Migalhas de Responsabilidade Civil

Infidelidade e ilícito virtual: muda-se o meio, mas subsiste o suporte fático e a possibilidade de dano?

Como efetivamente se caracterizaria o descumprimento do dever de fidelidade recíproca?

8/8/2023

Introdução 

Ao pesquisarmos sobre o número de usuários de redes sociais no Brasil, a pesquisa revela as dez redes sociais mais utilizadas, com dados medidos em fevereiro de 2023.1 Sobre os dados trazidos, as máximas de experiência nos mostram que as redes são utilizadas com os mais variados objetivos: grupos de família, de amigos, publicidade de produtos e serviços; educação, como alguns poucos exemplos.

Em momento anterior analisamos algumas decisões que discutiram a ocorrência de danos extrapatrimoniais com fundamento na denominada infidelidade virtual.2Daquele momento em diante evoluímos, estudamos mais profundamente a questão e, através destas breves linhas, indagamos: como efetivamente se caracterizaria o descumprimento do dever de fidelidade recíproca? Imagine o estudioso do tema as seguintes hipóteses: 1) a esposa flagrou seu marido tendo relações sexuais com outra pessoa; 2) A esposa ficou sabendo por uma amiga que viu seu marido em um restaurante, com outra pessoa, trocando olhares carinhosos, por vezes, de mãos dadas; 3) A esposa viu, por uma rede social, trocas de mensagens entre seu marido e uma pessoa, com o teor do diálogo revelando uma paixão, por exemplo. Como ficariam tais hipóteses à luz do suporte fático do descumprimento do dever de fidelidade recíproca previsto pelo Código Civil e, em especial, tais fatos ocorrendo em ambiente virtual?

E mais: imaginemos que o juiz tenha julgado procedente o pedido de condenação por danos imateriais, pois, na sua convicção, caracterizada a infidelidade virtual. O réu, por sua vez, não se contentando com o resultado da ação, agora, perante Desembargadores em determinado Tribunal de Justiça de nosso país, pergunta ao magistrado através de seu advogado, advogada: “Como poderia alguém ser condenado à reparação danos imateriais tendo por base uma causa de pedir (infidelidade virtual) que sequer existe em nosso ordenamento, enquanto fato jurídico?

Convidamos então o estudioso para tais reflexões, que serão enfrentadas a partir de agora.           

Ilícito e o suporte fático e dever de fidelidade recíproca 

Ato ilícito, segundo o entendimento de Sérgio Cavalieri Filho, resulta de uma conduta voluntária, violando determinado dever jurídico, devendo a culpa estar comprovada caso se trate de responsabilidade subjetiva.3

Pontes de Miranda, por sua vez, sobre o suporte fático da norma, ensina que: 

A regra jurídica é sempre uma proposição, escrita ou não escrita, em que se diz: “Se ocorrem a, b e c (ou se ocorrem b e c, ou se ocorrem a e b, ou se ocorre a, ou se ocorre b), acontece d. A esses elementos chamam-se elementos fáticos. Se, todos estão juntos, ou se aparece o único que se exigia, o todo fático é como que carimbado pela regra jurídica. A esse todo deu-se o nome de suporte fático.4 

O Código Civil prevê sobre o dever de fidelidade recíproca entre os cônjuges,5 dever que, segundo as lições de Paulo Lôbo: "A fidelidade recíproca sempre foi entendida como impedimento  de relações sexuais com terceiros".6 Nelson Rosenvald e Felipe Btaga Netto, por sua vez e refletindo sobre o tema, observam que aquele dever: 

[...] participa da comunhão plena de vida formada pelo casamento – embora, é certo, o conceito de fidelidade posa variar de acordo com o casal, de seus valores, de seu modo de vida, de acordo com a história que construíram juntos".7 

Por outro lado, o Código Civil, expressamente, nada refere sobre conseqüências de sua eventual violação.

