Migalhas de Responsabilidade Civil

Fake news: O Brasil necessita de um marco legal

Será que o Brasil deveria ter leis específicas que promovam a prevenção e o combate à proliferação intensa de fake news?

25/10/2022

Será que o Brasil deveria ter leis específicas que promovam a prevenção e o combate à proliferação intensa de fake news? Depois dos cenários descortinados pela pandemia em 2020 e das eleições gerais em 2022, é mais que necessário que se evoluam as discussões já iniciadas, para que se possa construir marcos legais adequados para a temática.

 Inicialmente, vale destacar que o Brasil ainda não possui uma legislação específica para as divulgações de notícias falsas. De 2017 a 2022 foram apresentados ao menos 17 projetos de lei1 no Congresso Nacional, que procuram combater este tipo de conteúdo que desinforma, confunde a população, traz riscos à saúde, manipula massas, destrói reputações, corroendo o sistema representativo e a própria democracia. Outras iniciativas parlamentares foram apensadas a esses projetos.

Entre tais propostas, destaca-se a tentativa de se criminalizar a divulgação de fake news, com penas máximas de prisão de dois anos, criando-se assim mais um crime de menor potencial ofensivo.

Mas, para além do uso do Direito Penal como instrumento de coerção, prevenindo e reprimindo-se condutas daqueles que deliberadamente usam deste expediente para propagação de ideias, interesses ou mesmo com a finalidade espúria de confundir um contingente de pessoas, há também outras medidas interessantes sendo discutidas no parlamento.

No sensível campo das eleições, surgem três projetos direcionados à temática. O mais recente, o PLP 120/2022 prevê mais uma causa de inelegibilidade, exatamente para aquele indivíduo que divulgar notícia falsa sobre urna eletrônica e o processo eleitoral. Além deste, o PLS 218/2018 determina que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) crie campanhas educacionais de combate às fake news em anos eleitorais. De igual maneira, o PLS 471/2018 busca definir os crimes de criação ou divulgação de notícia falsa, com a finalidade de afetar indevidamente o processo eleitoral.

O PL 632/2020 buscando impor maior rigor às falas e atos de autoridades públicas, considera a divulgação de fake news promovidas por tais autoridades, como uma nova hipótese de crime de responsabilidade e, também, de improbidade administrativa. Assim, uma informação manifestamente falsa veiculada e promovida, por exemplo, por um chefe do Poder Executivo, em qualquer esfera (federal, estadual ou municipal), poderia ser enquadrada com crime de responsabilidade, gerando inclusive a possibilidade de impedimento à continuidade do mandato (impeachment).

Entendendo que a transmissão de notícias falsas afeta o direito difuso à correta informação, direito fundamental de quarta dimensão, o PLS 246/2018 prevê a inserção de um novo artigo no Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), permitindo que qualquer cidadão seja parte legítima para propor ação judicial questionando a divulgação de conteúdos falsos ou ofensivos em aplicações de internet.

Buscando cortar o fluxo financeiro em sites que veiculam propositalmente fake news, o PLS 2922/2020 deseja impedir o anúncio em páginas com desinformação e discurso de ódio. A finalidade é cortar o financiamento, por meio de publicidades, a sites que notoriamente se utilizam de notícias falsas para gerar tráfego e vender espaços a anunciantes. Tal conduta é extremamente comum num mercado online que luta pela atenção do navegante, configurando aquilo que comumente se denomina de click bait (caça-cliques).

Este PLS 2922/2020 está pronto para deliberação do plenário na Câmara dos Deputados e também promove inserções de novos dispositivos no Marco Civil da Internet. Buscando definições no Código de Conduta da União Europeia sobre Desinformação, o projeto conceitua fake news como sendo a informação comprovadamente falsa ou enganadora que, cumulativamente: i) é criada, apresentada e divulgada para obter vantagens econômicas ou para enganar deliberadamente o público; ii) é suscetível de causar um prejuízo público, entendido como ameaças aos processos políticos democráticos e aos processos de elaboração de políticas, bem como a bens públicos, tais como a proteção da saúde dos cidadãos, o ambiente ou a segurança.

No rastro da pandemia da covid-19, alguns desses projetos visam a tutela da saúde como direito coletivo. O PLS 5.555/2020 direciona a criminalização tanto da recusa imotivada à vacinação obrigatória em casos de emergência de saúde, quanto da propagação de notícias falsas sobre as vacinas. Já o PL 1.015/2021 prevê pena de 1 a 4 anos de prisão e multa para o crime de criar, divulgar, propagar, compartilhar ou transmitir, por qualquer meio, informação sabidamente inverídica sobre prevenção e combate à epidemia. Nesta mesma esteira, o PL 2.745/2021 tipifica a conduta de divulgar ou propalar, por qualquer meio ou forma, informações falsas sobre as vacinas.

Importante registrar que o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.197/2021, que previu o novo título “Dos crimes contra o Estado Democrático de Direito” no Código Penal, inserindo os vários tipos penais nos arts. 359-I a 359-T e, ainda, revogando a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83).

O art. 359-O trazia o novo delito de “comunicação enganosa em massa”, com a seguinte disposição: "Promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral". A pena prevista era de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.

