O Direito Ambiental tem como objeto de estudo a proteção do meio ambiente visando a sadia qualidade de vida dos cidadãos. O preceito está positivado no art. 225 da Constituição Federal, que garante a todos o meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo ao Poder Público e à sociedade o dever de preservá-lo.
Didaticamente, divide-se a proteção ao meio ambiente em quatro partes que são integradas e interdependentes: natural, artificial, cultural e do trabalho. Em qualquer dos aspectos, há sempre o foco no controle da poluição com vistas a garantir um meio ambiente seguro e adequado aos que aqui habitam.
A poluição sonora em ambientes urbanos (meio ambiente artificial) é um grande desafio às autoridades e pessoas que moram nas cidades e metrópoles. A razão é clara: exposto à polução sonora o indivíduo tende a ter piora sensível na qualidade de vida, aumentando o estresse, trazendo dificuldades para dormir, entre outras consequências danosas daí advindas.
Tanto assim que a lei brasileira é farta em regulamentar o tema da poluição sonora para minimizar os prejuízos evidentes à saúde humana. Cite-se a regulamentação pela lei 6.938/1981, passando pela Lei de Contravenções Penais (art. 42, incisos I e III), Lei dos Crimes Ambientais (art. 54) e pelo art. 1.277 do Código Civil. Ademais, as leis municipais também estabelecem limites de emissão de ruídos conforme o zoneamento desenhado pelo Plano Diretor. No caso específico da cidade de São Paulo o tema é trazido pela lei municipal 16.402/2016 e decreto municipal 57.443/20161.
Os níveis de ruído são, em regra, definidos pelas leis municipais, sempre observando dados científicos sobre o tema, que sugerem limite máximo até 60 (sessenta) decibéis durante o dia de até 50 (cinquenta) decibéis após 22 horas. A Organização Mundial de Saúde apresenta escala de decibéis relativa à emissão de ruídos e suportabilidade humana. Por outro lado, a Associação Brasileira de Normas Técnicas propõe escala de decibéis de níveis de ruídos aceitáveis em espaço urbano e rural. Vejamos1:
O art. 3º da lei 6.938/1981, define em seu inciso III a poluição como sendo "a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos”. Por outro lado, a mesma lei define poluidor como sendo “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental" (inciso IV).
Portanto, a emissão de ruído acima do indicado pela ABNT ou pela lei municipal pode ser considerado poluição sonora. Ademais, sendo "poluidor" aquele que direta ou indiretamente causa a degradação ambiental, o poluidor pode ser aquele tem a posse do imóvel (locatário ou comodatário) e o proprietário, que seria considerado poluidor "indireto" em razão do uso nocivo da propriedade.
Vale lembrar que a responsabilidade civil do poluidor, nesse caso é objetiva, com fundamento no § 1º do art. 14 da lei 6.938/1981: "(...) Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade".
A questão seria, então, solucionada pelas regras e princípios do Direito Ambiental, diante da característica de direito ou interesse difuso e/ou interesse individual homogêneo, cabendo a interposição de Ação Civil Pública por qualquer dos legitimados definidos no art. 5º da LACP, para a responsabilização civil dos poluidores, além das imposições de sanções administrativas e penais cabíveis. Trata-se, portanto, de responsabilidade civil objetiva e solidária, obrigando ao ressarcimento dos danos materiais e morais.
Caberia pedido de tutela de urgência ou emergência para cessar o ruído, bem como pedido de indenização por dano moral coletivo pela via difusa, devendo o valor ser destinado ao fundo de direitos difusos e coletivos. Na mesma ação coletiva, seria possível o legitimado formular pedido fundamentado em direito individual homogêneo (indisponível, nesse caso, por se tratar de direito à saúde) para indenização aos moradores prejudicados pela poluição sonora.
No entanto, conceituada a poluição sonora e definidos os seus parâmetros, resta saber se caberia (além da propositura de ação civil pública) ação individual fundamentada no direito de vizinhança, para responsabilizar os poluidores.
A regra geral da tutela coletiva de direitos é clara: a propositura de ação coletiva não induz litispendência para as ações individuais (art. 104 do CDC), devendo ser observada a interpretação do Superior Tribunal de Justiça para a ocorrência de suspensão das ações individuais até a o julgamento da ação coletiva (Tema 923).
Direitos de vizinhança
Os denominados direitos de vizinhança são direitos de convivência decorrentes da proximidade ou interferência entre prédios, não necessariamente da contiguidade. As regras de vizinhança têm por objetivo harmonizar a vida em sociedade e o bem-estar, sem deixar à margem as finalidades do direito de propriedade3.
