Migalhas de Responsabilidade Civil

AED Aplicada à tarifa promocional em passagem aérea

Conclui-se não ser abusiva a cláusula de contrato de compra de passagem aérea na tarifa promocional

23/8/2022

Traz-se com frequência a juízo questão relativa à restituição da integralidade do valor pago na aquisição de passagem aérea por força da desistência do consumidor em dar seguimento ao contrato de transporte aéreo.

Neste contexto impõe-se investigar se é abusiva a cláusula contratual que impõe a perda de percentual, por vezes significativo, do valor da passagem aérea ou até mesmo da integralidade do preço, em caso de desistência do consumidor, quando o bilhete de passagem aérea é comprado na modalidade promocional.

A questão será analisada à luz do Código de Defesa do Consumidor, na medida em que de um lado da relação jurídica tem-se a figura do consumidor, como destinatário final do serviço, e um agente econômico na condição de fornecedor deste mesmo serviço (CDC, arts. 2º e 3º). Contudo, haverá diálogo de fontes posto que também incide na questão o Código Civil (CC, arts. 389 e seguintes e arts. 731 e 740), uma vez que se trata de inadimplemento contratual. Também haverá diálogos de fontes com a Resolução ANAC 400/16, que dispõe sobre as condições gerais de transporte aéreo e que também regula a “alteração e resilição do contrato de transporte aéreo por parte do passageiro”.

O art. 731 do Código Civil prescreve que a regulamentação de serviço de transporte autorizado, permitido ou concedido deve ser regido por norma específica: “O transporte exercido em virtude de autorização, permissão ou concessão, rege-se pelas normas regulamentares e pelo que for estabelecido naqueles atos, sem prejuízo do disposto neste Código”.

Neste sentido, a norma a ser aplicada a presente questão é a Res. 400/16 da ANAC. Portanto, embora seja esta uma relação de consumo, isto, por si só, não veda apreciação do caso também à luz da regulamentação específica aplicável, seja porque o próprio Código Civil em seu artigo remeteu o intérprete à norma de regência (Res. ANAC 400/16), seja porque há, de fato, diálogo sistemático de complementaridade e subsidiariedade1 entre o CDC e a apontada Resolução na medida em que o CDC, na condição de norma especial, tem a sua aplicação complementada pela citada Resolução quanto aos instituto da resilição do contrato de transporte aéreo.  

Em princípio, o consumidor pode se desistir do contrato de transporte aéreo no prazo de 7 dias sem qualquer ônus, quando a compra é realizada pela internet, posto que nesta hipótese se aplica o art. 49 do CDC (direito de arrependimento), aplicável a qualquer tipo de compra que ocorra fora do estabelecimento comercial.

Afora esta hipótese, a Resolução 400/16, em seu art. 3º, impõe ao consumidor multa de 5% para hipótese de reembolso do valor do bilhete em caso de desistência, desde que observado o disposto nos seus art. 11 e art. 29, vale dizer, quando a compra da passagem se dê no prazo igual ou superior a sete dias da data de embarque. Confira-se:

Art. 11. O usuário poderá desistir da passagem aérea adquirida, sem qualquer ônus, desde que o faça no prazo de até 24 (vinte e quatro) horas, a contar do recebimento do seu comprovante.

Parágrafo único. A regra descrita no caput deste artigo somente se aplica às compras feitas com antecedência igual ou superior a 7 (sete) dias em relação à data de embarque.

Art. 29. O prazo para o reembolso será de 7 (sete) dias, a contar da data da solicitação feita pelo passageiro, devendo ser observados os meios de pagamento utilizados na compra da passagem aérea.

Parágrafo único. Nos casos de reembolso, os valores previstos no art. 4º, § 1º, incisos II e III, desta Resolução, deverão ser integralmente restituídos.

Excluídas estas duas hipóteses de restituição integral do valor pago em caso de desistência do contrato de transporte aéreo, não se configura abusiva a cláusula contratual de transporte aéreo que prevê a aplicação de multa escalonada e progressiva, que pode resultar até mesmo na perda do valor integral do preço pago.

Isto porque se a passagem foi comprada na tarifa promocional o consumidor, que a ela adere já recebe de antemão benefício que a compra passagem na tarifa convencional não possui.

Ao comprar tarifa promocional o consumidor realizou escolha racional, mediante análise de custo-benefício. Ao assim proceder, o consumidor enfrentou tradeoff2 (escolha) entre a compra de uma passagem de menor custo, contudo, com menores benefícios, ao invés de passagem com maior custo, porém com maiores benefícios. Dentre os benefícios que renunciou está o de sofrer imposição de multa na hipótese de desistência de voar.

O benefício do consumidor que compra na tarifa promocional consiste em pagar menos, todavia, submete-se ao risco de até mesmo perder a integralidade do preço pago, ao passo que o consumidor que compra pela tarifa convencional tem garantido o reembolso de valor mais substancial em caso de resilição do contrato.

