Migalhas de Responsabilidade Civil

Lista bancária proibida: o abuso de direito na restrição ao crédito como punição

Igor de Lucena Mascarenhas escreve sobre as chamadas listas bancárias proibidas, ou seja, listas em que consumidores que já litigaram contra bancos são incluídos e passam a sofrer com restrições de crédito ou mesmo redução de limites de cartão de crédito como uma forma de penalização pelo exercício legítimo do direito de ação.

9/2/2023

O artigo se propõe a debater a existência da lista bancária proibida como uma forma de retaliação pelo exercício do direito de ação dos consumidores que acionam os bancos e, em razão das ações favoráveis, são penalizados com restrição de crédito.

Ações contra bancos e financeiras não são incomuns. De acordo com dados consolidados no CNJ e também pelas próprias cortes Estaduais1, ao lado de empresas de transporte aéreo, concessionárias e telefonia celular, os bancos estão no ranking de maiores acionados por consumidores no Judiciário.

Se, como já abordado na Coluna do IBERC2, o excesso de processos é, em parte, uma falha no controle regulatório, na medida em que 40% das ações decorrem de relação de consumo entre consumidores e bancos/telefonia que nem sequer precisariam chegar ao Judiciário, a litigância excessiva apenas prejudica o próprio desenvolvimento das atividades jurisdicionais. Ocorre que, é isso um dado concreto, os processos chegam ao Judiciário. Consumidores que entendem que foram lesados buscam o Judiciário para defesa dos seus interesses.

O presente texto se propõe a analisar o pós-processo.

Consideremos o seguinte caso hipotético: João litiga judicialmente em face de Banco X e a ação é julgada procedente com o reconhecimento de que a conduta do Banco foi ilícita. Dois meses após o pagamento da indenização arbitrada, João é cientificado pelo Banco que seu limite do cartão de crédito será, no prazo de 60 dias, reduzido em 40% em decorrência de análise interna. Inconformado com a redução de limite, o consumidor questiona a razão da redução, porém não recebe nenhuma resposta esclarecedora.

Em não raras situações, os bancos têm promovido retaliações, sob o argumento de exercício regular de direito, em prejuízo daqueles que acionam o Judiciário. Nesse sentido, consumidores que já possuem um histórico de litigância contra bancos são notificados de uma redução de limites no cartão de crédito ou acesso ao crédito, por exemplo.

Em um cenário de redução de crédito, mostra-se fundamental verificar os elementos objetivos e subjetivos do caso. São exemplos recorrentes as situações de redução de crédito em desfavor de consumidores com alta pontuação no Serasa Score, sem variação de renda e adimplentes com suas obrigações.

Se, por um lado, é direito subjetivo dos bancos promover uma análise do crédito e, eventualmente, reduzir ou majorar os limites disponíveis, tem-se que as empresas precisam motivar essa redução de crédito justamente para afastar eventual revanchismo pelo exercício do direito de ação dos consumidores.

O fato de a redução de crédito ser unilateral não afasta o dever de motivação e transparência, notadamente por representar uma consolidação do dever de informação. A inversão do ônus da prova e a distribuição dinâmica do ônus da prova exigem que o Banco prove, administrativa ou judicialmente, a razão da redução do limite de crédito, sob pena de presunção de que se trata de uma retaliação em decorrência do ajuizamento, pelo consumidor, de uma ação judicial.

Assim, surge a existência de uma lista proibida bancária, uma espécie de relação de personae non gratae. O consumidor não consegue provar a existência da lista, mas a falta de motivação e uma atuação direcionada em prejuízo, curiosamente, daqueles que já litigaram em face da Instituição bancária apenas reforça a hipótese de que ela existe.

Nesse sentido, a jurisprudência já se manifestou sobre a existência da lista proibitiva3:

