Migalhas de Responsabilidade Civil

Direito da Concorrência e varas especializadas

Uma crescente judicialização de decisões administrativas em temas envolvendo o direito concorrencial tem se observado ao longo dos últimos anos.

13/9/2022

Uma crescente judicialização de decisões administrativas em temas envolvendo o direito concorrencial tem se observado ao longo dos últimos anos. Não bastasse tal constatação, um aumento ainda maior da prestação jurisdicional envolvendo a matéria é esperado em razão da esperada sanção presidencial do Projeto de Lei 11.275/18, que visou ajustar características da Lei da Concorrência brasileira (Lei 12.529/11) para criar incentivos adicionais para ações de indenização decorrentes de infrações concorrenciais. Apesar do movimento identificado, ainda se percebem grandes dificuldade por parte do Poder Judiciário para proferir decisões que envolvam o direito concorrencial.

E natural que o seja, visto tratar o direito concorrencial de ramo do direito dotado de elevado grau de abertura em sua tipicidade, em muito o assemelhando a um sistema de common law, em que os precedentes emanados da autoridade possuem elemento relevante na construção de uma maior segurança jurídica. Assim, decisões da Superintendencia Geral e do Tribunal do CADE modelam a aplicação da lei, criando relevantes dificuldades para outros órgãos, como o Poder Judiciário, de aplicar ou revisar as normas, ainda mais diante do também relevante papel que desempenha a microeconomia para avaliação da ilegalidade de condutas de agentes com poder de mercado.  

Neste contexto, é possível destacar algumas dificuldades enfrentadas pelos jurisdicionados em casos envolvendo questões concorrenciais em trâmite nas varas comuns. A principal delas, problemas mais qualitativos das decisões proferidas, decorrentes de ausência de subsídio de matéria concorrencial administrativa para avaliar potenciais infrações à ordem econômica, o que acaba por priorizar um controle de legalidade mais afeto aos seus elementos processuais do que propriamente ao mérito das discussões. O dever de deferimento às decisões dos órgãos administrativos de fato existe, mas não pode se converter em barreira oportuna a furtar revisões de decisões que tenham mal avaliado o mérito das questões. É certo que a revisão judicial deve respeitar a discricionariedade administrativa. Contudo – e nas palavras do subprocurador Geral da República e ex-Conselheiro do CADE Antonio Fonseca – esta deferência não exclui o poder-dever do Judiciário de, escrutinando o mérito da discrição administrativa, examinar eventual lesão de direito e, se for o caso, repará-la1. Como exemplo podemos citar um equilibrado balanço das evidências postas à decisão por parte das autoridades, que por vezes se encontram bastante aquém de padrões de prova utilizadas pelos tribunais em matéria comercial, criminal ou cível.

Da mesma forma, em razão de maior distanciamento do Judiciário com o tema concorrencial, uma segunda dificuldade verificada decorre da adoção de diferentes critérios para avaliação das condutas, ou seja, diferentes testes aplicados, normalmente mais superficiais e tendenciosamente mais privatistas, desconsiderando por vezes o carácter institucional da norma de defesa da concorrência, para avaliação de ilegalidade de condutas avaliadas. É dizer que o Judiciário tem tendido, em especial nas questões que lhe são levadas sem quaisquer pré-discussões com o órgão de defesa da concorrência, a um viés de análise mais focado em efeitos entre partes do que propriamente no mercado e nas empresas nele atuantes de forma geral. Tais elementos acabam por criar visões bastante antagônicas entre os efeitos e consequente ilegalidades de condutas dos agentes dominantes, resultando em decisões diametralmente opostas entre a seara administrativa e judicial.  

Por fim, verifica-se ainda maior morosidade do Poder Judiciário em decidir disputas com fundo concorrencial, comprometendo por vezes a efetividade das decisões proferidas pelos órgãos administrativos. O caso Nestle-Garoto bem ilustra tal dicotomia. E tudo isso somente sopesa a maior insegurança jurídica no trato do tema.

Neste contexto, diversos estudos já demonstraram que decisões proferidas por varas especializadas tendem a propiciar ambientes juridicamente mais estáveis, e que juízes de varas comuns sem especialização na matéria tendem a decidir de forma distinta a respeito de questões semelhantes. A experiência com as varas especializadas em direito empresarial também indica que decisões proferidas por tribunais especializados têm mais probabilidade de ser mantidas por tribunais superiores.2 O que nos leva à reflexão se, ao menos, a insegurança jurídica decorrente da falta de previsibilidade de casos envolvendo matérias específicas – como o direito da concorrência – levadas ao Poder Judiciário poderia ser, ao menos em parte, mitigada pela especialização de varas judiciais.

