1- Introdução: o que envolve atualmente o conceito de responsabilidade civil?
As tradições de common law e civil law legaram ao instituto da responsabilidade civil traços estruturais distintos. Sob a perspectiva de common law, as hipóteses ocasionadoras de indenização foram sendo construídas de modo tópico, case-by-case, enquanto os países de tradição de civil law consolidam a visão de sistema, conceituando o ato ilícito e seus requisitos e o dano.
O direito inglês e norte-americano buscaram a abordagem dos torts. São inúmeras as modalidades de torts, vinculados ao direito à honra, reputação, saúde mental, descumprimento contratual, privacidade, dever de cuidado, dentre outros.1
Já o direito francês, por exemplo, adotou uma lógica de universalidade, portanto, instituindo uma cláusula geral de responsabilidade em que se conseguiu enquadrar praticamente todos os torts.2
Merece registro a posição intermediária da Alemanha que optou por cláusulas de responsabilidade associadas a determinadas hipóteses legais previstas.3
A breve contextualização metodológica entre common law e civil law foi realizada com o propósito de se convergir com o termo liability, ou seja, a responsabilidade civil se restringia sob essas lógicas a se atestar a presença do nexo causal entre conduta e dano, resultando na imputação de uma reparação.
Todavia, como afirma Nelson Rosenvald, “a liability não é o epicentro da responsabilidade civil, mas apenas a sua epiderme.”4
A liability está associada ao dano, eclodindo a responsabilidade após esse evento e culmina como consequência em prol do reequilíbrio patrimonial.
Essa configuração monolítica da responsabilidade não tem mais espaço na sociedade multifacetada em que se vive.
O palco da democracia e a ênfase à proteção dos direitos humanos, fundamentais e sociais clamam por outros papeis do instituto da responsabilidade. Emergem, nesse sentido, aspectos morais e novamente com Nelson Rosenvald, o termo responsibility “é perene, transitando entre o passado, o presente e o futuro.”
Responsibility está centrada no necessário olhar prospectivo, ultrapassando a mera função indenizatória de viés retrospectivo, por isso, marcha rumo às funções preventiva e precaucional, afirmando-se a responsabilidade sem dano ou antecipando-se a ele.
Parte-se da premissa que prevenção não se confunde com precaução e se embasa na doutrina de Thaís Pascoaloto Venturi, para quem a distinção “reside, fundamentalmente, no grau de possibilidade da efetiva ocorrência das consequências lesivas decorrentes da hipótese cujo risco se busca calcular.”5 A prevenção se assenta nos riscos concretos e a precaução nos riscos abstratos.6
A pluralidade que permeia o conceito de responsabilidade civil resta alicerçada sob o campo dos papeis que ela deve desempenhar concomitantemente para que atinja um nível de transparência, informação e justificação em favor da sociedade.
O binômio liability – responsability se agrega aos de accountability e answerability. A abertura para o exercício dessas atribuições, por meio das funções compensatória, preventiva, precaucional, punitiva e restitutória, vai ao encontro de uma sociedade que demanda respostas íntegras, resultados otimizados e condutas efetivas quanto aos conflitos de interesses apresentados, especialmente no campo da tutela coletiva e estrutural.
2- O PL 1641/21: ação coletiva e estrutural e as múltiplas funções da responsabilidade civil
O PL 1641/21, em homenagem à jurista Ada Pellegrini Grinover, foi elaborado por meio de comissão de integrantes do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), cujo intento primordial residiu em colaborar com os Projetos de Lei 4441/20 e 4778/20 que já estavam em andamento na Câmara dos Deputados. Todos convergem para o aperfeiçoamento da ação coletiva – ação civil pública.
Uma proposição legislativa desse quilate que abrange todo o sistema de tutela coletiva jamais poderia deixar de espelhar o caudal funcional do instituto da responsabilidade civil e, ainda mais que o processo deve estar voltado com o seu aporte de técnicas no direcionamento da realização do direito material. Como afirmam Marinoni, Arenhart e Mitidiero, “o direito processual viabiliza – em termos de efetividade – a própria existência do direito material.”7
A necessária simbiose entre o direito material e o processual expressa a accountability na sua vertente ex post, como leciona Nelson Rosenvald, pois ela “atua como um guia para o magistrado e outras autoridades, tanto para identificar e quantificar responsabilidades, como para estabelecer os remédios mais adequados.”8
A tutela coletiva e atualmente as demandas estruturais não poderiam apenas exteriorizar uma mera reparação, indenização, fruto de liability.
O PL 1641/21, em seu art. 2º, densifica o estatuto axiológico do panorama da tutela coletiva e, ao catalogar os princípios, solidifica essa interdependência entre a multifuncionalidade da responsabilidade civil e os caminhos judiciais ou extrajudiciais das ações coletivas e estruturais.
Os núcleos da precaução, prevenção, reparação integral de danos patrimoniais e morais, individuais e coletivos; responsabilidade punitivo-pedagógica e restituição integral dos lucros ou vantagens obtidas ilicitamente com a prática do ilícito ou a ela conexas9 (art. 2º, incisos V e VI) revelam a imperiosa ressignificação dos litígios coletivos e sobretudo estruturais, quanto ao que proporcionam que é o acesso à ordem jurídica justa10, em termos de consequências relativas às medidas empregadas.