Todavia, o então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, optou por vetar, valendo-se da seguinte justificativa2: "A despeito da boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público por não deixar claro qual conduta seria objeto da criminalização, se a conduta daquele que gerou a notícia ou daquele que a compartilhou (mesmo sem intenção de massificá-la), bem como enseja dúvida se o crime seria continuado ou permanente, ou mesmo se haveria um ‘tribunal da verdade’ para definir o que viria a ser entendido por inverídico a ponto de constituir um crime punível pelo decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, o que acaba por provocar enorme insegurança jurídica. Outrossim, o ambiente digital é favorável à propagação de informações verdadeiras ou falsas, cujo verbo ‘promover’ tende a dar discricionariedade ao intérprete na avaliação da natureza dolosa da conduta criminosa em razão da amplitude do termo. A redação genérica tem o efeito de afastar o eleitor do debate político, o que reduziria a sua capacidade de definir as suas escolhas eleitorais, inibindo o debate de ideias, limitando a concorrência de opiniões, indo de encontro ao contexto do Estado Democrático de Direito, o que enfraqueceria o processo democrático e, em última análise, a própria atuação parlamentar".

Diante deste cenário, o Projeto de Lei 2.630/2020, apresentado pelo Senador Alessandro Vieira, que Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, é a mais bem construída proposta para o enfrentamento da temática, até o presente momento. Já aprovado no Senado e em trâmite na Câmara dos Deputados, o projeto prevê a proibição da criação de contas falsas, de contas robotizadas (comandadas por robôs), devendo as plataformas digitais desenvolverem mecanismos que limitem o número de contas geridas pelo mesmo usuário. Além disso, a proposta legislativa impões também que estes provedores de serviços online, tais como redes sociais e aplicativos de mensagens, limitem o número de envios de um mesmo conteúdo a usuários e grupos.

Há uma clara tentativa de se controlar os envios de mensagens em massa. Por isso, as empresas terão o dever de guarda, pelo prazo de três meses, dos registros dos envios de mensagens veiculadas em encaminhamentos em massa3. Todavia, o acesso aos registros somente poderá ocorrer mediante ordem judicial, permitindo-se assim que haja espaço para   responsabilização cível e/ou criminal.

Este projeto traz também regulações sobre remoção de conteúdos falsos, identificação de postagens que foram impulsionadas com pagamentos, considera de interesse público os perfis de agentes políticos (como chefes do Poder Executivo, por exemplo), cria o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, determina que as empresas estrangeiras devam ter representantes no Brasil, sendo que caso venham a descumprir as medidas impostas ficarão sujeitas a advertência e multa de até 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício.

Para além da atuação do Estado, as próprias companhias de tecnologia estão, mundo afora, alterando seus termos de uso, trazendo mais rigor na análise de conteúdos falsos, fato este que se acentuou nos anos 2020 e 2021. Dois fatos foram as molas propulsoras deste papel mais ativo das empresas: a pandemia e a eleição presidencial norte-americana. As redes sociais, por exemplo, passaram a gerar advertências sobre a suposta falsidade da informação veiculada em determinado perfil, suprimiram publicações e, em caso de reiterações, chegaram até mesmo a excluir o usuário da rede. No Brasil, entretanto, a atuação das plataformas tem sido mais tímida que em solo estadunidense.

A grande problemática, num mundo premido por vieses de confirmação e na denominada era da pós-verdade, onde o fato real encontra o muro das narrativas convenientes, é a suposta violação ao direito à liberdade de expressão. Há posicionamento corrente de que a liberdade de expressão merece ser reconhecida como um direito mais amplo, com primazia, devendo ser tolhida apenas em situações absolutamente excepcionais. Contudo, há que se recordar que como direito fundamental que é, a liberdade de expressão está necessariamente subordinada a limites, devendo o abuso de direito ser objeto de adequada repressão, por se tratar de um ato ilícito e ilegítimo.

Assim, mesmo sem que haja um diploma específico, o Poder Judiciário tem se esforçado entre erros e acertos, para fornecer respostas à divulgação de notícias inverídicas em variados cenários, valendo-se dos regramentos presentes no Código de Processo Civil, no Código Civil, nas leis eleitorais, no Marco Civil da Internet, entre outros diplomas. A título de exemplo, a utilização de tutelas de inibição, a fixação de astreintes, a determinação de remoção de conteúdos, a desmonetização de sites e canais, o estabelecimento de indenizações, entre outras medidas, vem sendo utilizadas para conter os enormes danos que as fake news causam à sociedade em rede.

Por todo o exposto, o combate estatal às notícias falsas merece ser melhor aprimorado no Brasil, buscando-se não apenas a criminalização da divulgação, mas sobremaneira medidas mais efetivas de tutela da informação, como direito difuso que é. A criação de uma causa de inelegibilidade de quem se utiliza dolosamente deste meio abusivo, a previsão de nova hipótese de crime de responsabilidade, a especificação de deveres às sociedades empresárias que atuam no universo online, a criação de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, parecem ser alternativas mais inteligentes e efetivas que a simples criação de novos tipos penais. O ordenamento como um todo merece ser acionado e revisitado, para que o Estado contemporâneo consiga enfrentar uma de suas mais desafiadoras ameaças: a verdadeira "pandemia" de fake news.

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1 Fonte: pesquisa no site da Agência Senado apresenta os projetos em andamento. Disponível aqui. Acesso em 17.10.2022.

2 Tal veto (nº 46/2021) está para ser analisado no Congresso Nacional, que poderá mantê-lo ou derrubá-lo.

3 Considera-se encaminhamento em massa, os envios de uma mesma mensagem para grupos de conversas e listas de transmissão por mais de cinco usuários em um período de 15 dias, tendo sido recebidas por mais de mil usuários.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.