Migalhas de Responsabilidade Civil

Compartilhamento de mensagens por WhatsApp sem a autorização do interlocutor: contenha-se desse impulso

A Autora analisa, na era digital, a facilidade com que as mensagens recebidas por WhatsApp são encaminhadas a terceiros e pondera sobre a possibilidade de responsabilização civil daquele que compartilhou a informação sem a autorização de seu interlocutor.

11/7/2023

Um recorte necessário para o enfrentamento do tema

O WhatsApp que se destina ao compartilhamento instantâneo de mensagens de textos, imagens, vídeos e áudios é, atualmente, o aplicativo que mais é utilizado pelos brasileiros que querem se comunicar de maneira rápida e eficaz. Embora, esteja em grande nível de competitividade com outros aplicativos, tais como o Telegram, o Skype, o Messenger e o Instagram, o WhatsApp é utilizado por 99% das pessoas que utilizam smartphones no Brasil e segundo a pesquisa patrocinada pela Infobip, em agosto de 2022, 88% dos entrevistados afirmaram que entram no aplicativo todos os dias e outros 7% dizem se conectar a ele quase todos os dias.1

Dentro do aplicativo, o usuário pode enviar mensagens, fazer ligações, publicar status pessoal e participar de grupos. Considerando que o usuário pode receber mensagens de diversas linhagens, seja de trabalho, negócios, informação e entretenimento, a priori, três trilhas se vislumbram: a mensagem ser recebida pelo usuário e ser deletada; a mensagem ser recebida pelo usuário e se quedar estacionada no aplicativo seja por esquecimento ou inércia do receptor; a mensagem ser repassada adiante para outros novos destinatários.

Quando se foca no conteúdo recebido, o seu teor, por sua vez, poderá apresentar duas fontes: a mensagem pode ter sido redigida e criada pelo próprio interlocutor da conversa ou a mensagem pode ter sido criada por terceiro e ter-lhe sido apenas “encaminhada”.

Dentro do quadrante que se propõe neste trabalho, investiga-se a mensagem que é criada e redigida por seu interlocutor e, sem a sua autorização, é encaminhada a terceiros como, por exemplo, uma trivial conversa entre colegas ou amigos, seja em grupo fechado de WhatsApp ou não, que é encaminhada por seu destinatário a terceiros. Assim, diante do recorte cogitado, é bom destacar que não se trata de estudo do tratamento a ser dado em relação às notícias falsas (fake news), mas tão somente perquire-se sobre a responsabilidade civil daquele que encaminha a mensagem recebida, sem autorização de seu interlocutor, a terceiros.

2. A inversão de uma lógica: a lembrança como regra

Popularizou-se, no ano de 2004, a expressão Web 2.02 ao traduzir uma segunda geração da internet cujo objetivo era a participação ativa dos usuários como se dá, por exemplo, em redes sociais, blogs e wikipedia3.  Participação, colaboração e interação são as palavras de ordem no movimento da Web 2.0 que inaugura novos rumos para a Rede. O jurista italiano Stefano Rodotà destaca a importância desse movimento para a construção da personalidade das pessoas e relata que “in questa prospectiva, assume un nuovo significato la libertà di espressione, come elemento essenziale dell`essere della persona e della sua collocazione nella società.”4

Tudo isso conduz a novas realidades, perspectivas e, inclusive, promove inversões comportamentais como, por exemplo, a necessidade que muitos apresentam de auto exposição, o que faz a palavra ocupar o lugar do silêncio e a lembrança ocupar o lugar do esquecimento. A inversão da lógica humana conduz à conclusão de que, na era digital, o esquecimento deixa de ser a regra e a lembrança passa a protagonizar o comportamento humano. Essa é a perspectiva abordada por Umberto Eco quando, adentrando à realidade pessoal de cada um, constata que “a tendência geral parece ser o desejo de ser visto e ouvido a qualquer custo para ter a sensação de existir.”5 A grande questão que se levanta é como se sustentará uma personalidade forjada no desejo estéril de ser vista a todo custo em redes sociais que “a despeito de todas as suas promessas comunitárias, nos divide em vez de nos aproximar” e que faz a todos “mais desiguais que iguais, mais ansiosos que felizes, mais solitários que socialmente conectados.”6

Fomentando essa realidade, em 2009, surge o aplicativo de mensagens instantâneas denominado de WhatsApp7 criado pelo ucraniano Jan Koum e Brian Acton, colegas que se conheceram dentro da empresa Yahoo. Em 2014, o Facebook pagou pelo aplicativo US$ 19 bilhões e, em 2018, o aplicativo de mensagens instantâneas chegou à marca de 1,5 bilhão de usuários. Embora, existam outros aplicativos com a mesma finalidade que pareçam mais funcionais e confiáveis como, por exemplo, o Telegram, prevaleceu para o usuário comum a ideia de que todo mundo pode ser encontrado no WhatsApp. Em verdade, os motivos do êxito do aplicativo foram a simplicidade e a ausência de publicidade, em virtude de seus idealizadores serem avessos a ela.