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. NEGATIVA DE CONCESSÃO DE FINANCIAMENTO BANCÁRIO EM RAZÃO DO AJUIZAMENTO DE AÇÃO JUDICIAL CONTRA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. DESCABIMENTO. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. QUANTUM MANTIDO. Trata-se de recurso de apelação interposto contra sentença de procedência exarada na ação de indenização por dano moral decorrente da não concessão de crédito em razão do ajuizamento de ação judicial contra instituição bancária. A prática de elaboração e consulta de "lista" com nomes de consumidores que buscaram tutela judicial em face de abusividades que entendiam presentes em contratos bancários são atos flagrantemente ilegais e abusivos. As instituições financeiras negam sua existência, pois cientes da impossibilidade de registro de tais fatos, que atenta, inclusive, contra o direito constitucionalmente assegurado de acesso ao Judiciário, na forma do artigo 5º, XXXV, da CF. Nenhuma lista negativa pode ser criada, fomentada ou consultada se o seu conteúdo for a restrição de crédito a quem ingressou com ação judicial contra empresa integrante do sistema financeiro, por seu caráter limitador de direitos e discriminatório. In casu, logrou a parte autora produzir prova dos fatos constitutivos do seu direito, demonstrando suficientemente os fatos narrados na exordial. As testemunhas ouvidas no feito apontaram que a lista existe e a demandante teve o crédito negado por conta de sua inclusão. Em razão... disso, responde o segundo requerido por ter alimentado o sistema com a informação, que no caso concreto ainda encontrava-se equivocada, já que não ajuizou a parte autora ação revisional, mas demanda declaratória de inexistência de débito. Por sua vez, a responsabilidade do segundo requerido decorre do fato de ter acessado o cadastro e negado crédito à parte demandante. Outrossim, não há que se falar em descabimento de aplicação de pena de multa para fins de dar efetividade ao provimento cominatório dirigido à exclusão do cadastro, que encontra previsão legal no art. 461 do CPC. Sentença de procedência mantida. APELAÇÕES DESPROVIDAS. (Apelação Cível Nº 70050395730, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio José Costa da Silva Tavares, Julgado em 01/10/2015).

DANO MORAL Responsabilidade Civil "Restrição Interna" do banco contra o autor, em razão de débitos em uma conta bancária que não contratou. Informação que, apesar de não acessível a terceiros, limita o acesso do correntista à plenitude dos serviços oferecidos pela Instituição Financeira aos consumidores nas mesmas condições - A existência de restrições internas ou outras espécies de "listas negras", consiste em prática ilegal, uma vez que, pelo art. 43 e seu § 1º da Lei n. 8.078/90, o consumidor tem direito a ter acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes, e os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão - Clandestinidade e abusividade O conhecimento da existência de informações depreciativas, ainda que inverídicas e reservadas, traz ao negativado mais que mero aborrecimento ou dissabor, mas verdadeiro constrangimento e ofensa à honra, por ser considerado mau pagador, sendo desnecessárias maiores provas disso, o que se presume. Fixação. Razoabilidade - Recurso do réu e apelo adesivo desprovidos. (TJ-SP - APL: 03195829820098260000 SP 0319582-98.2009.8.26.0000, Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento: 18/06/2013, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/06/2013)

RECURSO INOMINADO. PEDIDO INDENIZATÓRIO CUMULADO COM EXTINÇÃO DE DÍVIDA. NEGATIVA DE FORNECIMENTO DE SERVIÇO BANCÁRIO EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE RESTRIÇÃO CREDITÓRIA INTERNA, EM “LISTA NEGRA” MANTIDA PELAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS ENVOLVIDAS. SENTENÇA QUE AFASTOU A PRETENSÃO DO CONSUMIDOR. PROVIMENTO DO RECURSO PARA RECONHECER A ILICITUDE DAS RESTRIÇÕES CREDITÓRIAS, COM ARBITRAMENTO DE INDENIZAÇÃO PELOS DANOS MORAIS CONFIGURADOS, CANCELANDO AINDA A DÍVIDA IMPUTADA AO CONSUMIDOR SEM PROVA DA ORIGEM. (TJ-BA 103898220081 BA, Relator: WALTER AMÉRICO CALDAS, 5ª TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E CRIMINAIS, Data de Publicação: 16/07/2010)

RELAÇÃO DE CONSUMO - INDENIZATÓRIA - INGRESSO EM LISTA NEGRA COMO REPRESÁLIA - APONTAMENTO INDEVIDO DO NOME DO CONSUMIDOR NO SERASA - ÔNUS DA PROVA - INVERSÃO OPE LEGIS - INÉRCIA DA INSTITUIÇÃO RÉ - FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO - OCORRÊNCIA - LISTA NEGRA QUE TERIA SIDO CRIADA A PARTIR DE PROPOSITURA DE AÇÃO JUDICIAL ANTERIOR CONTRA A INSTITUIÇÃO - CONDUTA ILEGAL, ABUSIVA E DISCRIMINATÓRIA - SITUAÇÃO VIVENCIADA PELA AUTORA QUE ULTRAPASSA A SEARA DO MERO DISSABOR - PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO - DANOS MORAIS CONFIGURADOS. Alegação de negativa de crédito decorrente de inserção do nome da correntista em lista negra dos bancos, além do apontamento do nome da autora em cadastros de inadimplentes. A lista negra configura instrumento ilícito de retaliação, pelo simples fato de o consumidor ter ingressado com demanda judicial contra instituição financeira, desestimulando o exercício do direito de ação garantido constitucionalmente. Dever de indenizar com base na responsabilidade objetiva atrelada à teoria do risco do empreendimento. A inclusão do nome da parte em cadastro de inadimplentes, por si só, gera, independentemente de prova, o dano moral in re ipsa. Verbete Sumular 89 do TJ/RJ. Negado provimento ao apelo principal, restando improvido o recurso adesivo. (TJ-RJ - APL: 00112421020188190037, Relator: Des(a). EDSON AGUIAR DE VASCONCELOS, Data de Julgamento: 07/07/2020, DÉCIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 2020-07-10)

