Nos dias atuais, tornou-se corriqueiro o Poder Judiciário ser acionado para resolver questões relacionadas à publicação de conteúdo ofensivo em redes sociais. A solução desses casos demanda, com certa frequência, a participação das plataformas digitais a fim de viabilizar a identificação do usuário criador do conteúdo ilícito.
Tendo em mente a indagação feita no título deste ensaio, pensemos na seguinte hipótese: uma vítima de conteúdo ofensivo publicado em rede social ajuíza a ação prevista no art. 22 da lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet - MCI), no prazo previsto no art. 15 do MCI, porém, a plataforma não fornece os registros de acesso à aplicação do autor do conteúdo, sob a alegação de que o usuário desativou o perfil, pelo que a rede social invoca o art. 248 do Código Civil (art. 248 – Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos) para sustentar a resolução da obrigação.
Nesse cenário, indaga-se: a omissão da plataforma ao não fornecer os dados pode ensejar a sua responsabilidade civil? O art. 248 do Código Civil afasta a responsabilidade da rede social nesse caso?
Na hipótese em exame, o provedor ignorou o que prevê o MCI, notadamente as regras legais acerca do dever do provedor de aplicação de manter os dados de registro dos usuários pelo tempo previsto na norma, como forma de viabilizar a eventual responsabilização daqueles que se utilizam da rede mundial de computadores para violar direitos assegurados na Constituição da República.
O MCI, editado com o propósito de estabelecer os princípios, garantias direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, determina que os provedores de conexão mantenham a guarda dos registros de conexão pelo prazo de 01 (um) ano (art. 13), bem como impõe aos provedores de aplicação – como a rede social – a conservação dos registros de acesso à aplicação de internet pelo prazo de 06 (seis) meses (art. 15).
Os dispositivos não definem o termo inicial dos referidos prazos de guarda obrigatória de dados. A Terceira Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial 1738651/MS, fixou o entendimento de que o termo inicial para a contagem retroativa do prazo de 01 (um) ano ou de 06 (seis) meses de guarda é a data em que a parte requerida toma conhecimento do ajuizamento da ação de requisição judicial dos registros.
No caso hipotético, o autor ingressou com a ação judicial no prazo do art. 15 do MCI, portanto, quando a rede social ainda estava obrigada a conservar os registros de acesso dos seus usuários.
Logo, quer parecer ser indiscutível a conduta omissiva do provedor, que não observou um comando legal expresso, agindo, desse modo, de forma negligente no desempenho de sua atividade que, em certa medida, já se está regulada pelo Estado brasileiro. Assim sendo, a conduta omissiva do provedor, ao passo que configura um dos elementos da responsabilidade civil (conduta), sugere, a um só tempo, a presença de outro, a saber, a culpa, na vertente da negligência empregada no comportamento omissivo.
A jurisprudência do STJ (REsp 1642560/SP) vem entendendo que, uma vez apresentado pela vítima o URL da página virtual com o conteúdo ofensivo, é dever do provedor de aplicação - no caso, a rede social - manter um sistema ou adotar as providências, tecnicamente a seu alcance, de modo a possibilitar a identificação do usuário responsável pelo conteúdo apontado como ofensivo, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão em que incide, tratando-se, desse modo, de responsabilidade subjetiva.
Uma vez reconhecida a culpa do provedor de aplicação, não há falar em incidência do art. 248 do Código Civil para afastar a responsabilidade civil da plataforma, pois, para isso, a norma exige a ausência desse elemento subjetivo. A alegada impossibilidade de fornecer os registros de acesso do usuário infrator decorreu de culpa da rede social, na medida em que não manteve a guarda dos dados do perfil excluído pelo internauta agressor.
O argumento de que o usuário infrator excluiu da rede o seu perfil e o conteúdo ofensivo publicado na plataforma não isenta o provedor da obrigação legal de conservar os registros de acesso à aplicação da internet. Por outro lado, o descumprimento desse dever, por si só, não legitima acionar o regime da responsabilidade civil, para o que se mostra imprescindível a ocorrência de algum dano ao interessado na identificação do autor do conteúdo.
