Migalhas de Responsabilidade Civil

Oxente, cadê o respeito? A cumulação de pedidos reparatórios e compensatórios por danos coletivos

O mundo digital exerce atualmente caráter prioritário na vida em sociedade, tendo assumido novos contornos com o período eleitoral.

13/10/2022

Respeite mais, julgue menos!
Perdoe mais, condene menos!
Abrace mais, empurre menos!
Faça mais, fale menos!

[...]

Seja menos preconceito!
Seja mais amor no peito!
Seja amor, seja muito amor!
E se mesmo assim for difícil ser
não precisa ser perfeito.
Se não der pra ser amor
seja pelo menos RESPEITO!

Bráulio Bessa

O mundo digital exerce atualmente caráter prioritário na vida em sociedade, tendo assumido novos contornos com o período eleitoral. Se o advento das redes sociais, há cerca de 10 anos, trouxe um novo olhar a respeito do marketing pessoal, da democratização da economia digital e do exercício da liberdade de expressão, fez emergir também, em tempos de extremismos políticos, um grande palco para a produção de danos. As corriqueiras dancinhas, "reels", vídeos divertidos e a novel publicidade orgânica deram lugar a um palco de xingamentos, agressões, repúdios, discursos odiosos com requintes de racismo e, sobretudo, de xenofobia, deixando ainda mais evidente o despreparo da sociedade para uma vida social hígida no ambiente digital, pois não houve uma educação digital para a convivência social nesse ambiente. Quando isso se alia ao extremismo do debate político, evidencia-se ainda mais o desrespeito dos usuários às lições básicas de educação, empatia, cordialidade e de convivência com a divergência de opiniões. Por consequência, potencializa-se a ocorrência de danos.

Longe de esgotar o tema, esse artigo traz, em um primeiro momento, um breve relato sobre os danos sofridos pelos nordestinos no ambiente digital, decorrentes de declarações xenofóbicas e, em um segundo momento, busca-se avaliar a viabilidade de cumulação entre a reparação pecuniária e a natural, com o objetivo de atender ao princípio da reparação integral.

O caso de xenofobia

Recentemente, com o resultado do 1º turno das eleições presidenciais, o exercício - legítimo - da liberdade de expressão foi confundido com liberdade de agressão, resultando em abuso de direito. Vários vídeos com críticas xenofóbicas pelo resultado das eleições presidenciais do primeiro turno circularam nas redes, sendo o de maior repercussão o da advogada de Uberlândia/MG, então vice-presidente da comissão da mulher advogada.   No vídeo, a advogada critica o Nordeste e diz que não vai mais "alimentar quem vive de migalhas", por ter o candidato da oposição ao governo tido expressiva votação naquela região. Na ocasião, a advogada:

"A todos aqueles brasileiros que a partir de hoje têm que ser muito inteligente. Nós geramos empregos, nós pagamos impostos e sabe o que que a gente faz? A gente gasta o nosso dinheiro lá no Nordeste. Não vamos fazer isso mais. Vamos gastar dinheiro com quem realmente precisa, com quem realmente merece. A gente não vai mais alimentar quem vive de migalhas. Vamos gastar o nosso dinheiro aqui no Sudeste, ou no Sul ou fora do país, inclusive porque fica muito mais barato. Um brinde a gente que deixa de ser palhaço a partir de hoje".

A declaração viralizou no mesmo dia e causou perplexidade na comunidade jurídica, resultando em notas de repúdio assinadas por parte de todas as seccionais da OAB do Nordeste, além da exoneração da advogada do cargo de vice-presidente a comissão da mulher advogada.

O presidente da OAB/MG, Sérgio Leonardo, respondeu rapidamente às declarações da colega, alertando ao fato que essa é uma opinião pessoal que materializam preconceito e discriminação ao povo nordestino, não refletindo a opinião da instituição e assegurando que as providências disciplinares cabíveis ao caso seriam tomadas.

A advogada emitiu nota procurando se desculpar com a população nordestina ao tempo em que quis se desviar da conduta criminal e se vitimizar por ataques sofridos no ambiente virtual após as suas declarações:

"Em razão de manifestação pessoal publicada em minhas redes sociais, venho a público me desculpar por compreender a infelicidade do que foi falado, uma vez que é totalmente incompatível com meus valores. Minha conduta, embora reprovável, não se encontra tipificada como crime em qualquer dispositivo legal vigente. A exposição da minha fala foi feita por terceiros, sem o meu consentimento, e fez com que eu siga atacada com as mais diversas formas de violência contra a mulher, tendo que blindar a mim e minha família. A infelicidade da minha fala não pode autorizar ou justificar a prática de crimes graves contra a minha pessoa, que vão desde injúria e difamação, até mesmo a apologia ao estupro. Em um Estado Democrático de Direito os fins não justificam os meios. Lamento pela repercussão desta infeliz colocação e me arrependo profundamente pelo ocorrido, desculpando-me com todas as pessoas de origem nordestina que tenham se sentido ofendidas, retratando-me completamente."