Como mencionado, tal falta de especialização na matéria resulta ainda em inefetividade de decisões proferidas, havendo aqui clara correlação entre especialização e efetividade. Além disso, a especialização de varas envolve também a especialização de seus servidores, que tende a agilizar não somente as decisões em si, mas também procedimentos mais burocráticos relacionados ao processo.

Argumentos corriqueiros contrários à especialização de varas comentam que tal modelo institucional acabaria por limitar as chances de reversão no Poder Judiciário, ainda conhecido como o risco de captura. Outro argumento comumente citado é o de engessamento da jurisprudência, que estaria a cargo de poucos juízes. Contudo, tais argumentos parecem ser recorrentes e insuficientes para sobrepujar os benefícios da especialização de varas. De fato, a especialização garantiria, a partir de cursos de aperfeiçoamento e especialização dos servidores destinados a tratar da matéria, maior segurança jurídica aos litígios trazidos ao Judiciário e maior coerência com legislação específica sobre o tema. Traria ainda maior agilidade na condução dos processos, que deixariam de compor o fundo da pilha processual dos gabinetes, aquele destino dado a matérias que requerem maior e mais custosa curva de aprendizado para que uma decisão seja proferida.

A comunidade jurídica, de forma geral, defende a especialização de varas e câmaras como uma possibilidade de o Judiciário fornecer melhores respostas a questões de maior complexidade. A especialização das varas em matéria concorrencial trará melhorias à prestação jurisdicional, beneficiando seus jurisdicionados, o próprio Poder Judiciário e a sociedade em geral, ao garantir maior qualidade, segurança jurídica, celeridade e eficiência às decisões judiciais envolvendo casos complexos.

Faz-se assim necessário incorporar a cultura do direito da concorrência ao Poder Judiciário, de modo que as empresas e indivíduos se sintam incentivados a discutir a matéria, não com o intento de postergar o cumprimento da decisão administrativa, mas para levar suas questões a um foro preparado para resolver, em tempo econômico e com qualidade técnica, as lides a ele submetidas.

O debate ainda passa, além da materialidade da discussão, pela sua instrumentalização de forma eficiente. E para tanto se discute se varas especializadas devem ser criadas (novas varas) ou se varas comuns devem ser especializadas para tratar da matéria, com claro viés orçamentário; se tais varas devem ser exclusivas ou não exclusiva; se devem abarcar tão somente matéria concorrencial ou ainda outros temas, como defesa comercial, direito aduaneiro ou propriedade intelectual, e seu consequente risco de asfixia; a quantidade de varas e magistrados sujeitos a especialização, de forma a se mitigarem argumentos de captura; eventual especialização da segunda instância e questões mais procedimentais e corriqueiras como a implementação de códigos de distribuição, sem os quais pode se tornar sem efeito a especialização com riscos de nulidade de decisões proferidas pelo poder judiciário em desrespeito a competências absolutas estabelecidas.

A Resolução CJF-RES-2017/00445 de 2017 já dispôs sobre a especialização, com competência concorrente, de varas federais em Direito da Concorrência e do Comércio Internacional. Subsequentemente a ela, alguns passos foram trilhados, com a criação de vara especializada no TRF-2, com a criação de um grupo de trabalho para estudo de viabilidade de sua implantação na 3ª Região – discussão que aparentemente não tem evoluído, contudo -, criação de varas federais especializadas (16ª e 29ª) na Seção Judiciária do Rio de Janeiro, com competência para processar e julgar feitos que envolvam matéria de concorrência, comércio internacional, direito aduaneiro, marítimo e portuário; e finalmente com a criação de grupo de trabalho instituído pela Portaria Presidencial nº 350/2021 do TRF-1, para estudar a especialização de vara federal de processos que versem sobre direito da concorrência e comércio internacional.

É preciso que tais discussões avancem, que se especializem mais varas, para que se possa confiar, com maior grau de expectativa de segurança jurídica, discussões envolvendo matéria concorrencial ao Poder Judiciário. Ainda, com a expectativa de sansão presidencial do Projeto de Lei 11.275/18, tais discussões devem ainda se ampliar para as varas estaduais, que detêm competência para discussões de indenizações envolvendo matéria concorrencial. Essa é a expectativa da comunidade jurídica e empresarial brasileira, que busca sempre um ambiente de maior competitividade e de maior segurança jurídica para atuarem.

__________

1 FONSECA, Antonio. Papel dos Tribunais Administrativos e Sistema Judicial. Revista IBRAC Volume 6 número 3 (1999).

2 RIBEIRO, Ivan César. CVM e Judiciário: o efeito da incerteza jurídica nos investimentos em ações e a justiça especializada. Revista Direito GV. V. 3, N.1, p. 035-056, Jan/jun 2007. Pag. 49-50.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.