Na terça-feira, dia 20/6/2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará o recurso de Regina Merlino Dias de Almeida e Angela Mendes de Almeida, que, na condição de irmã e companheira do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, pedem reparação por danos morais contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsável por comandar os atos de tortura que levaram à morte de Merlino durante a ditadura militar.
Este caso coloca no centro da discussão o papel da responsabilidade civil na garantia do direito à verdade sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas no período da ditadura. A responsabilização criminal, já dificultada pela decisão do STF de 2010 de que atos de tortura estariam incluídos entre os beneficiados pela lei de anistia1, torna-se impossível com a morte dos torturadores. Já a ação de responsabilidade civil persiste contra o espólio, quando o réu falece durante o processo. Ustra morreu aos 83 anos, em 2015, sem ter sido judicialmente responsabilizado pela morte de Merlino. A ação que o STJ julgará na terça-feira 20.06 decidirá, portanto, de modo definitivo, sobre a possibilidade de imputar a Ustra seus atos e com isso impedir que a história de Merlino seja contada sem nunca termos a condenação judicial de quem o torturou e matou.
Merlino desde os 17 anos de idade trabalhou com jornalismo. Foi preso na casa da sua mãe em Santos e levado ao DOI-CODI de São Paulo, onde de acordo com testemunhas foi submetido a cerca de 24 horas de tortura, e Ustra esteve presente. Muito machucado, com feridas graves nas pernas que gangrenaram, Merlino foi privado de cuidados médicos, até ser retirado do DOI-CODI desfalecido, e ser provavelmente conduzido ao Hospital do Exército. Ainda segundo testemunhas, funcionários do hospital telefonaram para Ustra, pedindo o contato de familiares que pudessem autorizar a amputação de suas pernas, mas decidiu-se por deixá-lo morrer. Documentos da ditadura reproduziram uma versão falsa sobre a causa da morte, de que esta teria decorrido de atropelamento. Merlino morreu aos 23 anos de idade em julho de 1971. Ao saber da morte, familiares dirigiram-se ao IML, onde foram informados de que o corpo de Merlino não estaria no local. Foi só graças a seu cunhado, que era delegado de polícia e conseguiu ingressar no local e localizar o corpo, que se evitou que Merlino se tornasse mais um desaparecido político.2
Diante de requerimento feito pela família, em 1996, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte de Merlino.3 O relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, registra em seu capítulo sobre autoria que Ustra comandou o DOI-CODI de São Paulo entre setembro de 1970 e janeiro de 1974 - portanto estava no comando do DOI-CODI quando Merlino foi submetido à tortura que provocou sua morte -, e que nesse período aconteceram ao menos 45 mortes e desaparecimentos forçados por ação de agentes ligados a esse órgão.4 No trecho em que trata da morte de Merlino em seu volume 3, o relatório da CNV apresenta os testemunhos de Leane de Almeida e Eleonora Menicucci, que, torturadas no mesmo dia, confirmam que Ustra estava presente na sessão de tortura de Merlino. Apresenta ainda o testemunho de Ivan Seixas, que estava preso ao lado de onde Merlino foi torturado, e viu Ustra comandar a retirada de Merlino da sala e a limpeza do local, bem como o testemunho de Otacílio Cecchini, que viu um militar informar sobre o telefonema do hospital dirigido a Ustra, a respeito da necessidade de autorização para amputação. Ainda, transcreve o depoimento de Joel Rufino dos Santos, segundo o qual um torturador lhe contou que, depois da ligação do Hospital do Exército, Ustra fez uma votação entre os agentes do DOI-CODI "E venceu a ideia de deixar morrer".5
Em busca do reconhecimento em âmbito judicial da responsabilidade de Ustra, as familiares de Merlino moveram primeiro uma ação declaratória, que foi extinta pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em 2008, sob a justificativa de inadequação do meio processual.6 Outra ação declaratória contra Ustra - da família Teles - foi depois julgada procedente pelo mesmo TJSP, em decisão confirmada pelo STJ.7
Diante da extinção da ação declaratória pelo TJSP, as familiares de Merlino propuseram a ação de reparação por danos morais. Em 2012, a ação foi julgada procedente em primeira instância. De acordo com a sentença, "a prova oral deu integral respaldo ao relato feito constante da inicial", em especial no que diz respeito ao comando e participação de Ustra na tortura e à decisão de não amputação diante do questionamento proveniente do hospital.
No entanto, em julgamento de 2018, o TJSP decidiu que o pedido de indenização das vítimas estaria prescrito8. A decisão se baseia, entre outros fundamentos, no argumento de que ao caso seria aplicável o prazo prescricional de 20 anos previsto na lei civil vigente à época dos fatos, cujo termo inicial seria a promulgação dos Atos e Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), e que a imprescritibilidade prevista no texto constitucional seria aplicável apenas aos crimes de racismo e à ação de grupos armados civis ou militares.
O objeto central do recurso que será julgado pelo STJ, portanto, é a prescrição de ações de responsabilidade civil relativas a crimes praticados por agentes da ditadura, tema já enfrentado diversas vezes pela Corte. Desde 2009, o STJ tem decidido de forma reiterada pela imprescritibilidade das ações civis que visam reparar violações a direitos humanos e fundamentais da pessoa humana.