Mas há ainda outra situação relacionada com a infidelidade e que aguardaria o desfecho sobre o entendimento acerca da aceitação, ou não, da infidelidade virtual. Vamos imaginar a hipótese de o marido doar um bem à pessoa que vem se relacionando virtualmente. A esposa poderia pleitear a anulação com fundamento na regra do art. 550,8 do Código Civil? 

Conclusão 

Novos fatos, mas velhos Códigos; velhos, não em um sentido de ofensa ou desprestígio, mas tão somente por força do decurso do tempo. Contudo, a dignidade da pessoa humana em termos de sua proteção dá novos ares às interpretações fazendo com que a legislação mantenha-se atualizada.

Atualmente, o dever de fidelidade recíproca, segundo leciona Paulo Lôbo, "[...] confinou-se ao plano da consciência moral, uma vez que destituído de conseqüências jurídicas".9

Talvez a responsabilidade civil, na atualidade e até com uma nova tendência na questão do dano extrapatrimonial envolvendo o ambiente virtual e o descumprimento do dever de fidelidade recíproca (naquele ambiente) comece a dar novos contornos aos meios em que a infidelidade venha a se caracaterizar. Meios enquanto antigos fatos (infidelidade) justamente como é o ambiente virtual. Afinal de contas, quando Miguel Rele nos ensina sobre as mais variadas acepções da palavra Direito, remete-nos o jurista à teoria tridimensional do Direito, ou seja, o Direito na seguinte análise: "[...] um aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça)".10

Sobre a indagação antes feita pelo réu em suas razões de sustentação oral, talvez a resposta do Tribunal para manter a condenação viria, também, com base no venire contra factum proprium. Afinal, objetivamente, mostrou pelo seu comportamento a intenção em estar com pessoa diversa a do seu casamento, mesmo na forma virtual. Contudo, alega a infidelidade na virtualidade como fato não jurídico, portanto, não enquadrado como violação ao dever de fidelidade recíproca previsto pelo Código Civil. Por isso também ressaltamos o título destas linhas na parte que apresenta a seguinte expressão e a pergunta: muda-se o meio, mas subsiste o suporte fático e a possibilidade de dano?

Parece-nos que a resposta, pelo andar do comportamento dos integrantes da sociedade também no sentido de uma nova manifestação das relações entre casais passa pela virtualidade, sendo que o Direito, por sua vez, deve ficar atento à eventual responsabilidade civil como uma nova forma de violação de antigos deveres conforme aqui alertamos e defendemos.

Referências

ALMEIDA, Felipe Cunha de. Responsabilidade civil no direito de família: angústias e aflições nas relações familiares. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020.

BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível aqui.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível aqui.

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2014.

LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. v. 5. 9 ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti de. Tratado das ações: tomo 1. 1 ed. ALVES, Vilson Rodrigues. (atual). Campinas: Bookseller, 1998.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Código civil comentado: artigo por artigo. 1 ed. Salvador Juspodivm, 2020.

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1  Ranking: as redes sociais mais usadas no Brasil e no mundo em 2023, com insights, ferramentas e materiais: 1. WhatsApp (169 mi); 2. YouTube (142 mi); 3. Instagram (113 mi); 4. Facebook; (109 mi); 5. TikTok (82 mi); 6. LinkedIn (63 mi); 7. Messenger (62 mi); 8. Kwai (48 mi); 9. Pinterest (28 mi); 10. Twitter (24 mi). In: Resultados Digitais. Disponível aqui. Acesso em: 28 jun. 2023.

2 ALMEIDA, Felipe Cunha de. Responsabilidade civil no direito de família: angústias e aflições nas relações familiares. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020, p. 148-152.

3 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 25.

4 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti de. Tratado das ações: tomo 1. 1 ed. ALVES, Vilson Rodrigues. (atual). Campinas: Bookseller, 1998, p. 21.

5 Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:

I - fidelidade recíproca;

6 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. v. 5. 9 ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019, p. 137.

7 ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Código civil comentado: artigo por artigo. 1 ed. Salvador Juspodivm, 2020, p. 1.609.

8 Art. 550. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal.

9 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. v. 5. 9 ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019, p. 138.

10 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 65.

 

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.