Na sequência, a Defensoria Pública de Minas Gerais ingressou contra a advogada com ação civil pública com pedido de danos morais coletivos em favor do povo nordestino. A peça, assinada por sete defensores públicos, tinha dentre os pedidos: i) a imediata retratação da advogada pelas ofensas provocadas, por todos os meios de comunicação disponíveis, notadamente, em sua rede social e no jornal local; ii) a condenação da advogada por dano moral coletivo no valor de R$ 100.000,00, devendo o valor ser destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos; iii) o envio de ofício ao ministério público estadual para eventual apuração de crime e iv) o envio de ofício à OAB/MG para eventual instauração de procedimento administrativo por desvio ético, além dos pedidos de praxe. 

A reparação integral dos danos coletivos de natureza existencial

Apesar de não haver, na legislação brasileira, dispositivo específico regrando a reparação natural, traduzida, na hipótese em questão, no dever de pedir desculpas por parte da causadora do dano, a sua aplicabilidade se extrai do princípio da reparação integral, cujo fundamento é constitucional. Nesse sentido, Carlos Edison Monteiro Filho:

Como se pode inferir, de um lado, em exame sob a perspectiva existencial, os danos extrapatrimoniais são merecedores de tutela privilegiada, estando intrinsecamente ligados à dignidade da pessoa humana, segundo a normativa da Constituição. Erigida a fundamento da República (art. 1º, III), a dignidade da pessoa humana se irradia prioritária e necessariamente por todo o ordenamento e consagra a plena compensação dos danos morais (art. 5º, V e X), fundamento extrapatrimonial da reparação integral. De modo que o sistema traçado pelo constituinte, além de promover, com a necessária prioridade, os valores existenciais, repudia qualquer atentado à sua integridade, forjando assim cláusula geral de tutela que embasa o mecanismo sancionatório a assegurar, em sua totalidade, a compensação dos danos extrapatrimoniais.1

Assim, para se atender ao princípio da reparação integral, diante da ocorrência de danos existenciais, é necessária a cumulação de pedidos indenizatórios e compensatórios por parte do sujeito lesado, cabendo à doutrina dar protagonismo às diversas formas de reparação natural como meio de atender ao melhor interesse da vítima, reparando-a integralmente.

Nesse contexto, o pedido de desculpas pode figurar tanto na função compensatória da reparação civil como na função reparatória. Na primeira, figuram como espécies de reparação natural, ao tentar trazer a vítima para o momento fático mais próximo do estado em que ela se encontrava antes do dano acontecer; na segunda são utilizados como um dos elementos de minoração da quantificação do dano, pois interferem diretamente na extensão do prejuízo.

Em algumas situações, a reparação natural pode se demonstrar bem mais eficiente do que a compensação financeira, cabendo à vítima indicar a via adequada para atender à reparação integral de forma eficaz. Isso porque a solução apontada como adequada para um, pode não ser a mais benéfica para outro, pois não há como conceder uma mesma providência jurisdicional a todas as violações sofridas pela sociedade. Assim, danos de somenos importância como uma inscrição indevida em cadastro restritivo de crédito podem, a depender da situação, ser resolvidos rapidamente com uma reparação pecuniária. Em outras hipóteses isso não acontece, sendo necessário analisar a viabilidade da cumulação dos pedidos reparatórios, visto como um meio de minorar o dano sofrido pela vítima, e compensatório, isto é, a imposição de condenação pecuniária.

Apesar da cumulação de pedidos da referida peça ajuizada pela defensoria mineira, para parte da doutrina é difícil aceitar a cumulação de pedidos quando se enxerga a reparação natural como primeira e única via adequada a reparar o dano, no sentido de levar a vítima ao status quo ante. Assim, para Leonardo Fajngold, esse retorno ao estado anterior de coisas seria suficiente para reparar integralmente à vítima. Em outras palavras: havendo reparação natural, a compensação não teria lugar e, por consequência, a cumulação dos pedidos não seria permitida, pois o dinheiro não repara, compensa2.