Naquele ano, em sede de Embargos de Divergência destinados a pacificar a questão, a Primeira Seção decidiu pela imprescritibilidade da pretensão de reparação por danos morais e materiais. Nas palavras da relatora, Ministra Eliana Calmon, "reconhecer como imprescritível o pedido de indenização por danos, sejam morais ou materiais, decorrentes dos atos de tortura arbitrariamente ministrados por agentes do regime ditatorial brasiliero, é uma das formas de dar efetividade à missão de um Estado Democrático de Direito, assegurando proteção e, sobretudo, reparação à dignidade do ser humano".9
A questão já foi tratada também pela Segunda Seção do STJ, especificamente pela 3a. Turma, na decisão do Resp n. 1434498/2014, a respeito do caso da família Teles. Embora naquele caso se tratasse de ação meramente declaratória de responsabilidade civil, e não de ação condenatória como a que será decidida pela Quarta Turma na próxima semana, o acórdão consignou expressamente adesão à jurisprudência fixada pela Primeira Seção: "Conforme a jurisprudência do STJ, mesmo as pretensões reparatórias por violações a direitos humanos, como as decorrentes de tortura, não se revelam prescritíveis. Com maior razão, é imprescritível a pretensão meramente declaratória nesses casos".
Nos anos seguintes, o STJ manteve este entendimento, o qual já era, portanto, predominante à época em que o TJSP julgou pela prescrição da pretensão indenizatória de Regina e Angela10.
Em 2021, o tema foi consolidado com a edição da Súmula 647: “são imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar”. Dos precedentes que amparam a Súmula, especialmente dos Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 845.228-RJ/201011, é possível extrair os seguintes fundamentos jurídicos justificadores da imprescribilidade: i) a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, o que encontra amparo no art. 8, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; ii) a morte e a tortura são atentados à dignididade humana, de modo que a proteção desse valor pela Constituição deve perdurar enquanto subsistir a República Federativa; iii) a Lei 9.140/95 não estabeleceu prazo prescricional para propositura de ações indenizatórias relacionadas às mortes e aos desparecimentos forçados de pessoas que participaram ou foram acusadas de participar de atividades políticas durante o regime militar.
O teor da Súmula 647 encontra respaldo na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) - a cuja jurisdição o Brasil se submete desde 1998. Há mais de 20 anos, a Corte tem o entendimento de que os Estados têm a obrigação internacional de investigar, instaurar processos de responsabilização e, se for o caso, punir violações graves de direitos humanos, e que prazos prescricionais e leis de anistia não podem servir de impedimento para que isso aconteça12. No caso do Brasil, tal entendimento deu base para as sentenças da CorteIDH nos casos Gomes Lund e outros (2010)13 e Vladmir Herzog (2018)14. No caso Órdenes Guerras vs. Chile (2018)15, a Corte IDH afirmou explicitamente que a imprescritibilidade, já reconhecida diversas vezes em sua jurisprudência com referência a processos criminais, se aplica também às ações civis de reparação.
Os fundamentos da decisão do TJSP estão, portanto, à margem da jurisprudência da CorteIDH e da jurisprudência sumulada do STJ sobre a matéria.
O julgamento do recurso contra esta decisão do TJ paulista é uma oportunidade de o STJ reconhecer - mais uma vez - o comando das práticas de tortura por Ustra e reafirmar a tese da imprescritibilidade da responsabilização civil pela prática de tortura por agentes de Estado.
A jurisprudência dominante do STJ é resultado de uma soma de julgados históricos sobre responsabilidade estatal, que, com sua firmeza, são o que há de mais correto e alinhado aos parâmetros de direitos humanos no tratamento dos horrores da ditadura pela justiça brasileira. Essas decisões têm como cerne o debate sobre a natureza do bem jurídico lesado (dignidade da pessoa humana) e a gravidade das violações (tortura enquanto violação extrema aos direitos fundamentais). Tal racional se aplica integralmente à reparação direcionada ao agente estatal que pratica ou comanda atos de tortura, sem qualquer distinção.
Não se pode esquecer também da missão constitucional do STJ, de unificar a interpretação de lei federal. Assim, na linha do que prevê o art. 926 do Código de Processo Civil - “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” -, é injustificável a dissonância do TJSP em relação à jurisprudência do STJ sobre o tema, a qual resultou de um amplo e longevo histórico de julgamentos que certamente estão dentre os mais importantes já proferidos em toda a história da Corte Superior.
Em pleno 2023, chega a ser uma violação em si a discussão sobre a possibilidade ou não de reparação às vítimas da ditadura militar, pois significa ignorar o direito das vítimas de serem vistas e escutadas pelo sistema de justiça em busca do mínimo de reconhecimento pela sua dor e sofrimento. De fazer prevalecer a verdade, que mesmo após tantos anos continua sendo rediscutida e relativizada. De se reafirmar que a tortura é inaceitável e quem a pratica deve ser responsabilizado. Como é amplamente reconhecido mundo afora, o debate sobre a reparação de vítimas de violência de Estado e de tortura é parte de um processo de transição democrática, e essa pretensão não pode simplesmente perecer.
Nos casos das violações mais graves de direitos humanos, cuja prática e cujo esquecimento são organizados pelo Estado, a aplicação dos prazos ordinários para a propositura de ações judiciais obstaculiza a responsabilização e a reparação e favorece a repetição das violações.
Assim, a escolha pela prescrição é perversa e desconsidera que as vidas de muitas famílias, especialmente de muitas mulheres, foram dedicadas a lutar por respostas. Como lembra a sobrinha de Luiz Eduardo Merlino, Tatiana: "Dizer que a gente esperou 20 anos para entrar com a ação é muito cruel. Foram 47 anos de muita luta. E eu sinto muito minha avó ter morrido sem ter visto justiça"16.
Esperamos que o STJ não repita o erro do TJSP e honre sua jurisprudência e a luta da família Merlino, que também é nossa, por memória, verdade, justiça e reparação de todas as vítimas da violência estatal.
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