Migalhas de Responsabilidade Civil

A importância do nexo causal nas ações de reparação dos danos concorrenciais

Trata-se aqui da velha conhecida ação indenizatória, respaldada no instituto da responsabilidade civil, estrutural e funcionalmente disciplinado pelo Código Civil, que assegura o exercício da pretensão reparatória em qualquer hipótese de dano indenizável.

2/3/2023

Com a aprovação da lei 14.470/2022, que alterou a lei 12.529/2011 (a Lei de Defesa da Concorrência), objetivou-se o fortalecimento do arcabouço jurídico para propositura de ações de reparação por danos concorrenciais pelas vítimas de condutas praticadas por agentes econômicos que ofendem a livre concorrência.

Trata-se da velha conhecida ação indenizatória, respaldada no instituto da responsabilidade civil, estrutural e funcionalmente disciplinado pelo Código Civil, que assegura o exercício da pretensão reparatória em qualquer hipótese de dano indenizável.

No âmbito das infrações econômicas, a ação indenizatória ganhou alguns contornos próprios, especialmente a partir da recente alteração da Lei de Defesa da Concorrência, que adotou sistemática incomum na nossa tradição jurídica, diante da possibilidade de dobra no valor da indenização em algumas hipóteses (conforme o §1º adicionado ao artigo 47 da Lei). Tal possibilidade, agora expressamente prevista em nosso ordenamento, constitui exceção ao princípio da reparação integral, este que funciona como piso e teto no valor da indenização, ao determinar a reparação na medida da verificação dos prejuízos, nem menos, nem mais.

Para o melhor aproveitamento das potencialidades da ação indenizatória, inclusive para sua efetiva contribuição, juntamente com as respostas administrativa e criminal também existentes para o aprimoramento do ambiente concorrencial brasileiro, é fundamental que os jurisdicionados bem conheçam o ferramental relacionado às ações de reparação (em geral), e também bem compreendam as questões que exsurgem na seara concorrencial.

Dentre elas, uma que se destaca é a dificuldade de distribuição das responsabilidades, tanto de quem quanto para quem.  Isto é, uma vez conhecidos os fatos violadores da concorrência e sua autoria, há ainda o desafiador trabalho de calcular os prejuízos decorrentes da infração, a proporção devida a cada vítima, e quem deve responder por cada fração, uma vez que os danos concorrenciais, por sua própria natureza, são espraiados, sempre impactam a coletividade – não à toa esta é expressamente referida no artigo 1º da Lei de Defesa da Concorrência como a titular dos bens jurídicos protegidos pela norma concorrencial.

Diante da perspectiva coletiva, é possível compreender mais facilmente que agentes econômicos que atuam em cadeia de distribuição podem ser vítimas de outro(s) agente(s), mas ao mesmo tempo repassar os prejuízos sofridos nas relações de mercado, tornando-se, a um só tempo, vítimas e autores de danos. Em tais situações, o intérprete deverá analisar o caso sob a perspectiva do nexo de causalidade entre os danos sofridos e a conduta do(s) agente(s) econômico(s).

Com efeito, em sede de reparação de danos, inclusive os concorrenciais, a apuração do nexo de causalidade importa para dois desafios principais: o primeiro relacionado à dificuldade da prova da existência de vínculo entre a conduta imputável (com ou sem culpa, conforme a responsabilidade seja subjetiva ou objetiva) e o dano sofrido e, notadamente, a suficiência do vínculo para fins de imputação do dever de indenizar. 

Lembre-se que em sede de infrações econômicas, se o conhecimento da conduta ilícita não é levado a público, por vezes eventuais partes prejudicadas sequer terão ciência do vínculo entre eventual lesão econômica sofrida e o ato ilícito que lhe deu origem, tampouco terão acesso aos meios de comprovação para fins de obtenção de posterior reparação. Mas, apesar das (enormes) dificuldades com a prova do vínculo entre o dano e o ilícito, ela deve ocorrer, pois a responsabilidade civil tem seus próprios pressupostos, que devem ser observados.

O segundo desafio tem relação com a definição da proporção exata da contribuição da conduta lesiva para o resultado danoso, afinal qualquer prejuízo econômico pode ser causado por múltiplas variáveis, havendo prejuízos que podem ser provocados por fatores externos à ação do agente infrator, mas que se somam à sua conduta, dando novos contornos aos danos, mas não necessariamente imputáveis ao agente.  Esta questão fica mais delicada em situações de crises sucessivas como as que temos vivido, como a de origem sanitária iniciada em 2020, a política que começou até antes da sanitária, e, mais recentemente, o impacto da guerra da Ucrânia em todas as economias conectadas em cadeia global.

