Na sessão do dia 9 de agosto de 2022, a Terceira Turma do Superior Tribunal e Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Especial (REsp.) 2.009.210/RS, sedimentou o entendimento pelo qual Código de Defesa do Consumidor (CDC) se aplica aos casos de responsabilidade pelo fato decorrentes de impactos ambientais das etapas do processo produtivo anteriores à colocação do produto no mercado.
Tais situações, portanto, para além de seus óbvios efeitos no campo do direito ambiental, também repercutem no âmbito consumerista, caracterizando hipóteses de responsabilidade pelo fato do produto (CDC, art. 12). No julgamento daquele recurso, acompanharam unanimemente o voto da relatora, Ministra Nancy Andrighi, os Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro.
Na origem, a indenizatória teve como causa de pedir remota a produção de ruído intenso, emissão de fuligem, gases poluentes, materiais particulados, odores fétidos e vazamento de amônia decorrentes da atividade econômica desempenhada por sociedade empresária voltada ao beneficiamento, industrialização e comercialização de carnes de aves, que por diversas vezes já houvera sido alvo de processos administrativos e inquéritos civis por violação de normas de direito ambiental.
Tal situação, que perdurara por vários anos, alegadamente acarretou à autora daquela demanda judicial, dentre outros sintomas, hipoxemia, fortes cefaleias, fadiga, ardência nos olhos, náusea, diarreia, vômito e mal-estar.
Importante observar que estes fatos se reportam às etapas do processo de produção de proteína animal anteriores à introdução do produto no mercado, ou seja, àquelas fases que antecedem a aquisição ou utilização do bem propriamente ditas pelo destinatário final.
No caso concreto, a vítima sequer chegou a consumir os produtos fabricados pelo frigorífico, mas residia próximo ao seu parque industrial, de modo que os danos lhe advieram pela exposição duradoura aos impactos ambientais da atividade econômica do fornecedor. Ao poluir o ambiente, o frigorífico ofendeu os direitos da personalidade e o direito à saúde da demandante, que foi equiparada a consumidor ao ser considerada vítima de acidente de consumo (CDC, art. 17), fazendo jus a indenização pelo fato do produto (CDC, arts. 12 e 17).
Em suas razões de recurso especial, a autora do ilícito ambiental alegou, em síntese: a) não incidência do CDC às ações de indenização por danos morais fundadas em dano ambiental; b) não caracterização de acidente de consumo; c) não enquadramento da demandante/recorrida como consumidora por equiparação (bystander), e; d) impossibilidade de inversão do ônus da prova.
Como se percebe, o debate girou em torno da natureza consumerista da relação jurídica entre a empresa poluidora e o particular vitimado por danos ambientais anteriores à inserção do produto no mercado de consumo.
Num primeiro momento, considerando que o conceito jurídico de consumidor constante do art. 2º do CDC pressupõe a aquisição ou utilização de produto pelo destinatário final, poder-se-ia imaginar que prejuízos decorrentes de poluição industrial ficassem adstritos à legislação ambiental, não podendo ser açambarcados pela legislação consumerista. Todavia, como já tivemos oportunidade de defender alhures1, é plenamente possível equiparar a consumidor toda e qualquer pessoa que tenha sofrido danos oriundos dos impactos ambientais da produção, ainda que cronologicamente anteriores à disponibilização do produto ao público consumidor em geral, estendendo-lhe o regime jurídico protetivo do CDC. Isso ocorre, pois, a figura do bystander, descrita no art. 17 do Código de Defesa do Consumidor, rompe a lógica meramente contratual da relação de consumo, impondo-lhe uma perspectiva ampliada, de maneira a contemplar também todos os atingidos pelos efeitos ambientais prévios da produção, inclusive as futuras gerações.
No Tribunal da Cidadania, o tema já vem sendo maturado há quase uma década. Em agosto de 2014, no julgamento do REsp 1.354.348/RS2, a Quarta Turma daquela corte, sob a relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, aplicou o prazo prescricional quinquenal do art. 27 do CDC à pretensão indenizatória decorrente da contaminação do solo e das águas subterrâneas na localidade onde o bystander residia.
