Migalhas de Responsabilidade Civil

Responsabilidade pré-contratual e prescrição

O tema do enquadramento jurídico da culpa in contrahendo constitui uma questão debatida na doutrina.

25/8/2022

O tema do enquadramento jurídico da culpa in contrahendo constitui uma questão debatida na doutrina1. Em síntese apertada, a matéria envolve a situação em que as partes rompem as tratativas para contratar, verificando-se assim a necessidade de examinar se essa conduta constitui uma violação do princípio da boa-fé, a fim de apurar se houve prejuízos à parte afetada pela interrupção da negociação. Desse modo, inexistindo ainda o contrato, tender-se-ia a configurar a matéria no âmbito da responsabilidade extracontratual. 

A riqueza do tema não se limita, pura e simplesmente, à identificação da natureza jurídica da culpa in contrahendo. Ela se vincula à questão histórica da dicotomia das fontes do vínculo obrigacional, a partir do delineamento estabelecido por Gaio, nas Institutas, a denominada summa divisio, entre contrato e delito2. Mesmo que se pretenda ver na sua lição uma finalidade meramente didática, ao referir que toda obrigação nasce ou do contrato ou do delito3, Gaio não parece deixar espaços para esfumaturas.

É certo que essa perspectiva redutiva sofre uma crítica, que pode ser percebida na concepção de contato social4, que na doutrina brasileira teve em Clóvis do Couto e Silva uma visão precursora, ao indicar já na década de sessenta do século XX a existência de uma crise da teoria das fontes5.

Essa problemática não se restringe, é certo, à teoria geral, na medida em que também a responsabilidade civil e suas figuras e institutos são afetadas pela divisão clássica decorrente de Gaio. Muito embora se preconize a visão unitária da responsabilidade civil, há que se reconhecer a presença da diferenciação em muitos dos pontos de sua disciplina.

No que concerne à prescrição, o Código civil de 2002 havia estabelecido uma regra unitária para o prazo da ação de indenização, que abrangia, portanto, os dois campos da responsabilidade civil.

Ao decidir os Embargos de Divergência n. 1.281.594/SP, julgados em 15 de maio de 2019, o Superior Tribunal de Justiça considerou, por maioria, que "a bipartição existente entre a responsabilidade civil contratual e extracontratual, advinda da distinção ontológica, estrutural e funcional entre ambas, obsta o tratamento isonômico entre as duas esferas".

Pode-se identificar, portanto, que para a corrente majoritária sobrevive, em essência, a percepção gaiana: haveria uma diferenciação ontológica, isto é, na própria estrutura entre os dois planos da responsabilidade civil, que ultrapassaria a previsão legislativa originária contida na codificação civil.

Concluiu-se, assim, pela diferenciação entre os prazos prescricionais: a previsão de três anos contida no artigo 206, § 3º, V, restringe-se à responsabilidade extracontratual, enquanto nos casos de responsabilidade contratual aplica-se o prazo decenal, previsto no artigo 2056.

É certo que a questão submetida a análise do Superior Tribunal de Justiça nos aludidos Embargos de Divergência n. 1.281.594/SP versava sobre o inadimplemento de um contrato de compra e venda, que se enquadra como um contrato típico, dotado de prestações específicas a serem cumpridas pelas partes.

Cabe a pergunta se o prazo decenal se aplica a todos os casos de responsabilidade contratual. No âmbito dos contratos de seguro, por exemplo, a partir da previsão específica contida no artigo 206, a resposta do Superior Tribunal de Justiça foi negativa, tendo decidido que se aplica o prazo ânuo para toda a gama de pretensões decorrentes desse tipo de contrato7.

Como ficamos então, relativamente ao prazo prescricional, no caso da responsabilidade pré-contratual, situação em que não se perfectibilizou o contrato?

A partir da distinção clássica, poder-se-ia adotar aqui a orientação no sentido de que o prazo será o de três anos: não tendo se aperfeiçoado o contrato, adota-se a diretriz preconizada para a responsabilidade extracontratual.

O tema foi objeto de discussão no direito comparado, como serve de exemplo o ordenamento italiano, que no artigo 2.947 do seu Código Civil contempla o prazo prescricional de 5 anos para a responsabilidade aquiliana, sendo que o prazo geral é de dez anos nos termos do artigo 2.946. Diante dessa diferenciação, a orientação recente da Corte de Cassação tem sido de considerar que se aplica à responsabilidade pré-contratual o prazo de dez anos, a partir de uma concepção que a qualifica como uma hipótese de responsabilidade contratual decorrente de um "contatto sociale qualificato"8.

Em síntese, reconhece-se a visão de que muito embora inexista propriamente na culpa in contrahendo a violação de uma prestação9, a circunstância de configurar-se a violação pela parte de deveres decorrentes da boa-fé implica no reconhecimento da natureza contratual da responsabilidade pré-contratual.

