Algum tempo atrás, escrevi aqui sobre um julgamento do Superior Tribunal de Justiça (Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze), que, num caso bastante sensível, majorou o valor de indenização por danos morais fixado nas instância inferiores. Um homem matou um psicólogo, em seu consultório, com três tiros, motivado pela descoberta de uma suposta traição de sua esposa com o terapeuta. A indenização pelo dano moral (houve condenação por danos materiais também) foi fixada, no 1º grau, em R$ 120 mil para cada uma das autoras da ação (esposa e filha da vítima). As autoras não recorreram da sentença, mas o réu sim. O Tribunal estadual reduziu a indenização para R$ 30 mil para cada uma delas (25% do valor fixado pelo Juízo) por conta da “contribuição causal da vítima no evento trágico” e do “comportamento da vítima”.
As autoras (esposa e filha da vítima) e o réu recorrem ao STJ. Elas para aumentar o valor da indenização moral (e outras discussões quanto aos danos patrimoniais). Ele, para diminuir ainda mais o valor da indenização dos danos morais. O Superior aumentou a condenação, e fixou a indenização para R$ 150 mil para a esposa e R$ 150 mil para a filha da vítima. Esse foi o percurso do valor da indenização pelo dano moral: de R$ 240 mil para R$ 60 mil e, depois, para R$ 300 mil. Destaco: o valor fixado pelo STJ foi superior ao indenizado pelo 1º grau, contra cuja sentença as autoras não recorreram.
O julgamento dos recursos foi monocrático, por aplicação da súmula 7. As partes manearam agravos, que foram julgados conjuntamente. Transcrevo a ementa na parte que interessa (a fixação do quantum indenizatório pelo dano moral):
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356/STF. JUNTADA DE NOVOS DOCUMENTOS. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO AOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 283/STF. PRINCÍPIO DA DEVOLUTIVIDADE. NÃO VIOLAÇÃO. HOMICÍDIO. DEVER DE REPARAR O DANO. RECONHECIMENTO. LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA. INCONSTITUCIONALIDADE. VALOR INDENIZATÓRIO. MAJORAÇÃO. PENSÃO ALIMENTÍCIA. ILEGITIMIDADE ATIVA. RECURSO DO RÉU DESPROVIDO. RECURSO DA AUTORA CONHECIDO EM PARTE PARA, NESSA EXTENSÃO, DAR-LHE PARCIAL PROVIMENTO.
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7. Inaceitável, portanto, admitir o revanchismo como forma de defesa da honra a fim de justificar a exclusão ou a redução do valor indenizatório, notadamente em uma sociedade beligerante e que vivencia um cotidiano de ira, sob pena de banalização e perpetuação da cultura de violência.
8. A fixação da verba indenizatória em R$ 30 mil viola os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da reparação integral, devendo ser majorada para R$ 150 mil, a ser corrigida a partir desta data e incidindo juros de mora desde o evento danoso.
Na época em que publiquei a primeira parte desse artigo, não havia sido disponibilizada a íntegra dos acórdãos, mas eu já pude destacar alguns pontos importantes, do ponto de vista da prestação jurisdicional e da reflexão doutrinária. Repito-os: (i) a variabilidade do valor da indenização (de R$ 120 mil para R$ 30 mil e depois para R$ 150 mil); com a consequente insegurança ao jurisdicionado; (ii) o papel do STJ na discussão de valores indenizatórios (com sua jurisprudência firme no sentido de que o valor da indenização por danos morais será revisto somente nas hipóteses em que a condenação se revelar irrisória ou excessiva, em desacordo com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade); (iii) o alcance da súmula 7 em casos tais; (iv) a limitação que o pedido recursal pode impor ao valor da indenização; e (v) o papel dos juros e correção monetária na composição da fixação do valor da condenação.
Agora, os acórdãos foram publicados, e confirma-se que eles constituem um ambiente privilegiado para o estudo do direito civil e processual civil, bastando ver alguns temas que acresço aos itens antes indicados. A alegação de negativa de prestação jurisdicional. O excesso de linguagem no acórdão. A juntada de novos documentos no curso da ação. O dano em ricochete. A legitimidade ativa. A legítima defesa da honra como matéria de defesa processual (“...uma retórica odiosa, desumana e cruel, com a repulsiva tentativa de se imputar à vítima a causa de sua própria morte”). Culpa concorrente. A relação entre as responsabilidades civil e criminal. O julgamento em perspectiva de gênero: o STJ disse: “A adoção de pensamento diverso contribui para a banalização e perpetuação de violência (principalmente contra as mulheres), cabendo do Poder Judiciário atuar como contrafator a essa cultura antiquada, impondo a vigência da lei a fim de se evitar a perpetração de comportamentos bárbaros”). O método bifásico para a fixação da indenização. O termo final da condenação ao pagamento de pensão alimentícia. Em suma, para aqueles professores e estudiosos que trabalham com a metodologia de estudo de caso (para ensinar e para aprender), o acórdão é um ótimo exemplo do direito teórico e prático.
Destaco, entre as várias temáticas suscitadas pelo julgamento, uma que me parece muito relevante, e que diz respeito à variabilidade do valor da indenização. O STJ fixou a indenização em valor maior do que aquele fixado pelo 1º grau, de cuja sentença as autoras não recorreram. Pode isso? E se isso pode, qual o fundamento técnico para tanto? Quer me parecer que a questão pode ser respondida a partir de três razões:
A um, a própria ontologia do dano moral e dos critérios da fixação de sua indenização. Na espécie, seguindo uma sólida tradição, o STJ utilizou o método bifásico. Na 1ª fase, remeteu ao valor de 300 a 500 salários-mínimos no caso de evento morte e, na 2ª fase, levou em conta as peculiaridades do caso concreto (gravidade do fato, culpabilidade do agente, condição econômica das partes etc); os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade foram utilizados também como argumento para cassar a decisão do Tribunal estadual.
A dois, as perspectivas horizontal e vertical do princípio da devolutibilidade recursal. Se a dimensão horizontal desse princípio diz respeito à extensão do efeito devolutivo (o quanto da decisão foi impugnada, a extensão do recurso), a dimensão vertical diz respeito a quais matérias sobem ao exame do órgão superior (a profundidade). Bem por isso o acórdão assentou “nota-se que, no caso vertente, a apelação devolveu ao Tribunal a questão referente à configuração, ou não, dos danos morais em razão da concorrência de culpas (dimensão horizontal). [...] Assim, ao analisar a matéria a ele devolvida, o Tribunal estadual argumentou que [...] a vítima foi responsável por gerar um sentimento de revolta, o que configura a sua culpa concorrente (dimensão vertical)”. Não há, então, erro do STJ, mesmo que as autoras não tivessem recorrido da decisão do 1º Grau (isto é, tivessem acolhido a indenização de R$ 120 mil para cada).
A três, os papéis e a dinâmica da responsabilidade civil, numa sociedade em constante mudança. No dizer do acórdão, “Por conseguinte, a responsabilidade civil assume um papel mais flexível, menos dogmático e com maior atenção aos reais anseios da sociedade, com a difícil tarefa de distinguir aquilo que deverá, ou não, ser reparado”.
Tentei responder apenas uma das inquietações que surgem a partir do acórdão. As outras ficam para o leitor pensar e responder. Assim se estuda o Direito. Assim se aprende o Direito.