Migalhas de Responsabilidade Civil

Autonomia compensatória do tempo e responsabilidade civil: Entre a teoria e o Judiciário

Segundo o autor, a autonomia (e cumulação) compensatória da perda indevida de tempo ainda esteja longe do STJ, a Justiça Ordinária do Brasil não está "fechando os olhos" à vulnerabilidade temporal.

16/3/2023

Enquanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) discute a (relevante) possiblidade de compensação in re ipsa da perda indevida de tempo no Recurso Especial Repetitivo n. 1.962.275/GO, a teoria e os(as) julgadores(as) das instâncias ordinárias debatem há tempos a autonomia e a cumulação da compensação por lesão ou "dano" temporal.

Obviamente, não é fato imputável ao STJ, pois este depende de Recursos Especiais manejados com observância dos requisitos constitucionais. Nesse contexto, a ministra Nancy Andrigui alertou em voto sobre o desvio produtivo que o “dano temporal” ainda não alcançou aquele Tribunal: “(...) não é objeto do presente recurso especial o exame da existência, no direito brasileiro, do chamado dano temporal, tampouco a sua possível indenização através do regime da responsabilidade civil prevista no Código Civil” (STJ, voto REsp n. 2.017.194/SP, j. 25/10/2022, g.n.).

Na teoria, sinteticamente1, a proteção do tempo nasce como "novo" substrato fático dos danos morais em sentido amplo (extrapatrimoniais) em especial por André Gustavo Corrêa de Andrade2 (2005). Com efeito, a proteção temporal tem sua real expansão a partir dos estudos de Marcos Dessaune (2011), na popular "teoria do desvio produtivo". Contudo, na ocasião, Dessaune apresentou um óbice à emancipação e autonomia compensatória da tutela temporal: "(...) o ‘tempo’ (...) merece tratamento jurídico especial que o destaque, fora da mencionada cláusula geral de tutela da personalidade – a qual provavelmente aprisionaria o desvio produtivo a um mero ‘novo fato gerador de dano moral’(...)".3

Desse modo, no avançar jurisprudencial da tutela do tempo pela responsabilidade civil, tal proteção surgiu como "ampliação dos casos de dano moral" e um "filtro relativo aos meros aborrecimentos", os quais muitas vezes impendem justas compensações morais – afirmou Flávio Tartuce4.

Nesse cenário – com olhar protetivo aos mais frágeis e muito além da famigerada "guerra de las etiquetas" –, é possível avançar no abrandamento da vulnerabilidade temporal5 via responsabilidade civil, especialmente ao visualizar a conduta do fornecedor de impor a perda indevida do tempo como um fato transvestido de antijuridicidade – ou seja, de um "pressuposto do dever de reparar", uma palavra hábil para "adjetivar a conduta do causador do dano", como registrou Marcos Catalan6.

Para sanear a questão do "aprisionamento" da lesão temporal como "mero novo fato gerador de dano moral", por volta de 20137-8 foi iniciado o debate sobre a autonomia da compensação da lesão temporal, sob o nome "dano temporal" para – aproveitando o “know-how” do STJ acerca da autonomia da compensação das lesões ou "danos" estéticos –, conferir maior visibilidade à proteção do tempo e, desse modo, alcançar maiores efeitos pedagógicos no mercado de consumo.

Apesar da "timidez" da proposta interpretativa sobre a autonomia compensatória do tempo, o Poder Judiciário de 1º grau passou a dar, paulatinamente, feedbacks à tese.

Nesse campo, o Juiz Fernando Antônio de Lima, em 28.8.2014, tangenciou a autonomia da compensação da lesão temporal: "Isso traduz hipótese de reparação, autônoma, se a parte-autora assim o desejasse, ou por danos morais, nos termos pleiteados na inicial em razão da perda de tempo produtivo ou útil direito (...)" (Jales-SP, Processo n. 0005804-43.2014.8.26.0297). Ou seja, o juiz paulista compreendeu que o pedido voltado à compensação autônoma poderia ser analisado, acaso fosse formulado.

Em 17.12.2014, a Defensoria Pública do Amazonas (DPAM) propôs ação em prol de consumidor e, pela técnica da cumulação de pedidos, pleiteou as compensações por lesões morais e temporais. Em 19.8.2019, o Juiz Paulo Benevides dos Santos julgou procedentes os pedidos cumulados, condenando o fornecedor bancário ao pagamento de 20 (vinte) salários mínimos por danos temporais e 10 (dez) salários mínimos referentes aos danos morais. Pontuou ainda o juiz: “Aplica-se a ambos a súmula 362 do STJ (...); estende-se o raciocínio para os danos temporais, não obstante ter-se reconhecido sua autonomia em relação aos danos morais, pelo fato de se tratar de dano de natureza extrapatrimonial” (Maués-AM, Processo n. 0001622-07.2014.8.04.5800).

