Migalhas de Responsabilidade Civil

Responsabilidade civil do médico por falha na documentação

O dever de documentação médica é intrínseco à relação médico/paciente. A ausência de documentação ou sua insuficiência pode levar à facilitação da prova em favor do paciente em um processo de responsabilidade civil do médico, com a consequente condenação do profissional por erro médico.

6/6/2023

O dever de documentação médica. Conteúdo e abrangência

A responsabilidade civil do médico baseia-se na correta execução das medidas diagnósticas e terapêuticas, bem como no dever de informar sobre cada procedimento a ser executado. Paralelamente a esses deveres, observa-se o dever do profissional de manter documentado todo o acompanhamento de seu paciente, documentação essa sobre a qual recai o sigilo profissional, que somente pode ser levantado por ordem judicial ou com o consentimento do paciente.1

Assevera-se que os documentos médicos mais importantes são o atestado médico, o prontuário medico, o relatório médico, o laudo médico e o termo de consentimento livre e esclarecido.2

A obrigação de documentação do médico em relação ao paciente caracteriza-se como uma "obrigação terapêutica natural", ou seja, faz parte do próprio tratamento médico, é intrínseco a ele, até mesmo para possibilitar que o seguimento do tratamento se dê de forma segura.3 Ademais, isto não se aplica apenas a um tratamento ulterior pelo mesmo médico, mas é ainda mais importante no caso da sua continuidade por outro profissional, seja por um sucessor livremente escolhido pelo paciente, seja por um especialista ou por um hospital para o qual o médico encaminhou o paciente.

Visto sob outro prisma, uma documentação insuficiente pode tornar o tratamento subsequente muito mais difícil. Consequentemente, os resultados de raios-X devem ser registrados para poupar o paciente de um segundo ou vários outros exames de raios-X e seus efeitos maléficos; o registro de reações alérgicas que ocorreram a medicamentos que já foram administrados pode salvar vidas; mais ainda, o curso do tratamento deve ser documentado para registrar quais medidas já foram realizadas e quais foram os resultados alcançados. Seria inútil, demorado e perigoso se um profissional prescrevesse ao paciente antibióticos que já haviam sido prescritos sem sucesso pelo tratamento anterior, se fosse feito um exame já feito sem resultado significativo. Apenas a documentação das medidas diagnósticas e terapêuticas tomadas cria o pré-requisito para o tratamento do paciente por um médico que continua o processo de tratamento.4

Esta responsabilidade do médico não corresponde apenas ao dever contratual de quem assume a responsabilidade de zelar pelos interesses de outrem por meio de um contrato (nesse sentido, o arquiteto, o auditor, o advogado, o administrador também possuem esse dever), mas sobretudo porque aqui vigora o princípio da boa fé objetiva, tendo em conta os interesses envolvidos. Naturalmente, um paciente anestesiado não pode acompanhar o curso de uma operação, mas tem um interesse legítimo em saber o que lhe aconteceu. No caso de doenças graves em particular, o paciente também tem uma necessidade legítima e compreensível de obter uma segunda opinião. Para tanto, é necessário que ele tenha todos os dados anteriormente colhidos, anotados em documentos, para que possam ser verificados por outro médico.5

Em relação ao conteúdo da documentação, deve ela abranger anamnese, diagnóstico e terapia e todas as informações relevantes sobre o curso do tratamento. Num caso de cirurgia, por exemplo, isso também inclui os resultados obtidos, os cuidados de enfermagem, a medicação prescrita, o protocolo anestésico, o método da operação, o curso da operação, o cirurgião, a mudança de cirurgião, os incidentes ocorridos, o estado geral pré-operatório, as precauções tomadas pelo paciente para prevenir determinado ferimento, qualquer desvio dos métodos padrão e processos padrão. Por outro lado, medidas de rotina não estão sujeitas à documentação, a menos que surja uma constatação que necessite ser registrada. Nesse sentido, a desinfecção da pele antes de uma injeção é uma medida de rotina que não requer documentação. O fato de a febre ter sido medida rotineiramente durante a internação não requer documentação se a medição permanecer sem alterações. Se, por outro lado, o paciente tiver febre, a temperatura deve ser documentada.6

Além de se anotar as medidas básicas referentes à anamnese, diagnóstico e terapia, devem ser documentadas todas as características especiais, anormalidades, alterações, desvios ou irregularidades que surjam no decorrer do processo. Ao contrário, questões médicas padrão, cumprimento de rotina e ausência de eventos especiais não precisam ser registradas, pois seria um formalismo desnecessário, irracional e demorado para um médico ter que copiar novamente as diretrizes ou recomendações existentes para cada operação.7

Nesse sentido, o §1º do art. 87 do CEM prescreve que:

“O prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem cronológica com data, hora, assinatura e número do registro do médico no Conselho Regional de Medicina.”