É sabido, contudo, da existência de decisões em sentido contrário que apontam para a existência de listas de restrição não públicas não geram o dever de indenizar, porém o cerne de debate não se trata da publicidade ou não da lista, mas sim da impossibilidade do banco de reduzir o limite de crédito por razão revanchista.

É cristalino que, a partir de critérios técnicos, o banco tem o direito subjetivo de reduzir limites de cartão de crédito ou negar acesso ao crédito. O problema jurídico reside no uso dessa redução / limitação como uma punição pelo direito de ação, o que deturpa o instituto.

O art. 187 do Código Civil dispõe que:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

"O abuso de Direito está caracterizado como o exercício de um direito em contrariedade aos limites da prerrogativa individual"4. Isto posto, é preciso perceber que a redução/limitação de acesso ao crédito quando não baseada em critérios técnicos, viola a eticidade e a própria finalidade econômica do contrato, violando-se, portanto, a função social do contrato. Os bancos simplesmente não podem dizer que farão determinadas condutas baseadas em critérios unilaterais e arbitrários. Discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. A instituição bancária tem a discricionariedade de analisar se deve manter, reduzir ou majorar o acesso ao crédito, porém essa decisão é técnica, não podendo jamais ostentar um critério punitivo.

Reduções e limitações ao crédito enquanto resposta punitiva ao direito de ação não podem existir em um ordenamento em que o acesso ao Judiciário deve ser garantido. Ser penalizado com redução/limitação ao crédito em decorrência de ter provocado o Judiciário não se mostra compatível com os valores que regem o Direito Civil e, sobretudo, o Direito Constitucional.

O exercício legítimo do direito de ação não pode ser obstaculizado ou penalizado por restrições ao crédito, de modo que a redução ao crédito, enquanto direito subjetivo dos bancos, não pode ser deturpado ou transformado em instrumento de vingança, retaliação ou mesmo de ameaça. Essa conduta das instituições financeiras é um claro exemplo de abuso de direito e, pior, violador não apenas do Código Civil, mas também uma espécie de penalização do exercício do direito constitucional de ação.

A verdade é que esta conduta – além de ilícita - cria uma dupla judicialização, pois todos aqueles que litigaram uma vez e foram inseridos na "Lista Proibida" buscarão o Judiciário novamente para serem reparados pelo novo dano causado, o que apenas aumenta o número de processos e fomenta uma litigância que seria evitável. Desta feita, será preciso garantir condenações exemplares, significativas e efetivamente punitivas com o condão de eliminar a existência da referida lista e, consequentemente, garantir o direito constitucional de ação, além da proteger o livre exercício de direitos do consumidor, sem que ele sofra restrições e/ou retaliações.

__________

1 Conheça as 30 empresas mais acionadas na Justiça do Rio de Janeiro em 2018. 2018. CONJUR. Acesso em 07 de fev. 2023; TJAM. "Mutirão dos Grandes Litigantes” começa com total de 80 processos analisados pelo 3.º Juizado Especial Cível. 2022. Disponível aqui. Acesso em 07 de fev. 2023; MIGALHAS. Órgãos Federais e estaduais lideram 100 maiores litigantes da Justiça: Setor público Federal e bancos respondem por 76% dos processos em tramitação. Disponível aqui. Acesso em 07 de fev. 2023.

2 KHOURI, Paulo R. Roque A. Litigância no Brasil, relação de consumo a falta de eficiência dos aparelhos estatais. 2020. Disponível aqui. Acesso em 07 de fev. 2022

3 Algumas decisões e autores tratam da lista proibitiva como “lista negra”, porém, por uma questão de respeito e atualização vocabular, entendemos que a lista proibitiva ou lista de restrição se mostra mais adequado.

4 MASCARENHAS, Igor de Lucena; BAHIA, Saulo José Casali. O exercício da Medicina Defensiva enquanto reação às decisões judiciais: o papel do Judiciário na construção de uma postura ética no exercício médico. Revista de Direito do Consumidor, v. 141, p. 339-355, 2022.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.