A essa discussão não está alheio o Superior Tribunal de Justiça, que já enfrentou o tema da natureza jurídica da responsabilidade pré-contratual, em especial para decidir qual a disciplina a ser adotada em relação a alguns tópicos, como é o caso dos juros de mora. Foi o caso do REsp n. 1.367.955-SP10, em que apesar de reconhecer o debate doutrinário a respeito, considerou na decisão que se deveria reputar a responsabilidade pré-contratual como hipótese de responsabilidade contratual, a partir do fundamento de que o princípio da boa-fé está disciplinado no artigo 422, no âmbito da tutela contratual.

É claro que em uma visão tópica, percepções como o da tutela da confiança também aparecem na fundamentação do Superior Tribunal de Justiça, para embasar o seu reconhecimento da responsabilidade pré-contratual11.

Pontue-se, ainda, que na decisão anteriormente indicada, do Superior Tribunal de Justiça, relativa ao estabelecimento da prescrição ânua para todas as pretensões decorrentes de contrato de seguro, fez-se expressa menção ao reconhecimento da clássica orientação de obrigação como processo, para afirmar que o “conteúdo da obrigação contratual (direitos e obrigações das partes) transcende as prestações nucleares expressamente pactuadas”.

Vê-se, portanto, que a base jurídica para a decisão se aproxima da concepção hoje presente no direito italiano, que considera a violação dos deveres de boa-fé como sendo de natureza contratual. Cuida-se em essência da concepção também indicada por Clóvis do Couto e Silva no sentido da ‘obrigação como totalidade’ e que se atualiza, em uma aproximação singela, na orientação de 'obrigação complexa'12.

Por fim, é certo que se pode favorecer uma solução legislativa, que no âmbito de uma atualização da matéria da prescrição, explicite a regra cabível para a hipótese do prazo prescricional relacionado à culpa in contrahendo. No presente cenário, porém, a partir da nova orientação traçada jurisprudencialmente pelo STJ, excetuando-se situações em que exista disposição legislativa expressa em contrário, a orientação no sentido de que o prazo decenal se aplica à reponsabilidade pré-contratual se harmoniza com a visão presente no cenário nacional, constituindo-se, além de tudo, como fator dissuasório de condutas contrárias ao princípio da boa-fé no âmbito das tratativas negociais. 

__________

1 Ver, por exemplo, ALBANESE, Antonio. Responsabilità precontrattuale. Scritti in onore di Carlo Castronovo, Napolis: Jovene Editore, 2018, p. 1695; BLANC, Valérie. La Responsabilité précontractuelle, perspectives quebecoise et internationalle. Université de Montreal, 2008, p. 1 ss. Na doutrina nacional atual ver, por exemplo, FRITZ, Karina Nunes. A Culpa in contrahendo no direito alemão: um contributo para reflexões em torno da responsabilidade pré-contratual. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 15, ano 5, 2018, p. 161 ss.

2 Ver, por exemplo, Zimmermann, Reinhard. The Law of Obligations. Roman Foundations of the Civilian Tradition. Oxford University Press, 1996, p. 10 e ss.

3 Gaio, Institutas, III, 88, Belles Lettres, Paris, 1989.

4 Ver, por exemplo, GAROFALO, Andrea Maria. Il Problema del contato sociale. Teoria e Storia del Diritto Privato, 2018, n. XI, p. 1 ss.

5 COUTO E SILVA, Clóvis. A Obrigação como Processo. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1976, p. 76ss.

6 A questão permanece, porém, em debate na doutrina. Ver, por exemplo, BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa; Oliveira, Carlos Eduardo Elias de. A Prescrição das pretensões de reparação por responsabilidade contratual e extracontratual: em busca de coerência. https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/371238/as-pretensoes-de-reparacao-por-responsabilidade-contratual

7 Ver REsp 1.303.374-ES, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, segunda seção, por maioria, j. 30.11.2021.

8 IULIANNI, Antonello. La Cassazione riafferma la natura contrattuale della responsabilità precontrattuale. Nuova Giurisprudenza Civile, 2016, v. 11, p. 1451 ss.

9 Sobre o tema ver ALBANESE, Antonio. Responsabilità precontratualle, cit., p. 1703, que a par de traçar amplo panorama da evolução italiana sobre o tema, reconhece a aproximação entre esse desenvolvimento e a origem alemão da questão a partir da concepção de ‘relação contratual sem deveres primários de prestação’ (Schuldverhältnis ohne primäre Leistungspflicht).

10 Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 18.03.2014, 3ª Turma.

11 Ver, por exemplo, REsp n. 1.051.065-AM, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 21.02.2013, 3ª Turma.

12 MIRABELLI DI LAURO, Antonino Proscida. L’Obligazione come rapporto complesso. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 7, 2016, p. 132 ss.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.