Por imposição da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro – LINDB (decreto-lei 4.657/42), o juiz não deve decidir sem levar em consideração o impacto econômico da decisão tomada isoladamente em cada processo: “Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”.

Quando o transportador aéreo disponibiliza tarifa promocional fez análise de custo para adotá-la. Se o judiciário intervém neste cálculo desequilibrará indevidamente o custo de transação3 da operação de compra e venda do serviço. Para o consumidor o custo de transação importou em renunciar a benefícios como possibilidade de, por exemplo, alterar o dia e hora do voo, sem assunção de novos ônus ou imposição de multa. Para o transportador aéreo o custo de transação importou em renunciar à obtenção de lucro maior em cada um dos bilhetes disponibilizados.

Não se trata de discriminação entre consumidores, posto que o custo de oportunidade resultou da escolha racional de cada consumidor que foi amparada pelo acordo entabulado. Se o judiciário der o mesmo tratamento a ambos os consumidores estará, aí sim, promovendo desigualdade porque contemplará o consumidor que comprou tarifa promocional com o mesmo desconto que será aplicado ao consumidor que comprou passagem na tarifa convencional, que é mais onerosa.

Mankiw4 aponta que “as pessoas reagem a incentivos”. Isto significa que, acaso o Judiciário decida pela restituição do valor integral do bilhete aéreo comprado com tarifa promocional, mais consumidores optarão pela compra com tarifa promocional porque obterão o melhor proveito possível, sabendo que poderão se socorrer do Poder Judiciário para, na hipótese de desistência, requerer a restituição integral do valor da tarifa.

Por outro lado, companhias aéreas tenderão a aumentar o preço da tarifa promocional (ou até mesmo extinguir) de modo à, efetivamente, prejudicar o consumidor que optou pela compra na tarifa promocional, para quem a compra da tarifa com menor preço era interessante, uma vez que as empresas aéreas reagirão de forma negativa ao incentivo adotado pelo Judiciário quando concedeu a restituição da integralidade do preço da passagem ao consumidor que comprou na tarifa promocional.

A análise econômica do direito aplicada a esta questão demonstra que dar tratamento igual a situações diversas cria estímulo para que o consumidor da tarifa promocional obtenha vantagem que não tem o consumidor da tarifa convencional que pagou mais caro para viajar e obterá o mesmo percentual de multa aplicado ao consumidor de tarifa promocional.

Em resumo, a adoção de tratamento igual entre consumidores que optaram por pagar preços diferenciados em face do risco assumido criará estímulo para que o consumidor opte por comprar tarifa promocional e depois se socorrer do judiciário para obter a aplicação da multa aplicada à tarifa convencional, acaso desista de viajar e solicite a restituição do valor pago. Portanto, sob a lógica econômica o não reembolso da passagem vendida com tarifa promocional não infringe o disposto no art. 51, IV, do CDC, que trata da nulidade de cláusula abusiva porque não há iniquidade que coloque o consumidor em desvantagem exagerada ou incompatível com a boa-fé ou equidade.

A título de argumentação, ainda que se aplique isoladamente o Código Civil para abordar a questão, não há vedação a que a multa chegue à integralidade do preço pago porque a sua aplicação não tem relação com o valor da tarifa, a teor do que disposto o art. 412 do CC que apenas limita o valor da multa ao da obrigação principal. Confira-se o teor do art. 412: “O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.”

O teor desta regra do CC (art. 412) foi reproduzida na Res. ANAC 400 em seu art. 9º: “As multas contratuais não poderão ultrapassar o valor dos serviços de transporte aéreo. (...)”. Neste sentido, não há retorque a ser feito quanto à possibilidade de perda, até mesmo na integralidade, do valor da tarifa promocional, desde que expressamente evidenciado no bilhete aéreo, por força da obrigação do fornecedor de prover o consumidor com “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem (...)” (CDC, art. 6º, III).

Acresça-se, ainda, que segundo o art. 416 do CC não há necessidade de que o credor (fornecedor) alegue prejuízo para aplicação da pena convencional: “Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo. (...).”. Portanto, é irrelevante saber se o fornecedor revendeu a terceiro a passagem que o consumidor desistiu de utilizar.

Deste modo, conclui-se não ser abusiva a cláusula de contrato de compra de passagem aérea na tarifa promocional que disponha acerca da perda da integralidade do preço pago.

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1 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 8 ed. São Paulo: RT, 2016. p. 784. 

2 MANKIW, N. Gregory. Princípios de microeconomia. São Paulo: Cengage Learning, 2017.

3 SZTAJN, Raquel. A incompletude do contrato de sociedade. Revista da Faculdade de Direito, São Paulo, v. 99, Jan-Dez. 2004, p. 283.

4 MANKIW, N. Gregory. Princípios de microeconomia. São Paulo: Cengage Learning, 2017.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.