As questões que se relacionam ao tema do adequado sopesamento das causas, e, mais especificamente, ao tema do eventual rompimento do nexo de causalidade, exigem dos intérpretes especial atenção ao que seja causa juridicamente relevante para imputação da responsabilidade civil a qualquer agente infrator. Afinal, o autor do dano deve sempre responder na medida de sua efetiva participação para o resultado, seja nas hipóteses em que tem culpa, ou mesmo quando não tem, quando a responsabilização é objetiva e a culpa não é condição para a imputação de responsabilidade.

A vítima de danos concorrenciais pode buscar, em princípio, sua reparação junto a mais de um agente econômico envolvido na produção do resultado danoso – devendo, entretanto, as partes ter cuidado com as inovações legislativas trazidas pela Lei 14.470/2022, que, também de maneira excepcional no ordenamento brasileiro, mudou substancialmente a regra sobre a solidariedade dos agentes (em situações ligadas à assinatura, junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica, de um acordo de leniência ou um termo de compromisso de cessação de prática, conforme o novo §3º incluído no artigo 47 da Lei de Defesa da Concorrência). 

Sem prejuízo das questões atinentes à solidariedade, especialmente nas relações em cadeia vertical, o elemento causal deve ser objeto de atenção tanto das vítimas, para que possam obter o ressarcimento pelos danos sofridos, quanto do agente econômico que se insere na cadeia de distribuição, pois este pode ser, como mencionado, vítima e também causador de danos a terceiros, ao repassar adiante os prejuízos sofridos.

É possível cogitar da responsabilização solidária em alguns casos, sendo o agente aí entendido como coautor que pode ser acionado pela(s) vítima(s).  Mas em outros casos, ele será mais uma vítima, que se soma a outras na coletividade, considerando os possíveis impactos nos seus próprios resultados econômicos. 

Daí a importância dos estudos sobre a causalidade, sobre a qual várias teorias já foram desenvolvidas pela doutrina, em esforço contínuo de dar solução aos problemas de distribuição de responsabilidades e quantificação do valor indenizatório.  Nessa temática, de acordo com a previsão legal contida no artigo 403 do Código Civil, confirma-se a adoção, pelo legislador brasileiro, da teoria da causa direta e imediata, a qual, temperada pela teoria da causalidade necessária, permite apontar mais de um responsável em situações jurídicas complexas, tais como as relacionadas aos danos concorrenciais.

Em um artigo desenvolvido para a Revista IBERC, editada pelo Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil, busquei apresentá-las e apontar, seguindo a contribuição de diversos autores que me precederam, como as teorias podem funcionar para a atribuição, ou, no sentido inverso, para o afastamento do dever de indenizar por um agente econômico inserido em relações de cadeia com outros agentes infratores. O nexo causal acaba sendo elemento chave para dar tratamento adequado a muitas situações, dentre as quais, aquelas conhecidas como de pass-on defense, ou defesa por efeito repasse no curso das cadeias verticais de produção, que vem à tona quando um agente econômico que sofre prejuízos em suas operações em decorrência de conduta lesiva de outro agente eventualmente os repassa adiante ao longo da cadeia produtiva, integral ou parcialmente.  

No julgamento de condutas de qualquer agente no mercado, inclusive eventuais repasses de prejuízos, a racionalidade econômica impõe reconhecer oscilações que podem ocorrer nos preços e nas práticas comerciais por múltiplas razões, e, justamente há que se identificar razões e práticas legítimas, considerando que nosso sistema jurídico é orientado pela livre iniciativa e operante pela lógica de mercado.  Mas isto não equivale a reconhecer que quaisquer oscilações possam ser justificáveis, fazendo com que, em alguns casos, o repasse seja antijurídico e interpretado de diferentes maneiras, conforme a perspectiva do sujeito cujos interesses se busca tutelar.

Assim, em sede de danos concorrenciais, além do cuidado com as inovações trazidas pela Lei 14.470/2022, é preciso, antes, atentar à normativa geral trazida pela Código Civil referente ao instituto da responsabilidade civil.  Ao estabelecer um sistema jurídico que aponta o nexo causal como elemento que opera de um lado como pressuposto constituinte e quantificador, mas de outro também regulador do dever de reparação, em verdadeira função dúplice, o legislador na prática em algumas situações facilitou a reparação, em outras impôs limite à pretensão reparatória.  Fica o convite para a abordagem mais aprofundada sobre o tema na primeira edição de 2023 da Revista IBERC.  Boa leitura!

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.