Caio Júlio César é reconhecido, ainda hoje, como um general brilhante. Embora tenha promovido uma guerra ilegal e cometido inúmeras atrocidades (reconhecidas como tais até em sua época), muito do que se acredita saber sobre suas batalhas na Gália foram forjadas em seus famosos comentários, produzidos e divulgados ao longo do combate, com o propósito de informar e entreter a população romana. César tratou de reduzir os seus próprios riscos antes de atravessar o Rubicão.
Já no final do Século XIX, nos Estados Unidos da América, Nikola Tesla e Thomas Edison disputavam o estabelecimento da forma de distribuição de energia elétrica que passaria a ser o padrão nacional. A arena daquele combate foi, justamente, a publicitária: Edison teria recorrido ao suposto risco do sistema concorrente propondo que o sacrifício da elefanta Topsy se desse com a utilização da tecnologia rival. A ampla divulgação do uso letal da invenção de Tesla ajudou a garantir o monopólio de patentes de Edison.
Esses exemplos só reforçam aquilo que já sabemos: informação e publicidade entrelaçam-se desde sempre e com propósitos variados: seja para construir uma reputação, seja para fomentar o consumo.
No Brasil as técnicas publicitárias sempre estiveram fortemente associadas ao ‘comércio’ razão pela qual a Constituição da República, ao estabelecer a competência legislativa sobre o tema, se refere à “propaganda comercial” (art. 22, XXIX) e é o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) que lhe dá tratamento geral.
Não é, contudo, apenas a atividade empresarial1 que se vale de estratégias de comunicação com a finalidade de viabilizar seus objetivos e desempenho. Também outras atividades econômicas o fazem, ainda que não ‘mercantis’.
Esta classificação, aliás, é, como se sabe, um resquício da antiga distinção entre atividades de conteúdo civil (profissões liberais e sociedades simples, por exemplo) daquelas de conteúdo outrora comercial (sociedades e atividades empresariais). Explicava-se, então, que atividades econômicas de cunho intelectual (como aquelas associadas às artes e às ciências) seriam distintas daquelas que buscariam o lucro por meio da organização dos fatores de produção (capital, mão de obra e insumos) e com isso, também seria o tratamento dispensado a cada atividade: dos tipos de registros até a estratégia de comunicação disponível. Entendia-se, então, que a publicidade não se destinava aos profissionais liberais, que construiriam sua clientela em conjunto com sua reputação.
Contudo, como em outros pontos do Direito Privado brasileiro, a nitidez dos contornos desta distinção fica cada vez menos definida. Assim, por exemplo, o mesmo Superior Tribunal de Justiça que exige que o produtor rural comprove o exercício de atividade empresarial para pretender a recuperação judicial2, também aceitou o processamento de pedido de associação civil educacional3. Contribuem em especial para essa ‘sensação’ de fluidez, talvez, a incidência da cláusula geral de boa-fé objetiva (impondo os deveres de transparência, informação e lealdade) e a ampliação da proteção do consumidor àqueles legalmente equiparados e aos vulneráveis expostos às práticas de mercado.
Aliado a isso, o amplo acesso à Internet modificou não só a forma de expressão individual e a comunicação, como ampliou o espaço e o público para a autopromoção individual. O culto da celebridade e o apego a influenciadores gerou um novo padrão de mercantilização da comunicação em que todos podem estar sujeito ao merchandising e tudo pode ser objeto de publicidade. É neste espaço em transformação, então, que se encontram os limites da publicidade para algumas atividades econômicas não empresariais, tais como a Advocacia e os serviços de profissionais liberais da Saúde.
Para destacar este ponto e entendermos o denominador comum para a publicidade profissional é que escolhemos analisar a utilização do paciente/cliente como porta voz da publicidade/marketing e como a Medicina, a Odontologia e a Advocacia lidam com esta forma de expressão publicitária.
Como sabemos, proliferam nas redes sociais exemplos de publicações e fotos de celebridades (ou não) pacientes/clientes (ou não) indicando/visitando profissionais em seus consultórios/escritórios. No caso da Medicina e da Odontologia, seguem-se, ainda, as publicações explicativas de exames, procedimentos e/ou resultados com a imagem ou depoimento do paciente/cliente. O engajamento e a promoção destes posts são forma evidente de comunicação publicitária.
Como não poderia deixar de ser, a regulamentação profissional dos profissionais da Saúde acaba se preocupando profundamente com a questão da imagem do paciente ao ponto de o Código de Ética médica (art. 75)4 e a regulamentação da publicidade médica (art. 3º, “g”)5 proibirem totalmente sua exposição, mesmo como seu consentimento, como forma de divulgação de técnica, método e/ou resultado do procedimento.
A regulamentação da publicidade odontológica, por sua vez, adota posição intermediária6, permitindo a foto de selfies com pacientes (art. 1º)7 e imagens do diagnóstico e conclusão do tratamento (“antes e depois” – art. 2º)8, desde que haja – em ambos os casos – o seu consentimento expresso, proibindo-se, contudo, imagens de materiais biológicos (§1º) e da realização do procedimento em si (art. 3º)9.
Assim, enquanto os médicos não poderiam se valer de posts com pacientes (em situações gerais de visita, selfies, exames, comparações, procedimentos, etc.) como forma de publicidade (direta ou indireta), os odontólogos poderiam, desde que tomassem o cuidado de obter a autorização prévia e não divulgassem o procedimento em si.