O conteúdo e a abrangência da documentação médica geralmente são moldados pela prática médica. Ao se deparar com um caso concreto, juízes e tribunais devem, se necessário, obter um parecer médico sobre a questão de saber se os fatos individuais precisam ser documentados do ponto de vista médico. Na prática médica, por exemplo, geralmente é documentado apenas um resultado de exame positivo, enquanto um resultado negativo não é. A este respeito, no entanto, pode ser que seja possível um padrão médico diferente em relação a um determinado caso concreto. Por exemplo, por razões médicas, a pressão arterial da gestante deve ser documentada durante toda a fase de parto, mesmo que a medição resulte em um valor normal.8

No que diz respeito à obrigação de documentação, avaliar quais informações, dados e resultados são importantes para registro médico, apenas o profissional poderá dizê-lo. No entanto, essa necessidade vem sendo paulatinamente moldada pelos operadores do Direito, na medida em que a documentação tem o objetivo de preservar provas. Trata-se de uma questão jurídica fundamental, pois baseando-se nas provas é que juízes e tribunais atribuirão ao médico eventual responsabilidade pelos danos causados ao paciente.

Necessidade da documentação para fins de preservação da prova

A violação da obrigação de documentação não resulta automaticamente em condenação do médico. Na verdade, o que ocorre é que a omissão da documentação ou uma documentação insuficiente facilita a prova ao paciente no respectivo processo de responsabilidade médica. Se uma medida que requer documentação não foi registrada, há uma presunção em favor do paciente de que essa medida não ocorreu.

A falta de documentação tem um forte impacto na prova a favor do paciente, que pode demonstrar, assim, a ocorrência de um erro de tratamento. Ao contrário, a falta de documentação não tem influência sobre o nexo causal a ser comprovado pelo paciente (a menos que o erro de tratamento que se suspeite devido à falta de documentação seja o chamado erro grosseiro de tratamento).

No entanto, a presunção de que a medida não documentada não foi tomada pode ser refutada por parte do profissional. Nesse sentido, há inversão do ônus da prova. Se o médico puder provar que a medida não documentada foi realizada de outra forma (por exemplo, depoimento de testemunha ou qualquer outro meio de prova), a falta de documentação é irrelevante.9

Foi nesse sentido que a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve a condenação de um médico por negligência no preenchimento de prontuário de gestante. O caso de deu numa ação indenizatória, cujas instâncias ordinárias condenaram o médico e a clínica pelo fato de o obstetra não ter feito as anotações necessárias das intercorrências e procedimentos adotados na folha de evolução do parto. Tais registros eram de suma importância para monitorar as condições da mãe e do feto. Segundo o relator, Ministro Villas Bôas Cueva, a falta de anotação adequada no prontuário da paciente levou a gestante a sofrer problemas no parto que resultaram em sequelas neurológicas graves e irreversíveis no recém-nascido.

Nas palavras do Ministro:

“o cuidado e o acompanhamento adequados à gestante – deveres legais do médico – poderiam ter conduzido a resultado diverso, ou, ainda que o dano tivesse de acontecer de qualquer maneira, pelo menos demonstrariam que todas as providências possíveis na medicina foram tomadas – fatos que, registrados no prontuário, teriam auxiliado o profissional em sua defesa.”10

Conclusões

A documentação médica constitui um importante dever deste profissional no acompanhamento de seus pacientes. Trata-se de dever inerente ao tratamento médico, que se consubstancia em registrar todos os aspectos importantes relacionados ao tratamento. Sua omissão ou deficiência pode constituir importante fator de responsabilidade civil médica, na medida em que facilita a prova do erro médico em favor do paciente, que será indenizado caso o médico não consiga provar, por meio de outros meios de prova, a correta execução de sua conduta.

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1 Arts. 77 e 89 Código de Ética Médica

2 SARAIVA, Nayara Guimarães. Conheça os 5 documentos médicos mais importantes! In JusBrasil, acesso em 13/05/2022.

3 DEUTSCH, Erwin; SPICKHOFF, Andreas. Arztrecht, Arzneinmittelrecht, Medizinprodukterecht und Transfusionsrecht. 7ª edição. Frankfurt: Springer. 214, p. 578, 3ª edição. München: C.H. Beck, 2002, pp.485-486.

4 LAUFS, Adolf; UHLENBRUCK, Wilhem. Handbuch des Arztrechts. 3ª

5 Folgen einer Dokumentaionspflichtverletzung, acesso em 12/05/2023.

6 LAUFS, Adolf. Handbuch, cit, pp. 483-484.

7 DEUTSCH, Erwin. Arztrecht, cit., pp. 580/581.

8 idem ibidem

9 Folgen einer Dokumentaionspflichtverletzung, acesso em 12/05/2023.

 

10 Disponível aqui, acesso em: 12/05/2023.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.