambiente, aos avanços da medicina, ao bem-estar das pessoas, ao crescimento da sociedade. Por outro lado, em tempos de cliques, prints, encaminhamentos de mensagens, ataques promovidos por ransomwares etc., a vida privada encontra-se sob enorme risco, o que leva à necessidade de medidas de sustentabilidade e protetivas desse direito fundamental.

Será que há espaço para a discussão sobre relativização ou diminuição do papel da privacidade? Ou quem sabe uma releitura da sua função enquanto direito fundamental?

A resposta passa longe do aniquilamento desse direito ou até mesmo de sua diminuição. Conforme o pensamento de Giovanni Buttarelli¹, a privacidade deve ser compreendida não apenas como um direito individual, mas também como uma garantia da democracia. Segundo o autor: “os dados pessoais podem e devem ser utilizados de acordo com os interesses públicos, com os interesses gerais do Estado e da sociedade, porém não para vantagem de pequenos grupos ou individuais.”²

Em interessante retrato do movimento social, o Gabinete Oficial do Governo Japonês aponta que, após passar pela sociedade da caça (sociedade 1.0); sociedade agrícola (sociedade 2.0), sociedade industrial (sociedade 3.0) e sociedade da informação (sociedade 4.0), foi proposta, no 5º Plano Básico de Ciência e Tecnologia (2016), a sociedade 5.0, pautada na centralidade do ser humano, “que equilibra o avanço econômico com a resolução de problemas sociais por um sistema que integra altamente o ciberespaço e o espaço físico.”³

O passo adiante nesse avanço de ideias é a concepção da sociedade do bem-estar, denominada como sociedade 6.0, a qual tem como pilar: uma sociedade ética, inclusiva e sustentável através da inovação e transformação digital”, resultando em uma Sociedade Socialmente Sustentável e Responsável.4

Alcançar este estágio de desenvolvimento, no entanto, perpassa a discussão de como os tribunais brasileiros enfrentam e enfrentarão o grande desafio de reparar eventuais danos provenientes de violação da privacidade, ocasionados por incidentes cibernéticos, ainda que provenientes de atividades lícitas.

Paradigmas como o da permissão de publicação de biografias não autorizadas não parecem ser os melhores conselheiros. Em que se cristaliza o pensamento: publica e depois se repara eventuais danos.

O caminho mais equitativo da responsabilidade civil é aquele que acentua as suas funções preventivas e precaucionais, especialmente em preservação de princípios como a dignidade.

Por outro lado, tratar de privacidade em rede traz um tortuoso caminho em delinear os danos provenientes da violação desse direito. Mais do que isso, surgem diversos outros questionamentos como a extensão dos danos; quantas e quais pessoas teriam seus dados expostos; possíveis responsáveis por violações.

Em que pese a dificuldade na formulação de respostas, violações ao caro direito fundamental à privacidade não podem padecer de responsabilização. Para que não ocorra como outrora, em que, jurisprudencialmente, embora se reconhecesse a existência de danos morais, eles não eram reparados pela dificuldade da prova.

Um caminho alvissareiro para tentar conter novos incidentes e trazer uma resposta à sociedade é o bom uso das tutelas coletivas, já que, como dito, a preservação da privacidade não resguarda apenas a esfera de um indivíduo, mas também protege a coletividade e, consequentemente, ampara a segurança democrática.

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1 BUTTARELLI, Giovanni. Privacy 2030: Una nuova visione per l’Europa. IAAP (International Association of Privacy Professionals). Publicado 18 set 2020. Disponível aqui. Acesso em 05 mai 2023.

2 Tradução livre de: I dati personali possono e devono essere utilizzati per l’interesse pubblico, per gli interessi generali dello stato e della società anziché a vantaggio di singoli gruppi o individui.

3 Tradução livre de “that balances economic advancement with the resolution of social problems by a system that highly integrates cyberspace and physical space”. Gabinete Oficial do Governo do Japão. Society 5.0. Disponível aqui. Acesso em 05 mai 2023.

4 ŽIŽEK , Simona Šarotar; MULEJ, Matjaž; POTOCNIK Amna. The Sustainable Socially Responsible Society: Well-Being Society 6.0. In Sustainability 2021, 13, 9186. Disponível aqui. Acesso em 05 mai 2023.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.