Por outro lado – antes mesmo da condenação supracitada cumulando o dano moral "em sentido estrito" (da dor psicológica) com o "dano" temporal –, o juiz Rafael Cró homologou acordo nos autos com a mesma referida cumulação. Ao sentenciar, ponderou: "O acordo celebrado preenche todas as formalidades legais. Por oportuno, ressalta-se a posição deste Magistrado no sentido de que além de ser possível a reparação pelos danos moral e material, há nítida autonomia na reparação do dano temporal" (Maués-AM, Processo n. 0000265-21.2016.8.04.5800, j. 11.8.2016).

Em sentença de 28.9.2020, a Juíza Maria Eunice Torres do Nascimento – por pedido expresso e cumulado da Defensoria Pública do Amazonas (DPAM) em prol de consumidor de 3.9.2018 –, condenou expressamente o fornecedor à compensação de danos morais (em dez mil Reais) e de danos temporais (em cinco mil Reais). A juíza, ao lado dos elementos geradores do clássico conceito de "dano moral" (sentido estrito), ressaltou "a perda desarrazoada do tempo útil do consumidor configurador de dano temporal" (Manaus-AM, Processo n. 0640771-53.2018.8.04.0001).

Desse modo, o Judiciário brasileiro vem alertando sua posição ampliativa da proteção do tempo do consumidor. Mas não parou por aí...

O juiz Fernando da Fonseca Gajardoni tem a lavra do (possivelmente) 1º acórdão de turmas recursais a reconhecer a compensação autônoma dos “danos” temporais. Assim pronunciou-se: “Há no caso, verdadeiro dano temporal. (...) A perda do tempo, por si só, não enseja a violação à psiquê humana. Todavia, o seu desperdício em vão, por causa de outrem, deve ser protegido pelo ordenamento jurídico”. (1ª Turma Recursal Cível do Colégio Recursal – Franca/SP – Recurso Inominado Cível n. 1000847-46.2020.8.26.0434, j. 30.11.2020).

Durante o período exposto, a teoria sobre a proteção do tempo avançou. Marcos Dessaune9, por exemplo, publicou duas edições de seu clássico livro aproximando o "dano por desvio produtivo" do "dano existencial"10, expandindo ainda o debate para o Direito do Trabalho. Por outro lado, a teoria produzida na UERJ, em especial por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho11, alertou sobre a problemática do termo "dano" temporal lançando sua opção técnica por “lesão temporal”. Noutro passo, os estudos da UFSC, por Daniel Deggau Bastos12 e Rafael Peteffi da Silva13, apontam o cuidado teórico para não se criar uma nova (e desnecessária) categoria no mesmo nível que os danos patrimoniais e extrapatrimoniais. Na UFRGS, destaque especial à Laís Bergstein14, debatendo o "menosprezo planejado". Entre a UFAM e UFSC, Alexandre Morais da Rosa15 e Maia ressaltam que a "opção" por "lesão temporal" ou "dano temporal" depende de escolhas teóricas por um conceito "amplo" ou "restrito" de "danos morais". O STJ, v.g., possui tendência à especificação dos “danos” extrapatrimoniais em “subcategorias” – vide o verbete n. 387 de sua Súmula citando o “dano estético”.

Em tal período, o Poder Legislativo também caminhou. No Amazonas, editou-se o pioneiro "Estatuto do Tempo do Consumidor” (Lei Amazonense n. 5.867, de 29.4.2022; autor: dep. estadual João Luiz). A lei amazonense reavivou os debates legislativos e inspirou a Câmara dos Deputados (PL n. 1.954, de 8.7.2022; autor: dep. federal Carlos Veras). No Senado Federal há ainda o PLS n. 2.856, de 24.11.2022 (autor: Sen. Fabiano Contarato). O PLS citado recebeu a atenção de Alexandre Freitas Câmara (TJRJ), inclusive abarcando críticas16 à terminologia "desvio produtivo".

Recentemente, em meio à "quentura" do debate, a solução do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) se voltou mais à substância constitucional-protetiva do consumidor (art. 5º, XXXII e art. 170, V) que à forma. Nos dizeres do desembargador Paulo Lima – relator do 1º acórdão de Tribunal catalogado a tutelar autônoma e cumulativamente as compensações por danos morais e temporais –, o importante está em compensar, de algum modo, a lesão temporal sofrida (TJAM, Ap. Cível n. 0679992-38.2021.8.04.0001, j. 9.2.2023).

