Migalhas de Responsabilidade Civil

Responsabilidade civil e os limites entre normas ambientais e normas setoriais

A solidez do Direito Ambiental depende de sua densificação em âmbito próprio, sem se transformar em mecanismo de regulação universal das relações jurídicas econômico-sociais.

3/8/2023

As correlações entre as normas de Direito Ambiental e as normas pertinentes a searas regulatórias setoriais, tal como relativas à energia, às águas, às telecomunicações e à radiodifusão possuem zonas de encontro, mas também limites de delimitação. As zonas de encontro e os limites de delimitação possuem conexão direta e expressa para com as competências constitucionais. A justificativa de vinculação indireta em cadeias ilimitadas de reflexo das normas setoriais ou regulatórias em bens ambientais não legitima a atuação da competência legislativa ambiental. O panorama acarreta consequências diretas em termos de responsabilidade civil ambiental.

O Supremo Tribunal Federal veio a julgar a matéria em recente decisão, proferida na ADI 7.321/AL. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Supremo firmou que é inconstitucional norma estadual que institui a obrigatoriedade de licenciamento ambiental para a instalação de Rede de Transmissão de Sistemas de Telefonia e de Estações de Rádio Base (ERBs) e Equipamentos de Telefonia sem fio em seu território local. No caso, a lei 6.787/2006, do Estado de Alagoas, alterada pela lei 7.625/14, foi reconhecida não como uma norma de regulação ambiental propriamente dita, mas sim como uma norma de direito regulatório de caráter setorial. A linha assumida pelo Supremo está também presente nos julgados proferidos em ADPF 732; ADI 5.575; ADI 5.569 e ADI 3.110.

Segundo o Supremo, “ainda que sob a justificativa de proteger, defender e conservar o meio ambiente local e seus recursos naturais, a lei estadual impugnada, ao criar uma obrigação às empresas prestadoras de serviços de telecomunicações e estipular critérios para a instalação de infraestruturas a ele relacionadas, invadiu a competência da União para dispor sobre a matéria e interferiu diretamente na relação contratual formalizada entre o Poder concedente e as concessionárias”.

Em fato, a competência ambiental é competência concorrente, prevista no artigo 24, incisos VI, VII e VIII, ao passo que a competência regulatória quanto a energia, águas, informática, telecomunicações e radiodifusão é competência privativa, prevista no artigo 22, inciso IV, ambos da Constituição da República. Embora a União edite normas gerais e os Estados e Distrito Federal editem normas específicas em matéria ambiental, a competência regulatória setorial é privativa da União. Não pode o ente federativo estadual passar a exercer atividade normativa regulatória setorial sob a roupagem de reflexo indireto em bem ambiental. Caracteriza-se aqui verdadeira invasão de competência.

O efeito sobre a responsabilidade civil é de implicação clara. Violações de concessionária de serviço público ou de atores de mercado como um todo em termos de legislação regulatória setorial não se caracterizam como infrações ambientais, afastando a responsabilidade administrativa, civil ou mesmo penal em termos de Direito Ambiental. Em consequência, se determinada pessoa jurídica viola normas regulatórias setoriais, o fato não legitima a lavratura de autos de infração ambiental e menos ainda a dedução de ações reparatórias ao argumento de responsabilidade objetiva pela teoria do risco integral por existência de potencial degradação ambiental.

Estabelece-se assim um filtro prévio na análise de violação normativa que será determinante para a adequação do marco regulatório em infrações cíveis ou administrativas. Exemplificativamente, se a matéria envolve o marco regulatório de geração energética previsto na lei 9.074/95 e na lei 9.427/96, tal como no caso de especificação de finalidades do aproveitamento ou da implantação de usinas, não cabe a qualquer órgão ambiental atuar para imputação de responsabilidades no caso de violações legais, infralegais ou contratuais, seja de que espécie for.

A relevância e o caráter interdisciplinar do Direito Ambiental não significam que ramos jurídicos cujos bens possuem multiplicidade regulatória ficarão absorvidos pela dinâmica regulatória da responsabilidade civil, administrativa e penal ambientais. É necessário delimitar os âmbitos de aplicação e exercício de competência. As legislações estaduais que passam a exercer normatização regulatória em matéria de energia ou telecomunicações, ao argumento de implicação indireta progressiva coligada a bens ambientais, revelam-se como inconstitucionais, pois invadem competências federais privativas.

Além disso, em caso de violações normativas vinculadas a normas regulatórias setoriais, não se tem legitimidade de aplicação de autos de infração ambientais e menos ainda de ações civis públicas para reparação de danos ambientais. A solidez do Direito Ambiental depende de sua densificação em âmbito próprio, sem se transformar em mecanismo de regulação universal das relações jurídicas econômico-sociais.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.