As tutelas coletiva e estrutural não podem ser estereotipadas sob o “véu” de um viés de responsabilidade, porque são vários os grupos de interesse, graus de postulação e níveis de repercussão. Para a defesa desses múltiplos direitos transindividuais, o processo deve estar na rota de recepção de qualquer espécie de tutela jurisdicional e de procedimentos que assegurem a efetividade da tutela11, compreendendo-se as 5 (cinco) funções da responsabilidade civil.
À guisa de ilustração, questões de regularização fundiária, possessórias coletivas, desastres ambientais, direito à saúde, educação, trabalho escravo e degradante são algumas situações que não podem ser simplesmente resolvidas com pedido meramente indenizatório. Via de regra são problemas estruturais com diversos enfoques, soluções e que somente podem alcançar uma recomposição institucional se tiverem a pauta de tutelas que inibam a prática, reiteração ou continuação de um ilícito, ou seja, fundamental a remoção e, além disso, pena civil, indenização e outras modalidades de pedidos.
Destaca-se, inclusive, o disgorgement como forma de restituição integral dos lucros ou vantagens obtidas ilicitamente que visa uma reparação integral nesses litígios estruturais, e também uma eficácia preventiva, porque vai desestimular a prática ou a reiteração de tais infrações, seja por parte do agente, seja por parte dos players do segmento econômico.
O leitor pode indagar-se que as reflexões feitas repousam sobre um projeto de lei que pode não ser convertido em lei e, com isso, a tutela coletiva permaneceria na sua zona de conforto tradicional sem considerar essas multifuncionalidades da responsabilidade civil.
A metodologia a ser empregada nos processos coletivos e estruturais é a da visão do todo, portanto de um sistema em que as unidades que compõem esse universo dialogam e as lacunas vão sendo colmatadas, não importando se são leis gerais ou especiais.
O Código Civil traduz os núcleos obrigacionais, responsabilidades, instituto do enriquecimento sem causa e o Código de Processo Civil com o amplo campo de técnicas se projeta a serviço do direito substancial. Não se tem mais espaço para déficits interpretativos, quando se trata de direitos fundamentais, sociais e humanos.
Em decisão paradigmática assentada em interpretação sistemática, o Tribunal de Contas da União12 decidiu sobre a aplicação do disgorgement e entendeu que a restituição dos lucros ilegítimos tem fundamentação no principio da vedação do enriquecimento sem causa (art. 884 CC); ninguém pode beneficiar-se da sua própria torpeza (arts. 5º e 276 CPC); e efeitos retrooperantes da declaração de nulidade (arts. 59 da lei 8666/93 + 148 e 149 da lei 14133/2021).
E imperioso extrair todos os sentidos e alcance do instituto da responsabilidade civil (funções compensatória, preventiva, punitiva, precaucional e restitutória) e se conjugar com o processo dotado de flexibilidade procedimental e que tem como norte a primazia do mérito, eficiência, razoabilidade, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana (arts. 4º e 8º CPC), visto que somente assim se caminhará rumo à perspectiva de mudanças comportamentais por parte dos lesantes e de toda a sociedade nos conflitos coletivos e estruturais.
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1 Tort of libel, tort of slander, infliction of mental distress, inducing a breach of contact, invasion of rigtht of privacy, negligence. In LIMPENS, Jean. Liability for One’s Own Act. Torts. In. International Encyclopedia of Comparative Law. Vol. XI. Tübingen: Mohr Siebeck, 1979, pp. 5 e 50 e ss.
2 Article 1240 - Tout fait quelconque de l'homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer (Todo ato do ser humano que causar dano a outrem, obriga aquela pessoa que incorreu em falta (culpa) a reparar o dano) (trad. livre). Acesso em 09 de maio de 2023. https://www.legifrance.gouv.fr/codes/section_lc/LEGITEXT000006070721/LEGISCTA000032021486/#LEGISCTA000032021486
3 As posições do direito inglês, americano, francês e alemão foram alvo de análise, entre outros autores por MATTIACCI, Giuseppe Dari. Tort Law and Economics. Chapter 2. P. 01-44. Working paper Utrecht University, Institute of Economics, 2003. Acesso em 09 de maio de 2023 https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abid=347801
4 Funções da reponsabilidade civil. 4. ed. SP: Saraiva, 2022. Passim.
5 VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva. SP: Malheiros, 2014. P. 250.
6 VENTURI, Thaís. Idem. p. 254 e ss.
7 Curso de Processo Civil. 6. ed. SP: RT, 2021. p. 29.
8 Curso de Processo Civil. passim.
9 Instituto do Disgorgement. Cf. ROSENVALD, Nelson. https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/334280/o-disgorgement-nas-relacoes-contratuais-pelas-lentes-do-common-law. Acesso em 08 de maio de 2023.
10 WATANABE, Kazuo. Acesso a ordem jurídica justa. BH: Del Rey, 2019.
11 Art. 5º PL 1641/2021
12 Acórdão 1.842/2022 – Plenário, Rel. Min. Antonio Anastasia, j. 10/08/2022.
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*Gisele Fernandes Góes é Doutora (PUC-SP), Mestra (UFPA) e Professora de Direito Processual Civil (UFPA). Procuradora Regional do Trabalho 8ª Região.