Nessa senda, inobstante a autonomia (e cumulação) compensatória da perda indevida de tempo ainda esteja longe do STJ, a Justiça Ordinária do Brasil não está "fechando os olhos" à vulnerabilidade temporal. Por outro lado, no momento, é mais urgente à responsabilidade civil e ao direito do consumidor a observação de como o Tribunal da Cidadania cumprirá, como intérprete da legislação federal, o mandamento constitucional de proteção do consumidor (inclusive através da dimensão temporal da vida) ao fixar tese no Recurso Especial Repetitivo n. 1.962.275/GO – atenção!

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1 São muitas as autoras e os autores atentos à evolução do debate sobre o tempo humano, alguns destaques, dentre outros: (1) BORGES, Gustavo. VOGEL, Joana Just. O dano temporal e sua autonomia na Responsabilidade Civil. Belo Horizonte: D’Plácido, 2021; (2) FARIAS, Cristiano de Farias. BRAGA NETTO, Felipe. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. 7ª ed. Salvador: Juspodivm, 2022; (3) GAGLIANO, Pablo Stolze. Responsabilidade Civil pela perda do tempo. Revista Seleções Jurídicas, Rio de Janeiro, COAD, p. 29-32, Mai. 2013; (4) BRAGA NETTO, Felipe. Manual de Direito do Consumidor à luz da jurisprudência do STJ. Salvador: Juspodivm, 2021; (5) GUGLINSKI, Vitor Vilela. O Dano temporal e sua reparabilidade: aspectos doutrinários e visão dos tribunais. Revista de Direito do Consumidor, nº 99, São Paulo: RT, Mai.-Jun. 2015; (6) BORGES, Gustavo. MAIA, Maurilio Casas. (Org.) Dano Temporal: o tempo como valor jurídico. 2ª ed. São Paulo: Tirant, 2019; (7) CORRÊA, Bruna Gomide. Dano ao tempo do consumidor: autonomia do dano temporal e o direito fundamental de defesa do consumidor. Londrina(PR): Thoth, 2022; (8) AMORIM, Bruno de Almeida Lewer. Responsabilidade Civil pelo tempo perdido. Belo Horizonte: Plácido, 2018; entre outros.

2 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano moral em caso de descumprimento de obrigação contratual. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 8, n. 29, 2005, p. 134-148

3 DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Ed. RT, 2011, p 133-135, g.n..

4 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. V. 2. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 423.

5 Sobre vulnerabilidade temporal: MAIA, Maurilio Casas. Vulnerabilidade Temporal e Estatuto do Tempo do Consumidor (ETC): Comentário à Lei Amazonense 5.867/2022 - um subsistema protetivo em diálogo das fontes. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 142, p. 307-326, Jul.-Ago. 2022.

6 CATALAN, Marcos. A morte da culpa na responsabilidade contratual. 2ª ed. Idaiatuba-SP: Foco, 2019, p. 41.

MAIA, Maurilio Casas. Dano Temporal, desvio produtivo e perda do tempo útil e/ou livre do consumidor: Dano cronológico indenizável ou mero dissabor não ressarcível? Revista Seleções Jurídicas, Rio de Janeiro, Mai. 2013p. 26 e 28.

8 MAIA, Maurilio Casas. O dano temporal indenizável e o mero dissabor cronológico no mercado de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 92, p. 161-176, Mar.-Abr. 2014.

9 DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2ª ed. Vitória (ES): Edição Especial do autor, 2017; ______. Teoria ampliada do desvio produtivo do consumidor, do cidadão-usuário e do empregado. 3ª ed. Vitória (ES): Edição do Autor, 2022.

10 Sobre o dano existencial: SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade Civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

11 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Rumos contemporâneos do Direito Civil: Estudos em perspectiva civil-constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 223.

12 BASTOS, Daniel Deggau. Responsabilidade civil pela perda do tempo: o dano ressarcível e as categorias jurídicas indenizatórias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

13 BASTOS, Daniel Deggau. Silva, Rafael Peteffi da. A busca pela autonomia do dano pela perda do tempo e a crítica ao compensation for injury as such. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 9, n. 2, 2020.

14 BERGSTEIN, Laís. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado: o tratamento jurídico do tempo perdido e a superação de suas causas. São Paulo: RT, 2019.

15 ROSA, Alexandre Morais da. MAIA, Maurilio Casas. Dano Temporal na Sociedade do Cansaço: uma categoria lesiva autônoma? In: BORGES, Gustavo. MAIA, Maurilio Casas. (Org.) Dano Temporal: o tempo como valor jurídico. 2ª ed. São Paulo: Tirant, 2019, p. 27-46.

16 CÂMARA, Alexandre Freitas. Uma crítica ao PL 2856/2002: o tempo como bem jurídico passível de lesão.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.