Na outra ponta do tratamento regulamentar, encontra-se marketing jurídico. Simplesmente não há detalhamento do tratamento da imagem do cliente para fins de publicidade para além de uma menção exemplificativa10. Selfies, depoimentos gravados e visitas ao escritório estariam liberadas?
Pode-se dizer, então, que as diferentes regulamentações guardam um denominador comum?
Acreditamos que sim. Isso porque todas as três profissões analisadas pautam-se pelo sigilo profissional11 e pela não ‘mercantilização’ de sua atividade12. Desta forma, o dever de sigilo deixa de estar apenas na esfera ético-profissional para também instruir a relação contratual mantida com o paciente/cliente. Como se sabe, o descumprimento deste dever é considerado violação positiva do contrato e, como tal, faz incidir as consequências da responsabilidade obrigacional (dentre elas, as indenizatórias).
Além disso, deve-se sempre destacar que o serviço quando colocado no mercado (por qualquer agente, empresarial ou não) deve obedecer às normas regulamentares competentes, dentre elas, aquelas relacionadas ao exercício profissional. Assim, o prestador de serviço que utiliza a imagem de seu cliente/paciente para fins publicitários pode estar colocando no mercado um serviço viciado (Art. 20, §2º13 do CDC) e, portanto, realizando uma prática comercial abusiva (art. 39, VIII14 do CDC), dando ensejo, também, às consequências administrativas cabíveis (art. 56 do CDC) para além das indenizatórias. Deve-se, ainda, lembrar que estão equiparados a consumidores todos aqueles sujeitos a este tipo de prática (art. 29 do CDC).
Além disso, a imagem – por si só – é um dado do paciente/cliente e, nos termos da lei 13.709/18, se o seu tratamento se der sem sua autorização e/ou causar dano, haverá responsabilização civil solidária do controlador e do operador de dados (art. 42 e seguintes), além, é claro, das consequências administrativas correspondentes.
Por fim, lembre-se que a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça considera que a utilização desta imagem pode, eventualmente, motivar uma pretensão indenizatória que prescinda da demonstração de dano15.
Assim, resta claro que os prestadores de serviços profissionais devem avaliar a exposição de seus clientes/pacientes com finalidade publicitária como um potencial risco. A avaliação desta relação de custo x benefício que pode ser encarada, hoje, como o denominador comum buscado.
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Frederico Glitz é advogado, mestre e Doutor em Direito Privado e com pós-doutorado em Direito e Novas Tecnologias.
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1 Entendida como “atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” (art. 966 do Código Civil).
2 Tema Repetitivo 1145 – “Ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos é facultado requerer a recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido recuperacional, independentemente do tempo de seu registro.”
3 “(...) No âmbito de tutela provisória e, portanto, ainda em juízo precário, reconhece-se que há plausibilidade do direito alegado: legitimidade ativa para apresentar pedido de recuperação judicial das associações civis sem fins lucrativos que tenham finalidade e exerçam atividade econômica.” (STJ, AgInt no TP nº 3654 / RS, julgado em 08/04/2022).
4 “Art. 75. Fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos, em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente.” (Resolução CFM nº 1.931/2009).
5 “Art. 3º É vedado ao médico: (...) g) Expor a figura de seu paciente como forma de divulgar técnica, método ou resultado de tratamento, ainda que com autorização expressa do mesmo, ressalvado o disposto no art. 10 desta resolução [trabalhos e eventos científicos]; (Resolução CFM nº 1.974/2011).
6 “Art. 44. Constitui infração ética: (...) VI - divulgar nome, endereço ou qualquer outro elemento que identifique o paciente, a não ser com seu consentimento livre e esclarecido, ou de seu responsável legal, desde que não sejam para fins de autopromoção ou benefício do profissional, ou da entidade prestadora de serviços odontológicos, observadas as demais previsões deste Código;” (Resolução CFO nº 118/2012).
7 “Art. 1º. Fica autorizada a divulgação de autoretratos (selfies) de cirurgiões dentistas, acompanhados de pacientes ou não, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE.” (Resolução CFO nº 196/2019).
8 “Art. 2º. Fica autorizada a divulgação de imagens relativas ao diagnóstico e à conclusão dos tratamentos odontológicos quando realizada por cirurgião-dentista responsável pela execução do procedimento, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE.” (Resolução CFO nº 196/2019).
9 “Art. 3º. Fica expressamente proibida a divulgação de vídeos e/ou imagens com conteúdo relativo ao transcurso e/ou à realização dos procedimentos, exceto em publicações científicas.” (Resolução CFO nº 196/2019)
10 Quando aborda a criação de conteúdo, o Anexo do Provimento OAB 205/2021 menciona que ela “deve ser orientada pelo caráter técnico informativo, sem divulgação de (...) clientes (...).”
11 Arts 73 e seguintes da Resolução CFM nº 1.931/2009; Art. 5º, II da Resolução CFO nº 118/2012 e Art. 35 e seguintes da Resolução OAB nº 02/2015.
12 Art. 58 da Resolução CFM nº 1.931/2009; Art. 4º, parte final, da Resolução CFO nº 118/2012; Art. 4º do Provimento OAB nº 205/2021
13 “Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: (...) § 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade.” (grifo nosso).
14 “Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...) VIII - colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro);” (grifo nosso).
15 Por exemplo, Súmula STJ nº 403: “Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais.”