Entender diferente importaria no reconhecimento da responsabilidade civil sem danos, o que não se mostra compatível com a razão de ser do sistema de responsabilização civil, enquanto mecanismo voltado à indenização ou compensação de um prejuízo. Afinal, antijuridicidade da conduta não se confunde com o dano, assertiva à qual se pode acrescentar, ainda, que o dano não é um consectário lógico e inarredável da ilicitude do comportamento.
Identificada a conduta omissiva, bem como a culpa da rede social, que agiu negligentemente ao não manter a guarda dos dados do usuário, cumpre indagar qual o dano e, se constatado algum, qual a sua relação com a postura da plataforma (nexo causal). Obviamente, aqui abre-se margem para uma enorme gama de possibilidades empíricas de pedidos de danos pelo ofendido, porém, para fins do caso hipotético em estudo, adota-se a premissa de que a vítima sofreu danos morais e materiais decorrentes da publicação.
Os danos materiais, assim como os danos morais - traduzidos pela doutrina nacional majoritária como violação dos direitos da personalidade1 -, são disciplinados pela teoria do interesse, idealizada pelo jurista italiano Francesco Carnelutti2. Na lição de Carnelutti, a tutela jurídica é conferida não ao bem jurídico em si, mas à relação jurídica entre ele e o sujeito, o que denota o caráter normativo da ideia de dano, em contraponto à visão naturalista da teoria da diferença, circunstância que permitiu a acomodação dos danos extrapatrimoniais pela teoria do interesse. Assim, dano passou a ser concebido como a lesão a um bem ou interesse juridicamente tutelado, independentemente de sua natureza, se bem patrimonial ou bem integrante da personalidade do ofendido3.
Admitida a existência dos danos causados pela publicação, indaga-se, doravante, acerca da relação de relação de causalidade entre eles e a conduta omissiva da rede social ao não fornecer os registros de acesso à plataforma digital, em descumprimento à determinação judicial.
Na perspectiva naturalística, inexiste tal relação de causalidade, ao menos diretamente. A conduta do provedor de aplicação não se confunde com a daquele que criou o conteúdo violador de direitos. Daí que não se pode atribuir ao primeiro, desde logo, o dever de indenizar pela mera divulgação do conteúdo ilícito e danoso à vítima, sob pena de caracterização de responsabilidade objetiva ao arrepio da lei e do atual entendimento do STJ.
Nada obstante, não se deve olvidar a circunstância de que a relação jurídica entre o criador do conteúdo ofensivo e a rede social é regida pelo Código de Defesa do Consumidor, sendo juridicamente viável enquadrar a vítima da publicação, mesmo não sendo usuária da plataforma, na qualidade de consumidor equiparado (art. 17, CDC).
Nessa perspectiva, considerando que a rede social, inobstante não tenha criado diretamente o conteúdo ofensivo, propiciou meios técnicos para que ele fosse concebido e, mais do que isso, divulgado para uma infinidade de pessoas, é possível sustentar que ela integra a cadeia de fornecimento para fins do art. 7º, parágrafo único, do CDC, segundo o qual “Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo”. Em outros termos, há a participação instrumental do provedor de aplicação nessa cadeia, ao fornecer o ambiente virtual onde o conteúdo é criado e disseminado em uma velocidade diretamente proporcional ao interesse e à curiosidade que esse material pode despertar em usuários e não usuários da plataforma, de modo que um eventual dano, notadamente a direito da personalidade, pode assumir proporções de difícil dimensionamento.
Na seara processual, é importante destacar que o raciocínio desenvolvido neste ensaio para admitir a possibilidade da incidência de responsabilidade civil da rede social no caso de descumprimento de determinada decisão judicial não desconsidera a existência das medidas executivas de coerção indireta, das quais se destacam as astreintes, também chamada de multa diária, cujo escopo é compelir o devedor a realizar a obrigação de fazer ou não fazer. O regime de responsabilidade civil do provedor de aplicação, notadamente, das redes sociais, na hipótese em discussão, pressupõe o insucesso da aplicação dos mecanismos de coerção indireta, inclusive a multa cominatória.
Portanto, na hipótese proposta neste ensaio, a recusa da rede social em fornecer ao Poder Judiciário os registros de acesso à aplicação de internet pode ensejar a sua responsabilização civil pelos danos experimentados pela vítima do conteúdo ofensivo publicado na plataforma digital.