No entanto, quem, senão a vítima, seria capaz de indicar como a reparação integral será atendida? Nem sempre a reparação natural é capaz de levar a vítima ao estado anterior de coisas ou mesmo a situação semelhante a este estado. Nas ações coletivas relativas a danos ambientais, por exemplo, o dever de reflorestamento como via de retorno ao que mais se aproxima do status quo ante não afasta o dever de indenizar. Isso se torna ainda mais evidente quando o dano sofrido é coletivo como na hipótese dos danos provocados por declarações xenofóbicas a uma determinada população. A cumulatividade entre as funções reparatória (pedido de desculpas) e compensatória, deve, portanto, ser de escolha do autor da ação. No caso do dano coletivo por xenofobia, o pedido de desculpas não afasta a reparação pecuniária, pois a indenização serve como meio de viabilizar o fomento de instituições que trabalham em prol da coletividade lesada.

Nesse contexto, a eficiência do pedido de desculpas de algumas situações, contudo, não pode ser capaz de afastar a via indenizatória sob pena de mácula ao princípio da reparação integral.  Sobre o assunto, o professor Paulo Lôbo pondera:

O dano moral é suscetível de fixação pecuniária equivalente e é de difícil reparação in natura. De qualquer modo, é reparável, encontrando-se o valor patrimonial, por equidade. No caso de ofensa à honra, mediante divulgação pública (cartazes, manifestações pela imprensa, redes sociais), a indenização pode ser acrescida de outras reparações específicas, aproximadas das reparações in natura, como a retratação pública. O Código Civil especifica a reparação por injúria, calúnia ou difamação, mas estas não são as únicas hipóteses de dano moral. A ofensa moral pode ser sem palavras, como na publicação de fotografia de alguém, sem identificação, dando a entender ser cúmplice de criminoso3. 

Em tempos de redes sociais, exposições e agressões por meio da Internet tomam uma proporção infinitamente superior e, por vezes, fora do controle das pessoas. Algumas pessoas parecem esquecer que o dever de se abster de causar um dano a outrem (nemimem laedere) é cláusula geral de conduta, irradiada em todo ordenamento jurídico.

Se a natureza dos direitos da personalidade não permite uma significação patrimonial exata hábil a aferir precisamente qual a extensão do prejuízo, nem viabiliza a recomposição ao estado anterior à conduta lesiva, há de se buscar alternativas eficazes para a recomposição dos danos, utilizando-se para tanto todos os meios admitidos em direito. Isso porque as necessidades existenciais de cada um não se apresentam de modo uniforme.

Os modelos abstratos da codificação anterior não se demonstravam adequados para as demandas contemporâneas, tendo o Código Civil de 2002 dado um grande passo em favor da defesa dos direitos da personalidade. Cabe à doutrina continuar exercendo o seu papel instrutivo, fomentando o debate e trazendo entendimento ao tema da reparação integral, mediante o reconhecimento das variadas formas de recomposição natural, sem que, com isso, haja exclusão da reparação pecuniária.

A admissão da cumulação de pedidos não tem por objetivo esvaziar o instituto da reparação natural, mas dar efetividade ao princípio da reparação integral do sistema brasileiro. Sob esse ponto de vista, não se deve retirar da vítima o poder de, no pleno exercício do acesso à justiça, indicar o que melhor atende à reparação integral e pleitear uma indenização aliada a uma das formas de reparação natural.

Aceitar a cumulação é, portanto, referendar as cláusulas abertas, contidas no Código Civil Brasileiro, em obediência ao princípio da reparação integral. Veja-se que, no caso da xenofobia, o pedido de desculpas não é minimamente capaz de levar as vítimas à situação próxima ao status quo ante, demonstrando-se imprescindível a cumulação de pedidos nos moldes realizados pela defensoria pública mineira.

__________

1 MONTEIRO FILHO, C. E. DO R. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-25, 5 maio 2018.

2 FAJNGOLD, Leonardo. Dano moral e reparação não pecuniária: sistemática e parâmetros. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. O autor entende que a cumulação da reparação natural com a reparação pecuniária implicaria em esvaziar o instituto da reparação natural, vista como meio hábil de levar a vítima ao status quo ante. Para o autor, a admissão de uma reparação natural cumulada com uma compensação financeira implicaria em aceitar que o instituto da reparação natural não tem o condão de reparar.

3 LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. vol 2.. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 363.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.