Disso tudo decorreram efeitos colaterais que podem ser reduzidos a dois eixos: o de segurança e o de privacidade. Nessa senda foi que Brian Acton, depois de sair do Facebook e diante de aparente conflito pessoal com os rumos do aplicativo, desabafou: “eu vendi a privacidade dos meus usuários para um benefício maior. Eu fiz a escolha e um compromisso. E eu vivo com isso todos os dias.”8

Em tentativa de driblar o problema de segurança do WhatsApp, nos termos de uso do aplicativo consta a informação de que as mensagens são protegidas por criptografia de ponta a ponta9, assim, haverá uma “cifragem de mensagens em códigos com o objetivo de evitar que elas possam ser decifradas por terceiros.”10  Isso significa dizer que somente os usuários poderão ter acesso às informações ali contidas, de modo que, nem o WhatsApp pode ter acesso a elas.11

3. Casos concretos de compartilhamento de mensagens via WhatsApp sem a autorização do interlocutor

Duas situações são apresentadas: (i) em um grupo de WhatsApp formado por oito  torcedores de determinado time de futebol que trocavam mensagens acerca de diversos assuntos e da insatisfação com a gestão da agremiação esportiva, em um dado momento, um de seus participantes se retira do grupo e passa a divulgar nas redes sociais e na mídia capturas de tela, “prints” de conversas do referido grupo, sem o consentimento dos demais participantes.12 (ii) uma pessoa que confidencia, via WhatsApp, à colega de trabalho a sua vontade de ser demitida e que, para tanto, envidaria esforços nesse sentido, ficando na empresa sem fazer nada, “sentada, de boa”. Com o repasse da mensagem ao empregador, o resultado foi a demissão por justa causa da empregada que criou a mensagem.13

Em comum, os cases apresentam pessoa que recebeu mensagens escritas e divulgou a terceiros, sem a autorização de seu emissor. Em comum, tem-se a vulgarização do dever de sigilo e a consequente fragilização da privacidade de seus emissores. Em comum, condenações que decorreram da ponderação entre a liberdade de expressão e a privacidade, fazendo prevalecer esse último direito respaldado, sobretudo, na imposição de sigilo das comunicações, que encontra guarida na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XII). Em comum, a expectativa de que a conversa não ultrapassaria os lindes impostos pela lealdade de seu receptor.

4. Conclusão

A utilização de aplicativos como o WhatsApp em um mundo acelerado e ávido por soluções e respostas rápidas é um caminho sem volta. A ideia de que todos podem ser encontrados a qualquer momento é o argumento que seduz e que justifica a disseminação de tais meios de comunicação no planeta Terra.

Em uma era de exacerbada auto exposição e exibicionismo em massa, a autorização do interlocutor para divulgação de mensagem enviada por esse, parece elemento absolutamente dispensável numa sociedade que tem pressa e toma decisões movidas por imediatismo e impulsividade. Quando se vê, a tecla “encaminhar” já foi apertada.

A despeito das promessas de segurança que o aplicativo de conversas instantâneas WhatsApp apresenta, o que se constata é um risco latente de violação a direitos da personalidade, tais como a privacidade e o sigilo, bem como ofensa à legítima expectativa que o emissor da mensagem tem de ser lido apenas pelo seu destinatário, ao qual enviou a mensagem.

Desse modo, salvo por ordem judicial, notório interesse público ou para defender direito próprio, expor opinião particular do emitente da mensagem encaminhada em conversa privada no WhatsApp configura conduta ilícita passível de responsabilização civil, se dela resultar dano.

Para que o WhatsApp alcance a sua finalidade máxima de facilitação de comunicação, não se pode admitir a exportação de informações sem a autorização de seu interlocutor, invocando-se aqui a responsabilidade daquele que recebeu a mensagem em seu smartphone.  É necessário que a mesma sociedade que busca respostas rápidas para tudo se contenha do instinto, do desejo, da vingança ou da impulsividade de simplesmente “encaminhar” mensagem que lhe foi enviada, sob pena de nos consolidarmos como sociedade que vive verdadeiramente no modelo arquitetônico panóptico de Bentham14, expostos a todos os olhares e juízos de valor alheios.

____________

1 Pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box – Mensageria no Brasil, de agosto de 2022, patrocinada pela Infobip, disponível em: https://www2.infobip.com/pt/blog/panorama-mensageria-brasil-mobile-time-opinion-box. Acesso em: 19/03/2023.