Ratificando o enquadramento da vítima do dano ambiental como consumidor por equiparação, a Segunda Seção do STJ, em abril de 2016, analisando o Conflito de Competência 143.204/RJ3, entendeu ser competente o foro do domicílio das vítimas do evento (CDC, art. 17 c/c 101, I) para conhecer e julgar indenizatória proposta por pescadores artesanais que tiveram suas atividades pesqueiras prejudicadas por derramamento de óleo em área marinha. Também aqui se buscava reparação de danos materiais e morais decorrentes de dano ambiental, tendo sido os autores considerados vítimas de acidente de consumo.
Mais recentemente, no julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial 1.833.216/RO4, a Quarta Turma daquele colegiado expressamente afirmou que “a jurisprudência desta Corte Superior admite, nos termos do art. 17 do CDC, a existência da figura do consumidor por equiparação nas hipóteses de danos ambientais”.
Aliados a entendimentos sobre responsabilidade pelo fato do produto já consolidados no âmbito do STJ, os precedentes acima referidos nos permitem constatar que sua jurisprudência evoluiu no sentido de:
a) Equiparar a consumidor aquele que, mesmo não participando diretamente da relação de consumo, “venha a sofrer consequências do evento danoso decorrente do defeito exterior que ultrapassa o objeto e provoca lesões, gerando risco à sua segurança física e psíquica”5;
b) Admitir a equiparação da vítima de danos ambientais a consumidor, por força do art. 17 do CDC6;
c) Reconhecer que o acidente de consumo caracterizador da responsabilidade pelo fato do produto pode ocorrer durante o processo de produção, antes da aquisição ou utilização do produto pelo destinatário final, ainda nas etapas de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, etc.
O reconhecimento da responsabilidade do fornecedor pelo fato ambiental do produto, com a aplicação do CDC aos danos ecológicos oriundos das etapas industriais precedentes à colocação do produto no mercado, reafirma a interface indissociável entre os microssistemas protetivos do meio-ambiente e do consumidor, de modo a convergir a proteção consumerista à tutela ambiental, paradigma do direito do consumo sustentável.
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1 RIBEIRO, Alfredo Rangel. Direito do Consumo Sustentável. São Paulo: Thomson Reuters, 2018. Pág. 262/263.
2 STJ, REsp n. 1.354.348/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 26/8/2014, DJe de 16/9/2014.
3 STJ, CC n. 143.204/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, julgado em 13/4/2016, DJe de 18/4/2016.
4 AgInt no REsp n. 1.833.216/RO, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 20/9/2021, DJe de 27/9/2021.
5 STJ, AgRg no REsp n. 1.000.329/SC, Quarta Turma, julgado em 10/8/2010, DJe de 19/8/2010; REsp n. 1.574.784/RJ, Terceira Turma, julgado em 19/6/2018, DJe de 25/6/2018; REsp n. 1.787.318/RJ, Terceira Turma, julgado em 16/6/2020, DJe de 18/6/2020; REsp n. 1.327.778/SP, Quarta Turma, julgado em 2/8/2016, DJe de 23/8/2016.
6 STJ, CC 143.204/RJ, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/04/2016, DJe 18/04/2016; REsp 1354348/RS, QUARTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 16/09/2014; AgInt no REsp n. 1.833.216/RO, Quarta Turma, julgado em 20/9/2021, DJe de 27/9/2021; AgInt nos EDcl no CC 132.505/RJ, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/11/2016, DJe 28/11/2016.
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*Alfredo Rangel Ribeiro é Advogado, sócio fundador do escritório de advocacia Santiago & Rangel Advogados. Doutor e Mestre em Direito. Professor Adjunto do Departamento de Direito Privado da UFPB. Professor titular do Departamento de Direito do Centro Universitário de João Pessoa. Membro permanente do Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário de João Pessoa.