Além disso, o Direito de Vizinhança é marcado por uma relação jurídica fática: não há uma relação jurídica especial que liga os proprietários vizinhos, a relação é, portanto, propter rem, vinculando o proprietário ou o possuidor do imóvel perante seus vizinhos. Trata-se de situação jurídica de direito das coisas.
O conflito de vizinhança deve ser solucionado pelo Código Civil quando um dos proprietários ou possuidores de prédios vizinhos exerce atividade sobre o seu próprio imóvel a qual repercute em outra propriedade. Sílvio Rodrigues destaca que três espécies de ato são capazes de provocar conflito de vizinhança: os ilegais, os abusivos e o lesivos4.
Os atos ilegais ocorrem quando um vizinho prejudica o outro praticando um ato ilícito, respondendo pelos danos causados nos termos dos art. 186 e, se o caso, do art. 927, ambos do Código Civil. Já o abuso de direito pode ocorrer nas relações de vizinhança quando um proprietário, mesmo no exercício do seu direito, se dele usar abusivamente.
Os atos lesivos dizem respeito ao uso da propriedade de forma irregular, desrespeitando a legislação vigente, em especial as regras estabelecidas pelo Código Civil e do Estatuto das Cidades, ou restrições advindas de licenças ambientais conforme o Estudo de Impacto de Vizinhança para obras de maior potencial ofensivo.
A par das discussões sobre a responsabilidade civil objetiva ou subjetiva em direito de vizinha, a poluição sonora pode ser considerada ato lesivo, que diz respeito ao uso da propriedade de forma irregular, devendo seguir a regra da responsabilidade civil objetiva do possuidor e do proprietário, na forma do art. 14 da Lei 6.938/1981 acima transcrito.
Ressalta-se, por fim, que o art. 1.277 do Código Civil autoriza o proprietário ou possuidor do prédio a fazer cessar as interferências prejudiciais causadas por outro vizinho: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha".
Breve conclusão
Não resta dúvida, portanto, que nas hipóteses de poluição sonora a via adequada para que haja a cessação da emissão de ruído, bem como a indenização pelo desrespeito ao meio ambiente sadio, é a Ação Civil Púbica, por ser mais abrangente e adequada à defesa dos interesses difusos. É cabível, na mesma ação, pedido individual homogêneo para o ressarcimento dos prejuízos dos moradores e outras pessoas que foram afetadas pela emissão de ruídos.
Por outro lado, havendo uso nocivo da propriedade, o proprietário ou possuidor lesado tem legitimidade para estar em juízo, em ação individual, para pleitear a cessação da emissão de ruído, danos materiais e morais advindos da poluição sonora, sem prejuízo de eventual ação coletiva em andamento.
Referências bibliográficas
DANTAS, San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972.
PEREIRA. Caio Mário. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito das coisas. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: obrigações e responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2018.
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1 Importante notar que o tema está em ebulição na cidade de São Paulo, tendo sido aprovado projeto de lei que aumentou o limite máximo para 75 decibéis em eventos e nos espaços denominados “dark kitchens” (vale notar, a regra geral continua sendo 65 decibéis o volume máximo de ruído tolerado até às 22 horas, passando para 55 decibéis após esse horário). Sobre o assunto, veja aqui.
2 Disponível aqui.
3 San Tiago Dantas, em sua clássica obra sobre Direito de Vizinhança, explica que, para que haja "conflito de vizinhança", é sempre necessário “que um ato praticado pelo possuidor de um prédio, ou o estado de coisas por êle mantido, vá exercer os seus efeitos sôbre o imóvel vizinho, causando prejuízo ao próprio imóvel ou incómodos ao seu morador. Essa "interferência", essa repercussão in alieno, é o elemento fundamental do conflito. O rumor que se propaga, a fumaça que se espalha no ar, a umidade que se infiltra no solo, tudo que atinge um prédio em consequência de um fato, ocorrido em outro, constitui "interferência" e pode motivar a reclamação do proprietário incomodado, dando nascimento, assim, ao conflito. Não basta, porém, que se verifique "interferência" num prédio, para a colisão de interesses daí resultante ser chamada "conflito de vizinhança". Esta última expressão tem compreensão mais limitada, abrange espécies mais precisas e menos numerosas, e é essencial lhe fixemos a amplitude, antes de avançar no estudo dos problemas que temos de considerar". O conflito de vizinhança e sua composição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. p. 20.
4 RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito das coisas. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 125.