2 A expressão “Web 2.0” foi cunhada por Tim O'Reilly em “Web 2.0: Compact Definition?”, disponível em http://radar.oreilly.com/2005/10/web-20-compact-definition.html. Acesso em 23/03/2023.

3 A wikipedia se manifesta como uma enciclopédia colaborativa em que os seus usuários inserem o seu próprio conteúdo.

4 RODOTÀ, Stefano. Il diritto di avere diritti, RomaBari: Laterza, 2012. p. 320. Em tradução livre: “Nesta pesperctiva, a liberdade de expressão assume um novo significado, como elemento essencial do ser, da pessoa e do seu lugar na sociedade.

5 ECO, Umberto. Pape Satàn Aleppe: crônicas de uma sociedade líquida. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 39.

6 KEEN, Andrew. Vertigem digital: porque as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientando.  Alexandre Martins (trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 77.

O nome WhatsApp se traduz em um trocadilho perfeito entre a palavra “app” e a expressão “what’s up”, que em tradução livre quer dizer “e aí” ou, no contexto do aplicativo, como “o que está acontecendo?”, com a resposta aparecendo no status.

8 ALECRIM, Anderson. Dez anos de WhatsApp: como o serviço de mensagens conquistou o mundo. Disponível em: https://tecnoblog.net/especiais/whatsapp-dez-anos-historia/ Acesso em: 21/03/2023.

9 A criptografia de ponta a ponta do WhatsApp protege suas conversas com outras pessoas no WhatsApp, garantindo que as mensagens e chamadas fiquem somente entre você e a pessoa com quem você está conversando. Ninguém mais pode ler ou ouvir suas conversas, nem mesmo o WhatsApp. As mensagens e chamadas são protegidas com um cadeado exclusivo e somente você e a pessoa que recebe a mensagem têm acesso à chave especial para destrancá-lo e ler as mensagens. Todo esse processo acontece automaticamente: não é necessário ativar configurações especiais para garantir a segurança de suas mensagens. Disponível em: https://faq.whatsapp.com/820124435853543/ Acesso em: 21/03/2022.

10 LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos. Contratos eletrônicos: validade jurídica dos contratos via Internet. São Paulo: Atlas, 2007, p. 160.

11 No Brasil, a criptografia de ponta a ponta é objeto de análise pelo STF na ADI 5527 e ADPF 403 que discutem a possibilidade de suspensão do funcionamento de aplicativos de mensagens, após o WhatsApp informar que não poderia fornecer os dados requisitados por magistrado em virtude da segurança oferecida pela criptografia de ponta a ponta.

12 Superior Tribunal de Justiça. REsp 1903273/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/08/2021, DJe 30/08/2021.

13 Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo nº 1003332-05.2021.8.26.0007. 3ª Vara Cível do Foro Regional de Itaquera, em São Paulo.

14 O modelo arquitetônico de Jeremy Bentham, filósofo utilitarista inglês (1748 – 1832) se manifesta por uma construção de formato circular com uma torre central a qual teria a visão de todos. O modelo surgiria como solução ideal para as penitenciárias, pois o preso seria vigiado a todo tempo, sem ter domínio de quem o faz. A analogia se mostra pertinente pois qualquer mensagem enviada por WhatsApp, a priori, poderia ser submetida a apreciação de todos e não apenas de seu receptor, se não houver limites para a sua divulgação. 

____________

ALECRIM, Anderson. Dez anos de WhatsApp: como o serviço de mensagens conquistou o mundo. Disponível em: https://tecnoblog.net/especiais/whatsapp-dez-anos-historia/ Acesso em: 21/03/2023.

ECO. Umberto. Pape Satàn Aleppe: crônicas de uma sociedade líquida. Rio de Janeiro: Record, 2017.

LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos. Contratos eletrônicos: validade jurídica dos contratos via Internet. São Paulo: Atlas, 2007.

KEEN, Andrew. Vertigem digital: porque as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientando.  Alexandre Martins (trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

O`REILLY, Tim. Web 2.0: Compact Definition? Disponível em http://radar.oreilly.com/2005/10/web-20-compact-definition.html. Acesso em 23/03/2023.

MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: the virtue of forgetting in the digital age. Princeton: Princeton University Press, 2009.

RODOTÀ, Stefano. Il diritto di avere diritti. RomaBari: Laterza, 201

____________

Pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box – Mensageria no Brasil, de agosto de 2022, patrocinada pela Infobip, disponível em https://www2.infobip.com/pt/blog/panorama-mensageria-brasil-mobile-time-opinion-box. Acesso em: 19/03/2023.

____________

*Mônica Queiroz é doutora e mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Autora de obras jurídicas, palestrante e parecerista. 

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.